Acessibilidade: uma questão urgente

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5. O que pode mudar essa realidade?

Apenas a plena inclusão da pessoa com deficiência em todas os âmbitos da sociedade tem o condão de mudar essa realidade.

Inclusão, como um paradigma de sociedade, é o processo pelo qual os sistemas sociais comuns são tornados adequados para toda a diversidade humana - composta por etnia, raça, língua, nacionalidade, gênero, orientação sexual, deficiência e outros atributos - com a participação das próprias pessoas na formulação e execução dessas adequações.[24]

Essa é a meta a qual precisa de ser atingida. Mas como?

Ora, se a falta de acesso promove esse cenário de exclusão, a garantia do direito fundamental à acessibilidade tem o poder de transformá-lo. Como a possibilidade de qualquer pessoa, com ou sem deficiência, acessar um lugar, serviço, produto ou informação de maneira segura e autônoma, a acessibilidade é o instrumento capaz de retirar da invisibilidade esse grupo de pessoas.

Esse “estado de acesso” foi determinado pela Convenção Internacional Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência para todos os ambientes como princípio e regra ao mesmo tempo, e exige que sejam eliminadas as barreiras existentes, especialmente as que foram concebidas pelo próprio ser humano, e que novos espaços e formatos sejam desenhados livres de barreiras, para não obstaculizar o pleno gozo e exercício dos direitos das pessoas com deficiência.[25]

O objetivo da acessibilidade, portanto, é permitir um ganho de autonomia e de mobilidade a um número maior de pessoas para que usufruam os espaços com mais segurança, confiança e comodidade.

A acessibilidade é, pois, pressuposto para que as pessoas com deficiência possam exercer os direitos que a Constituição lhes garante. E não apenas é pressuposto para o exercício dos direitos que a Lei Maior confere especificamente a esse grupo, mas é pressuposto para o exercício pelas pessoas com deficiência também dos direitos conferidos a todas as pessoas, com ou sem deficiência. O direito de ir e vir, por exemplo, consagrado no artigo 5º, inciso XV, da Constituição Federal, fica inviabilizado ou diminuído para as pessoas com deficiência se não houver acessibilidade nas vias e edifícios públicos ou privados de uso coletivo, assim como nos meios de transporte coletivo.


6. Marco Legal.

A acessibilidade, direito de cunho instrumental, necessário para a fruição dos mais básicos direitos pelas pessoas com deficiência; bem como para a concretização de sua inclusão, tem sua fundamentação assentada em sólidas bases no ordenamento jurídico nacional.

A Constituição Federal de 1988, que constitui marco para diversas áreas do Direito, não olvidou o direito à acessibilidade. Para a sua concretização, a Constituição distribuiu competência legislativa e administrativa entre os entes que compõem a Federação. No art. 24, inciso XIV[26], atribui à União, aos Estados e ao Distrito Federal a competência para legislar sobre a proteção e integração (leia-se inclusão) das pessoas com deficiência. Ainda, no § 2º do art. 227[27], previu expressamente o direito ao meio ambiente urbano acessível e inclusivo, como concretização do direito à igualdade material. No art. 244, determinou a Carta de 88 que mesmo os logradouros, prédios de uso público e veículos de transporte coletivo que tenham sido construídos anteriormente à sua vigência deveriam ser adaptados de forma a garantir o acesso adequado às pessoas com deficiência.[28]

De seu turno, A Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, em seu artigo 9, traz o dever de implementação de acessibilidade pelos Estados-Partes, nos seguintes termos:

“Artigo 9

Acessibilidade

1. A fim de possibilitar às pessoas com deficiência viver de forma independente e participar plenamente de todos os aspectos da vida, os Estados-Partes tomarão as medidas apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, ao meio físico, ao transporte, à informação e comunicação, inclusive aos sistemas e tecnologias da informação e comunicação, bem como a outros serviços e instalações abertos ao público ou de uso público, tanto na zona urbana como na rural. Essas medidas, que incluirão a identificação e a eliminação de obstáculos e barreiras à acessibilidade. ”

Neste ponto, é de se considerar que a Convenção supracitada foi internalizada pelo Estado brasileiro por meio do Decreto Legislativo n. 186, de 2 julho de 2008, que foi votado da forma prevista pelo art. 5º, § 3º[29], da Constituição Federal. Dessa forma, tem-se que a Convenção possui, no ordenamento jurídico pátrio, equivalência de emenda à Constituição, e, assim, está no seu ápice.

Assim, o Estado brasileiro, ciente do seu papel fundamental na formação de uma sociedade mais justa, inclusiva e solidária, ao promulgar a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, (Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009), optou por elevar à égide constitucional a matéria em questão.

Como consequência disso, tal como ocorre com qualquer norma constitucional, a legislação infraconstitucional lhe deve observância, não podendo contrariá-la. Portanto, a legislação ordinária deve conforma-se com seus princípios, inclusive no que respeita à acessibilidade, sendo que todo direito anterior à sua publicação e que lhe contrarie deve ser tido como revogado, bem como toda legislação posterior deve aderir a seus preceitos, sob pena de vício de inconstitucionalidade.

Hoje, portanto, além de ser direito instrumental, a acessibilidade se configura como princípio constitucional a par do que estabelece o art. 3º, “f” da Convenção:

“Artigo 3

Princípio gerais

(...)

A acessibilidade.

(...)”

Não é só isso. Recentemente, e nessa mesma esteira, o país ganhou importante instrumento para a promoção da coletividade inclusiva: a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, Lei Brasileira de Inclusão (LBI), ou, ainda, Estatuto da Pessoa com Deficiência que passou a viger em janeiro de 2016. Sua tônica é a previsão do direito de as pessoas com deficiência serem incluídas na vida social nas mais diversas esferas, por meio de garantias básicas de acesso, a serem concretizadas por meio de políticas públicas (com ênfase nas áreas de educação, saúde, trabalho, infraestrutura urbana, cultura e esporte para as pessoas com deficiência) ou de iniciativas a cargo das empresas.

O Título III da LBI trata do tema da acessibilidade ao regulamentar a forma como o ambiente social deve ser adaptado (ou readaptado) para propiciar espaço de convívio igualitário, desprovido de barreiras físicas e, portanto, sociais.[30]

Nessa normativa, a acessibilidade encontra-se definida em seu art. 3º, inciso I:

“Art. 3º. Para fins de aplicação desta Lei, consideram-se:

I - acessibilidade: possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida. ”

A independência e a autonomia que permeiam o conceito de acessibilidade possuem respaldo no princípio da igualdade material (art. 5º, caput e § 1º, da Constituição da República), que decorre do valor dignitário da pessoa humana (art. 1º, III, da Carta Magna), e demandam concretizações de ações que afastem as barreiras físicas e impeditivas do exercício igualitário da cidadania.[31]

São esses, portanto, os pilares do direto à acessibilidade à luz da normativa pátria: a Constituição da República, a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei Brasileira de Inclusão.


7. Deveres jurídicos de acessibilidade.

Uma vez ratificada a Convenção com status de emenda constitucional, o Estado Brasileiro assumiu o dever de, como Estado signatário, promover acessibilidade, na forma prevista pelos art. 4, “f” a “i”, 9 e 20.[32]

Visto isso, pode-se estabelecer, diante da normativa nacional, quais são os deveres jurídicos de acessibilidade. Para tanto, o ponto de partida é a Convenção com o disposto em seu já mencionado art. 9.

Todavia, o texto da Convenção enuncia uma obrigação internacional sem cogência[33], pois a dicção constitucional enuncia normas de eficácia limitada[34], sendo necessária a integração legislativa. Isso ocorreu por meio da Lei n. 10.098/2000, do Decreto n. 5296/2004 e, recentemente, da Lei n. 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão), todas instrumentalizando o dever de acessibilidade.[35]

Assim, tais deveres podem ser percebidos no disposto no art. 3º, inciso I, da LBI:

“Art. 3º Para fins de aplicação desta Lei, consideram-se:

I - acessibilidade: possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida. ”

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Dessa forma, os deveres se acessibilidade estão organizados dentro de quatro eixos:

  1. edificações e equipamentos urbanos;
  2. espaços e mobiliários;
  3. transportes;
  4. comunicação e informação.

O elemento comum a todos os eixos é o conceito de desenho universal, cuja definição também é dada pelo Estatuto em seu art. 3º, inciso II, sendo fixada como a concepção de ambientes, programas e serviços a serem utilizados por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou de projeto específico, incluindo os recursos de tecnologia assistiva (art. 3º, inciso III, da LBI).

O Desenho Universal não é uma tecnologia direcionada apenas para as pessoas com deficiência, mas para todas as pessoas. Sua ideia é, justamente, evitar a necessidade de ambientes e produtos especiais para pessoas com deficiências, assegurando que todos possam utilizar com segurança e autonomia os diversos espaços construídos e objetos. Os sete princípios do desenho universal são mundialmente adotados para qualquer programa de acessibilidade plena:

a) igualitário (uso equiparável): são espaços, objetos e produtos que podem ser utilizados por pessoas com diferentes capacidades, tornando os ambientes iguais para todos. Ex.: portas com sensores que se abrem sem exigir força física ou alcance das mãos de usuários de alturas variadas.

b) adaptável (uso flexível): design de produtos ou espaços que atendem pessoas com diferentes habilidades e diversas preferências, sendo adaptáveis para qualquer uso. Ex.: computador com teclado e mouse ou programa do tipo “dosvox”, tesoura que se adapta a destros e canhotos.

c) óbvio (uso simples e intuitivo): de fácil entendimento para que uma pessoa possa compreender, independente de sua experiência, conhecimento, habilidades de linguagem, ou nível de concentração. Ex.: sanitários femininos e para pessoas com deficiência sinalizados com o símbolo universal.

d) conhecido (informação de fácil percepção): quando a informação necessária é transmitida de forma a atender as necessidades do receptador, seja ela uma pessoa estrangeira, com dificuldade de visão ou audição. Ex.: utilizar diferentes maneiras de comunicação, tais como símbolos e letras em relevo, braile e sinalização auditiva.

e) seguro (tolerante ao erro): previsto para minimizar os riscos e possíveis consequências de ações acidentais ou não intencionais. Ex.: elevadores com sensores em diversas alturas que permitam às pessoas entrarem sem riscos de a porta ser fechada no meio do procedimento e escadas e rampas com corrimão.

f) sem esforço (baixo esforço físico): para ser usado eficientemente, com conforto e com o mínimo de fadiga. Ex.: maçanetas ripo alavanca, que são de fácil utilização, podendo ser acionada até com o cotovelo.

g) abrangente (dimensão e espaço para aproximação e uso): Estabelece dimensões e espaços apropriados para o acesso, o alcance, a manipulação e o uso, independentemente do tamanho do corpo (obesos, anões etc.), da postura ou mobilidade do usuário (pessoas em cadeira de rodas, com carrinhos de bebê, bengalas etc.). Ex.: poltronas para obesos em cinemas e teatros; banheiros com dimensões adequadas para pessoas com cadeira de rodas ou as que estão com bebês em seus carrinhos.

Visto o elemento comum a toda ação de acessibilidade, resta anaisar seus eixos.

O primeiro dever de acessibilidade é a acessibilidade relativa a edificações e equipamentos urbanos, regulada pelos arts. 53 a 62, do Estatuto, bem como pela Lei n. 10.098/2000 e pelo Decreto n. 5296/2004.

Ao mencionar espaços e mobiliários, a Lei trata tanto dos espaços urbanos (cidades) quanto dos espaços confinados. O mesmo se diga do mobiliário que se refere tanto ao mobiliário urbano, quanto ao de uso privado. No que se refere às cidades, ressalta-se que as cidades não podem ser hostis, portanto devem contar com rotas acessíveis e instituir diretrizes de desenvolvimento urbano que incluam regras de acessibilidade. Essa matéria está regulada de forma dispersa no bojo da LBI. Pode-se mencionar as regras contidas nos arts. 25; 42, inciso III; 44, §§ 1º, 3º e 5º; 112, todos do Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Quanto ao dever de acessibilidade nos transportes, a matéria está normatizada pelos arts. 46 a 52, da Lei Brasileira de Inclusão. Neste ponto, cabe destacar que a legislação demanda que os veículos de transporte coletivo terrestre, aquaviário e aéreo, as instalações, as estações, os portos e os terminais em operação no país devem ser acessíveis, de forma a garantir o seu uso por todas as pessoas.

A acessibilidade à informação e comunicação está definida pelos arts. 63 a 73, do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Quando se trata de atividades particulares, este tópico da acessibilidade já se reveste de grande importância. Porém, tem maior relevo quando se tem por objeto atividades de natureza pública, pois, nessas atividades, a comunicação e a informação consubstanciam o princípio constitucional da publicidade (art. 37, caput, inciso I, da CF) e o direito constitucional à informação (art. 5º, inciso XXXIII, da CF).

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Sobre a autora
Valeria Cristina Gomes Ribeiro

Auditora Federal de Controle Externo, atualmente coordenadora da comissão de acessibilidade do TCU.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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