A Súmula Vinculante n. 5 do Supremo Tribunal Federal:

Inconstitucionalidade a toda prova?

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INTRODUÇÃO

O presente ensaio visa a fomentar a discussão da Súmula Vinculante nº 05 do Supremo Tribunal Federal[1], não obstante o requerimento de seu cancelamento pela Ordem dos Advogados do Brasil[2] na Proposta de Súmula Vinculante - PSV nº 58[3].

Procurar-se-á demonstrar que a decisão do Egrégio Supremo Tribunal, numa interpretação literal, ataca e oblitera aquilo que de mais sensível há na República: o Estado Democrático de Direito, notadamente o arcabouço dos Direitos e Garantias Fundamentais que lhe foram postos à disposição[4].

Para tanto, foi necessário fazer série de digressões, iniciando-se com os Direitos e Garantias Individuais e a interpretação constitucional, passando-se pela origem jurídica do verbete Súmula e Súmula Vinculante.

Faz-se pequeno cotejo entre a Súmula Vinculante 05 e a Súmula não vinculante nº 343 do Superior Tribunal de Justiça[5], que, apesar de entendimentos contrários, não está cancelada, tampouco revogada; atenuada, dir-se-ia, todavia, vigendo.

Que se observa é uma barafunda de decisões a vituperar institutos que guarnecem direitos e garantias constitucionais bem como os da segurança jurídica, boa-fé objetiva e tantos outros.

E nessa sede, onde institutos tratam de direitos subjetivos, não seria o caso de perguntar ao “Guardião da Constituição”: tu quoque, Brutus, fili mi[6]?

E, ante a adversidade jurídica fulgurante, a elucidativa crítica de Streck:

“O problema no Brasil é que prevaleceu a tese de que o Direito é o que os tribunais dizem que é”, lamenta. “Logo, o Direito vale menos do que aquilo dito pelo Judiciário. Por isso, afirmo que, hoje, defender a legalidade no Brasil é um ato revolucionário”[7] [acrescer-se-ia: é um ato de coragem!].

À frente, cuida-se também da Doutrina do Diálogo das Fontes, modo de interpretação que merece ser melhor escandido e, principalmente aproveitado pela comunidade jurídica.

Em conclusão, a crítica, concessa maxima venia, ao Egrégio Supremo Tribunal no julgamento da PSV -58, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, pugnando-se em que poder-se-ia modular os efeitos da Súmula Vinculante nº 05.

Finaliza-se, ante ao aparente paradoxo de tudo dito, o Verbete Vinculante não sofrer do vício da inconstitucionalidade.

1. Direitos e Garantias fundamentais e a Interpretação Constitucional

Os vetustos princípios condutores das garantias estatuídas nas Constituições contemporânea remontam a Magna Charta Baronorum (Libertatum) de 1215:

“39 – Nenhum homem livre será detido ou aprisionado, ou privado de seus direitos ou bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou despojado, de algum modo, de sua condição; nem procederemos com força contra ele, ou mandaremos outros fazê-lo, a não ser mediante o legítimo julgamento de seus iguais e de acordo com a lei da terra.

40 – Nós não venderemos, recusaremos, ou protelaremos o direito ou a justiça para quem quer que seja.”[8] (negrito e grifo acrescido).

Na Constituição Federal de 1988, o intuitivo rol do art. 5º dentre outros[9], diz que ao Estado é vedado, tirar de qualquer ente humano na terrae brasilis, seus bens e/ou sua liberdade sem o “due process of law”.

Diz também que ele, Estado, se dobrará de joelhos, não intervindo na esfera do sujeito, garantindo, e tudo isso passado e dado por escrito numa Carta, a Carta Cidadã, e aind por cima, escrito, traduzido ainda mais em princípios[10], que também serão fielmente respeitados e observados. Enfim, o recado é: Estado, mantenha distância segura!

Também devem ser garantidas e observadas a intimidade e vida privada do sujeito, além de ter o direito de receber dos órgãos públicos, informações (sem ter a nítida sensação que o Estado lhe preste uma caridade, ao contrário!), que diga respeito à sua situação como cidadão e partícipe da comunidade (incisos X a XXXII, art. 5º Constituição).

Em relação aos princípios, norteiam a interpretação constitucional, possuem peculiaridades próprias, permitindo alargamento do espectro hermenêutico.

Com efeito,

[...] A interpretação constitucional, [...], está ligada diretamente à aplicação da constituição, ou a sua concretização, conforme vem defendendo Konrad Hesse. A ascensão dos direitos fundamentais, principalmente a partir do advento da Constituição de Weimar (1919), fez como que o direito constitucional abandonasse o método tradicional [...], que consiste em um processo silogístico de subsunção entre o conceito de fato ao conceito de norma, sendo a lei a premissa maior (genérica) e os fatos a premissa menor (específica). [...]

Normas constitucionais assumem o caráter, em geral, de princípios, enquanto as demais normas costumam adotar a estrutura de regras, no sentido acima apresentado, e se para essas últimas os cânones tradicionais da hermenêutica jurídica bastam para aplica-las de forma adequada, para aquelas, os mesmo cânones são necessários mais não suficientes. Isto pelo simples motivo de que a elas próprias faltam normas superiores, com elas, são para as demais normas, para ajudar na determinação de seu alcance e significado.

Tais peculiaridades decorrem, segundo Miguel Reale, da objetividade normativa própria do direito e de suas múltiplas manifestações, que no caso do direito constitucional – considerando a constituição como fonte positivada superior do ordenamento jurídico – tem como característica lógica a constante operatividade, ocasionando diferentes manifestações em todos os ramos do direito. O constitucionalista português Jorge Miranda, [...]

A interpretação constitucional tem de ter em conta condicionalismos e fins políticos inelutáveis e irredutíveis, mas não pode visar outras coisas que não sejam os preceitos e princípios jurídicos que lhes correspondem. Tem de olhar para realidade constitucional, mas tem de a saber tomar como sujeita ao influxo da norma e não como mera realidade de facto. Tem de racionalizar sem formalizar. Tem de estar atenta aos valores sem dissolver a lei constitucional no subjectivismo ou na emoção política. Tem de se fazer mediante a circulação da norma – realidade constitucional – valor.

[...] O fato de a constituição ser formada em maioria por princípios – normas dotadas de alto grau de abstração –, por si só, justifica a adoção de critérios diferenciados de interpretação. A ideia da pré-compreensão precedente a interpretação, na interpretação constitucional, é calcada na premissa de que o intérprete deve se ater obrigatoriamente na própria constituição, e não tão somente em preconceitos particulares. Os princípios constitucionais, como forma de objetivação de valores, sempre estarão em confronto com outros princípios. A Constituição é um documento dialético, ou seja, comporta valores e interesses incessantemente conflitante. [...] A interpretação constitucional específica ganha mais importância em países que adotam um controle abstrato de constitucionalidade e atribuem caráter vinculante às decisões de um tribunal constitucional, como é o caso do Brasil, que conferiu ao Supremo Tribunal Federal a função de “guardião da Constituição” (CF, art. 102, caput), cujas decisões proferidas em ADIn e ADC contam com eficácia contra todos e efeito vinculante ao demais órgãos do Poder Judiciário, e ainda, à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (CF, art. 102, §2º). [...] O fato de considerarmos a existência de certas peculiaridades em se tratando de interpretação constitucional nos permite constatar a existência, inclusive, de subteorias dentro da hermenêutica constitucional, que empregam regras ainda distintas das demais usadas para interpretar o restante da Constituição. É o caso, por exemplo, da interpretação dos direitos fundamentais perante determinada restrição, que deve ser a mais restritiva visando sempre lhes garantir maior eficácia possível. [...][11] (grifo e negrito no original).

A Carta, portanto, está aberta, viva, receptiva, absorvível e susceptível a influências, a isso se tem a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição[12],

“Mesmo diante dessa potência criadora da multidão e da “vontade de constituição” do povo, a teoria clássica do direito constitucional insistia em apresentar como intérpretes da Constituição apenas os juízes e tribunais constitucionais. Ou seja, caberia tão somente a esses legitimados apreender essa imensa força criativa existente em um povo e, aos moldes kantianos do pensamento representacional, proferir aquilo que tenham entendido como sendo a vontade da nação. Todavia, diante da afirmação uníssona na doutrina de que a Constituição é produto da vontade de um povo, que outorga poderes para que esta seja escrita em seu nome, convém o seguinte questionamento: diante do espírito democrático, porque não perguntar diretamente ao titular do poder constituinte originário qual sua opinião sobre as questões constitucionais? Peter Häberle, diante da crise do processo democrático dos anos 70 na Alemanha, a partir da análise concretista dos problemas constitucionais, apresentou uma proposta na qual não apenas os intérpretes “clássicos”, por assim dizer, participariam da análise da Constituição. Ofereceu, para tanto, a proposta de uma dinâmica mais vasta de intérpretes da constituição, significativamente ampliada. Para este autor a perspectiva segundo a qual as normas constitucionais são entendidas pelos destinatários não é deixada em patamar inferior à perspectiva dos intérpretes “oficiais” da Constituição elencados pela teoria clássica. Häberle sugere uma sociedade de intérpretes da Constituição que possa abarcar o maior número possível de destinatários, tornando tal interpretação a mais democrática quanto seja possível. Isso é o que ele chamou de sociedade aberta de intérpretes, em oposição àquela sociedade fechada, na qual os únicos intérpretes legitimados seriam os juízes e os tribunais constitucionais. Ou seja, trata-se de pluralizar a participação em todas as fases por que passa a lei, pois a sociedade aberta deve guiar não apenas a interpretação constitucional feita posteriormente à produção da norma, mas também deve servir de farol para a orientação do legislador. “Isso significa que não apenas o processo de formação, mas também o desenvolvimento posterior, revela-se pluralista: a teoria da ciência, da democracia, uma teoria da Constituição e da hermenêutica propiciam aqui uma mediação específica entre Estado e sociedade!”[13] (negrito acrescido).

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Se a interpretação da Constituição passa antes pela questão de aplicabilidade e eficácia, onde extrai os requisitos de validade e eficácia?

Com efeito, do povo, vez que ela mesmo o diz (Par. Único, art. 1º CF/88).

Todavia, a questão não se resolve com uma simples afirmação. Uma norma constitucional só é efetiva, quando há força normativa em seus textos, vale dizer, quando seus preceitos se tornam de observância obrigatória (HESSE/1991) e isso se dá, dentre outros, pelo princípio da Supremacia da Constituição (KELSEN/2006).

Conforme leciona Luiz Roberto Barroso,

“(...) o poder constituinte cria ou refunda o Estado, por meio de uma Constituição. Com a promulgação da Constituição, a soberania popular se converte em supremacia constitucional. Do ponto de vista jurídico, esse é o principal traço distintivo da Constituição: sua posição hierárquica superior às demais normas do sistema. (…) Nota-se que o princípio não tem um conteúdo material próprio: ele apenas impõe a primazia da norma constitucional, qualquer que seja ela.”[14]

O art. 102 da Carta diz que cabe ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição. E que a ele, Supremo Tribunal Federal, também cabe a interpretação final da Constituição (dir-se-ia em caráter um tanto monopolista, entrementes!).

Discorda-se, data venia. Isso porque o próprio Supremo Sodalício admitiu que Chefes dos Poderes Executivo e Legislativo, poderiam, em caráter excepcional, deixar de aplicar ato normativo.

ADI 221 MC/DF MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator(a): Min. MOREIRA ALVES Julgamento: 29/03/1990 (...) EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISORIA. REVOGAÇÃO. PEDIDO DE LIMINAR. – (...) EM NOSSO SISTEMA JURÍDICO, NÃO SE ADMITE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI OU DE ATO NORMATIVO COM FORÇA DE LEI POR LEI OU POR ATO NORMATIVO COM FORÇA DE LEI POSTERIORES. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DA LEI OU DOS ATOS NORMATIVOS E DA COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO PODER JUDICIARIO. OS PODERES EXECUTIVO E LEGISLATIVO, POR SUA CHEFIA - E ISSO MESMO TEM SIDO QUESTIONADO COM O ALARGAMENTO DA LEGITIMAÇÃO ATIVA NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE -, PODEM TÃO-SÓ DETERMINAR AOS SEUS ÓRGÃOS SUBORDINADOS QUE DEIXEM DE APLICAR ADMINISTRATIVAMENTE AS LEIS OU ATOS COM FORÇA DE LEI QUE CONSIDEREM INCONSTITUCIONAIS. – (...).[15]

Há também a questão de o Supremo Tribunal Federal ser o “legislador negativo”

Rp 1451 / DF - DISTRITO FEDERAL REPRESENTAÇÃO Relator(a): Min. MOREIRA ALVES Julgamento:  25/05/1988 EMENTA REPRESENTAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 18 DO DECRETO-LEI 2.323, DE 26 DE FEVEREIRO DE 1987.(...) IMPOSSIBILIDADE DE DECLARAÇÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE APENAS DA EXPRESSÃO "EM 31 DE DEZEMBRO DE 1986", POR IMPOSSIBILIDADE DE O PODER JUDICIÁRIO - QUE SÓ PODE ATUAR COMO LEGISLADOR NEGATIVO - DE ALTERAR O SENTIDO INEQUÍVOCO DA NORMA JURÍDICA IMPUGNADA COMO INCONSTITUCIONAL. – (...)” (grifo acrescido).

Fica a questão, se é o “legislador negativo”, de “legislar” tal qual se dá com a criação de Súmula Vinculantes, mesmo que autorizados por Lei?

Não seria o caso de o legislador positivo, num arroubo de sensatez e espírito cívico e de estadista, parar de deixar ao alvedrio do Judiciário o julgamento de assuntos que digam respeito à vida nacional? Talvez assim possa ter mais respeito e consideração do povo e ao Judiciário seja devolvido sua verdadeira vocação: julgar!

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Sobre o autor
Carlos Alberto Bergantini Domingues

Procurador de Empresa Pública e Administrador de Empresas, Pós Graduado em Direito Constitucional pela PUC/SP; Pós Graduado em Direito Educacional e Oratória e Retórica pela UNIARA.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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