Violência no Brasil e a inefetividade das políticas públicas

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Estudam-se as principais causas para o aumento dos índices de crimes por arma de fogo no Brasil. A violência decorre, principalmente, da inefetividade das políticas públicas adotadas, pois as regiões com índices maiores são, também, as mais carentes.

Resumo: Estudam-se as principais causas para o aumento dos índices de crimes por arma de fogo no Brasil. A violência  decorre, principalmente, da inefetividade das políticas públicas adotadas, pois as regiões com índices maiores são, também, as mais carentes do ponto de vista de desenvolvimento humano e de acesso a serviços básicos e da importância de atribuir aos Estados federados maior autonomia em matéria penal e processual penal, considerando as dimensões do país e diferenças entre regiões. Para tanto, será utilizado o método dedutivo de pesquisa, levantamento de dados oficiais e de doutrinas. Os resultados demonstram que os legisladores têm feito muito pouco, que as políticas públicas são ineficientes, sendo poucas as implantadas. No campo da educação, por exemplo, estão voltadas apenas ao ensino superior, e não ao ensino básico; e que os Estados Federados necessitam de autonomia legislativa para construir leis que tratem de questões específicas e setorizadas.

Palavras-chave: Crime Por Arma de Fogo; Inefetividade de Políticas Públicas; Autonomia dos Estados Federados. Políticas sociais


1. INTRODUÇÃO   

Se há algo que, aparentemente, é indiscutível no ordenamento jurídico brasileiro – embora isso possa parecer contraditório, dada a multiplicidade de interpretações possíveis dos institutos jurídicos – é o fato de que no direito penal vige o princípio da intervenção mínima (ultima ratio), isto é, o direito penal deverá intervir no organismo social somente na hipótese de todas as demais possibilidades terem-se demonstrado ineficientes.

Outro aspecto de importante relevância é o postulado de que a Constituição Federal de 1988 trouxe uma visão humanística ao direito do país – não é demais lembrar que a dignidade da pessoa humana é um dos seus fundamentos (CF/88, art. 1º, III) e, a partir dos valores estabelecidos no seu texto, foram ratificados alguns tratados internacionais sobre direitos humanos, como o Pacto de São José da Costa Rica (BRASIL, 1992).

A hipótese que norteia este trabalho é a de que há pouca efetividade e equidade na distribuição de políticas sociais em todo o território nacional, dada a sua desigualdade, o que traz como consequências a marginalidade e a violência.

Assim, é possível fazer as seguintes indagações: a) Em que medida, no Brasil, os legisladores buscam efetivar os marcos legais das políticas sociais com o objetivo de minimizar as desigualdades sociais? b) Qual a importância das políticas públicas para a redução da violência atual em um médio prazo? c) Os Estados federados deveriam ter mais autonomia legislativa em matéria penal?

As políticas sociais, homologadas pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 6o. referendam dois dos princípios dessa carta que é a dignidade da pessoa humana e a cidadania.

Isto posto, este trabalho tem como objetivos: i) refletir acerca das políticas sociais para o bem estar no Brasil; ii) estudar o conceito de dignidade humana e sua positivação no sistema dos três poderes da nação; e iii) refletir sobre as políticas de segurança pública no sistema federalista.

Para a consecução desses objetivos fez-se uma revisão de conceitos de políticas sociais, dignidade humana, e buscou-se por meio de dados em diferentes bases apontar os índices de violência e refletir sobre a justiça social.


2. O ESTADO DE BEM ESTAR SOCIAL E A DIGNIDADE HUMANA

O Estado de Bem-estar Social caracteriza-se por uma busca constante pelos direitos sociais do cidadão desde seu nascimento junto à rede de prestações de serviços oferecidos e garantidos pelo Estado, tais como educação, saúde, entre outros direitos sociais, cujo objetivo é contribuir para que as desigualdades sociais não comprometam o exercício dos direitos civis e públicos.

Segundo Kerstenetzky (2010), o estado do bem-estar social não condiz apenas com uma busca somente das bases operárias ou populares ou com a implementação das teorias neoclássica e neoliberal, como uma das consequências do aprimoramento das sociedades atuais. Ele, de outro lado, é o resultado das revoluções que definiram seu sistema econômico com os olhos voltados para os Estados Liberais, mas com o surgimento dos movimentos democráticos, mormente no século XX, a intervenção do Estado nos movimentos do capital foi se acentuando e com o apoio de manifestações populares, ele emerge.

Para Okun (apud Kerstenetzky, 2011), o bem-estar social não passa de um “balde furado”, sendo, que o governo remaneja os recursos destinados às classes sociais e não alcança seu objetivo de redistribuição dos recursos.

                Kerstenetzky (2010) afirma que Brasil teve como marco inicial do seu estado de proteção social no ano da homologação da Constituição Federal (1988), sendo uma política destinada ao desenvolvimento e construção dos direitos sociais

Para Habermas (2010) a dignidade humana positivada é necessária para a democracia, de onde se aponta para uma reflexão : i) a palavra democracia não tem um significado claro, pois está sujeita a processos de significação e mutação constante e ii) dignidade humana, por seu turno, tem um caráter amorfo o que indica que ainda estamos nos estágios iniciais do processo de elaboração do seu significado (Waldron; 2013).

Habermas (2010) observa a dificuldade de se positivar o princípio da dignidade humana, ao longo de seu processo de positivação nas normas jurídicas, pela limitação linguística inerente a todas as línguas humanas. As diferentes dimensões da dignidade humana vão sendo pulverizadas em artigos, incisos e parágrafos no sistema normativo do Estado, provocando um esvaziamento do que se entende por padrões mínimos de violações.

Esta diluição das dimensões humanas produz um apagamento daquilo que é prioritário, perde sua força discursiva, enfraquecendo o pragmatismo. Assim como processo de racionalização departamentalizou excessivamente a ciência, assim também o princípio da dignidade humana é uma noção complexa e departamentalizada que vem sendo estudada desde áreas como o direito, sociologia e antropologia até a bioética (PELE, 2012). 

Waldron (2013) lembra que não há um conceito pragmático de dignidade humana porque nós ainda discordamos de quais direitos são direitos humanos pela própria desigualdade do mundo moderno, que apresenta ritmos desiguais em seus diferentes processos de desenvolvimento sócio-político, cultural e econômico nos diferentes continentes, mesmo tendo concordado que os humanos tiveram a mesma origem biológica, que não há raças diferentes e que é necessário lugar pela igualdade, conceitos universalizantes que ainda desafiam a contemporaneidade.

Assim, mesmo com o legado deixado pelas revoluções do século XIX, a dignidade humana sofreu uma erosão antes mesmo de ser compreendida. A globalização do capital e a reestruturação dos mercados caminharam juntamente na tentativa de efetivação dos direitos humanos e trouxe consigo novos tipos de regulações sociais, econômicas e políticas que acabaram por influenciar os requisitos mínimos para se atingir a dignidade.

Para Kant (apud SARLET, 2015) a dignidade humana é um valor moral, logo a difícil tarefa de encontrar uma forma de avaliá-la, compreender como ela se manifesta na vida do cidadão, ou ainda, como o sujeito a percebe no seu dia a dia.

Isto posto, há que se considerar o caráter ubíquo do conceito de dignidade humana, destaca-se por um lado que ele se perde nas retóricas falaciosas dos diferentes discursos políticos, por outro, a busca pelo seu real significado vai motivando sua positivação em declarações, convenções e outros documentos legais e diferentes áreas do conhecimento humano que vêm conduzindo a reflexões que possibilitem avaliar os padrões humanos mínimos de violações da vida, da liberdade, da integridade e da igualdade (RILEY, 2010), que fundamenta a autonomia do seres humanos, e que possam ser mensuráveis.

Assim, entende-se aqui, neste percurso que dignidade humana em a ver com segurança pública e esta com mais justiça social a fim de que se possa reduzir os índices de violência por meio de políticas públicas mais eficientes, e talvez até diferenciadas para diferentes regiões do país.


3. SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO: DIREITOS, SOCIEDADE E JUSTIÇA

O Brasil, diferentemente de países de cultura anglo-saxônica, baseou-se o direito romano e adotou o sistema da civil law, isto é, a adoção de leis escritas para regular a vida em sociedade – embora, cabe destacar, nos últimos anos tenha havido uma grande evolução jurisprudencial, principalmente com a EC 45/2004 que acrescentou o art. 103-A ao texto constitucional, prevendo a prerrogativa de o Supremo Tribunal Federal editar súmulas de efeito vinculante, sendo que dois anos depois, em 2006, a Lei 11.417 regulamentou o tema. Recentemente, o Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) solidificou a tendência dos precedentes - porém, reafirma-se, vigora no país o direito positivo.

A participação cada vez mais ativa do direito penal na sociedade brasileira leva à suposição de que os demais institutos jurídicos, bem como as políticas públicas, não têm demonstrado a eficiência desejada para que os cidadãos possam exercer aquele que seja, talvez, ao lado do direito à vida, um dos direitos mais elementares de qualquer Estado Democrático de Direito, a liberdade.

Isso porque, conforme estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2017) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2017) concluiu-se que houvera um crescimento vertiginoso nos índices de violência em todo o país sendo a região nordeste aquele que apresenta maiores taxas de mortalidade para cada 100 mil habitantes, ao passo que a região sudeste apresenta as menores taxas. Uma coisa é certa, a sensação de medo é geral.

No Brasil, (Reale, 2001), desenvolveu, em meados dos anos de 1940, a sua “Teoria Tridimensional do Direito”. Para ele, o conceito de Direito tem uma estrutura que abrange três dimensões. Nas suas palavras:

O simples fato de existirem várias acepções da palavra Direito já devia ter suscitado uma pergunta, que, todavia, só recentemente veio a ser formulada, isto é: esses significados fundamentais que, através do tempo, têm sido atribuídos a uma mesma palavra, já não revelam que há aspectos ou elementos complementares na experiência jurídica? Uma análise em profundidade dos diversos sentidos da palavra Direito veio demonstrar que eles correspondem a três aspectos básicos, discerníveis em todo e qualquer momento da vida jurídica: um aspecto normativo (o Direito como ordenamento e sua respectiva ciência); um aspecto fático (o Direito como fato, ou em sua efetividade social e histórica) e um aspecto axiológico (o Direito como valor de Justiça). (REALE, 2001, p. 60).

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O direito, deste modo, está inserido em um meio mais abrangente, cuja análise não pode ignorar aspectos sociais, históricos, econômicos, de valor entre outros. Assim, para o nascimento da norma jurídica é quase sempre imprescindível a ocorrência de um fato natural causador de impacto social. Tal impacto social somente ocorre porque a sociedade possui alguns valores oriundos de sua história, de sua economia, de sua cultura de modo geral. Somente após a ocorrência do fato e da reação social diante dele é que o legislador percebe a necessidade da elaboração de uma norma jurídica que atenda aos anseios do povo.

Em síntese, para Reale, o direito é fato, valor e norma. Onde o fato social, cada vez mais complexo, exige posturas mais criteriosas na sua valoração e na criação de normas. É, portanto, um mecanismo que tem por objetivo a pacificação social, tendo o Estado - através dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário - a responsabilidade de concretizar este objetivo. 

Contudo, nem sempre foi assim, isso porque a concepção tripartite de Estado, embora já defendida por Aristóteles, foi solidificada somente no século XVIII por Montesquieu, culminando com as Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789).

Hobbes (apud NUNES, 2010), no entanto, afasta a ideia aristotélica de que o homem é um animal político, assim como de sua concepção acerca de uma tendência humana e natural para a sociabilidade, culminando na criação da polis.

Para Hobbes (apud NUNES, 2010, p. 13):

(...) durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens (...). Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é consequência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. (...). Outra consequência da mesma condição é que não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de conservá-lo. É pois esta a miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza. Embora com uma possibilidade de escapar a ela, que em parte reside nas paixões, e em parte em sua razão.

Eis o chamado estado de natureza, onde a liberdade era plena, o direito era exercido pela força e sem qualquer autoridade que impusesse limites – o caos e a desordem eram totais, inviabilizando quaisquer possibilidades de exercício de propriedade privada. É a partir deste contexto que surgira a frase no sentido que o homem é o lobo do homem, momento histórico onde a regra era a guerra mútua, de todos contra todos, de modo que o objetivo era conquistar aquilo que se desejava ou conservar aquilo que se possuía.

Hobbes, portanto, considera que o estado civil é fruto do caos trazido pelo estado natural. O homem, conquanto ainda primitivo, era também possuidor de razão, sendo ela a mola propulsora para a criação de um sistema coletivo instituidor de regras de conduta mesmo que isso acarretasse na renúncia à liberdade irrestrita, a única conhecida no momento.

O autor procurou, ainda, identificar a origem do interesse humano pelo fim do estado natural e início do estado civil. Chegou à conclusão de que o medo da morte era o elemento central, o instinto de autopreservação falara mais alto.  

O contexto histórico, à vista disso, estava apto à criação de uma instituição invisível, o Estado, o grande Leviatã, capaz de conter os impulsos naturais que aterrorizavam a todos. Eis que surge o estado civil, momento em que atribuiu-se a uma:

(...) só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e da ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum. (HOBBES apud NUNES, 2010, p. 17). (destaques na obra)

Coincidentemente, em pleno século XXI, a sociedade brasileira encontra-se temerosa do mesmo instinto que levou a sociedade do estado natural a criar o estado civil, uma vez que o medo da morte violenta assola o país diariamente.

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Sobre as autoras
Luci Mendes de Melo Bonini

Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, Professora de Filosofia e Pesquisadora no Mestrado em Políticas Públicas da Universidade de Mogi das Cruzes. Área de interesse: Direitos Humanos e Políticas Públicas.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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