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Algumas reflexões sobre o passado e o presente da comunidade nipo-brasileira como minoria racial

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22/05/2019 às 18:20
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Minoria modelo e assimilação da branquitude

Diante da imagem de seres desajustados socialmente, a necessidade de integração à sociedade brasileira foi o caminho natural encontrado por gerações de nikkeis pós-guerra. E justamente com ela, a assimilação de valores da supremacia branca. Foi nessa época em que se começou a desconstruir a representação do “perigo amarelo” para ceder lugar à “minoria modelo”. Nos Estados Unidos, onde o tema suscita discussões com muito mais frequência, Ellen Wu afirma que, a partir de meados da década de 50, histórias de sucesso de asiáticos ocuparam a imprensa, difundindo sua integração à sociedade americana e firmando-os como modelos de comportamento político adequado. Dizia-se que eram pessoas dedicadas, integradas, prósperas e paradoxalmente passivas, do tipo que vivem para trabalhar e não ousam reclamar da vida. Estereótipos positivos, destarte, cumpriam o papel de polarizar as minorias raciais, posicionar os amarelos como definitivamente não-negros, atribuir aos negros os próprios problemas e responder ao crescente movimento de ativistas negros por direitos civis (2014, pp. 160-7).

Tal fenômeno ocorre no Brasil também, mas, diferentemente dos Estados Unidos, não tem merecido tanta atenção da comunidade científica. Em dos raros estudos brasileiros, afirmam Caynnã Camargo Santos e Claudia Rosa Acevedo que “os anúncios em revistas brasileiras apresentam asiáticos como indivíduos extremamente trabalhadores, afeitos aos campos da ciência e tecnologia, voltados para negócios, sérios, bem-sucedidos e, em geral, intelectualmente talentosos”, estigma que acaba por restringir grandemente as possibilidades de manifestações de individualidade e, sobretudo, de diversidade cultural existente dentro da comunidade asiática (2013, p. 297). Não obstante, talvez pela escassez de debates no Brasil, estereótipos positivos foram bem aceitos por boa parte da comunidade nipo-brasileira e constituíram até motivo de orgulho.

Não é difícil perceber que questões relacionadas a racismo, que tanto afetam negros e indígenas e já foram a raiz de uma política discriminatória de Estado — inclusive contra amarelos — para privilegiar brancos, são pouco discutidas entre nikkeis atualmente, acomodados com a imagem de minoria modelo. Geralmente, resvala-se no ponto quando se discutem microagressões, como a caricaturização do amarelo, a ridicularização do seu modo de falar, a simplificação forçada de seus costumes e de elementos culturais, e demais ações rotineiras presentes na sociedade e que, para além de meras brincadeiras, pressupõem estigmatização e marginalização de um grupo étnico que não é visto como “normal”, que não se encaixa nos padrões sociais dominantes, ou seja, do branco. É, evidentemente, um assunto relevante. Entretanto, até mesmo para viabilizar seu debate pela sociedade, é fundamental que a comunidade nipo-brasileira traga à tona também — e principalmente — o racismo que se perpetua nas estruturas de poder e que tanto fez parte na história da imigração japonesa no Brasil.

Estatísticas mostram o abismo racial no Brasil. De acordo com o Atlas da Violência 2017, a população negra corresponde a maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios; a pesquisa “A distância que nos une  —  Um retrato das Desigualdades Brasileiras” da ONG britânica Oxfam, dedicada a combater a pobreza e promover a justiça social, projeta que apenas em 2.089 brancos e negros terão uma renda equivalente no Brasil; já os dados do Mapa da Violência 2015, da Faculdade Latino-Americana de Estudos Sociais, apontam que, entre 2003 e 2013, o número de mulheres negras assassinadas cresceu 54%, ao passo que o índice de feminicídio de brancas caiu 10%.

Também desnecessário lembrar que negros formam a maioria da população carcerária, cerca de 64%, segundo dados do Infopen, o Sistema Integrado de Informações Penitenciárias, divulgados em dezembro de 2017. A seletividade da Justiça Penal é tema que afeta diretamente o racismo antinegro, mas é ignorado por grande parcela de nikkeis, convictos de que a política de encarceramento em massa seria a solução para a criminalidade urbana. É, aliás, a principal bandeira de uma deputada federal paulista, que efusivamente comemorou em 2016 a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 171/93, que versa sobre redução da maioridade penal, vestindo uma camiseta com a foto de seu filho assassinado (embora o assassinato não tivesse envolvido menores de idade). 

Outro relevante tema nacional que gera indiferença também merece ser destacado. A Constituição Federal reconhece uma dívida histórica com as populações indígenas e quilombolas e obriga o governo a emitir títulos de propriedade. Mas pouquíssimas comunidades possuem títulos emitidos e a grande maioria ainda aguarda seus processos de regularização, que vêm se retardando a cada ano, enquanto conflitos com latifundiários, assassinatos, fome, doenças e expulsão de suas terras continuam levando à sua dizimação. No Congresso Nacional, a bancada ruralista tem exercido forte pressão no sentido de favorecer o empresariado rural, atacar referidas minorias e, inclusive, retaliar quem denuncia ataques. Até se tentou diminuir o alcance da proteção dada pela Constituição Federal no Supremo Tribunal Federal, que rejeitou a tese do “marco temporal” (ACOs 362 e 366, e ADI 3.239). Ante a esse cenário, a posição assumida pela classe política nikkei, lamentavelmente, quando não é de absoluto silêncio, inclina-se a favor do agronegócio, dos latifúndios, a exemplo de um deputado federal paranaense que ocupou espaço na imprensa pela defesa da flexibilização do controle de agrotóxicos e que, no início do ano, acompanhou uma comitiva no Japão que incluía um par seu conhecido justamente por frequentes ofensas a minorias.

Na sociedade civil também é muito comum que o racismo, a discriminação e o genocídio de negros e indígenas sejam tratados com desdém por grande parcela da comunidade nipo-brasileira. É como se a luta pela sobrevivência enfrentada pelos seus antepassados justificasse a resistência à mobilidade social de grupos tidos por “degenerados”. Esse comportamento é bem visível em discussões sobre cotas raciais em universidades públicas, quando se diz que as vagas têm que ser destinadas apenas aos mais capacitados. Ignora-se que a melhor preparação para o vestibular de ingresso se encontra em espaços reservados a quem tem maior poder aquisitivo, ou seja, a brancos; ignora-se que a herança escravocrata lança certos grupos étnico-raciais para baixo da estratificação social e que um integrante seu, ainda que tenha excelente formação acadêmica e profissional, está sujeito a toda ordem de estigmatização e discriminação; ignora-se que esses grupos historicamente marginalizados ocupam posição social onde outrora estiveram os imigrantes japoneses e lutam até hoje pela inserção social e pela igualdade de oportunidades. Acredita-se, enfim, que esses são problemas dos outros e que não caberia ao Estado promover sua inclusão, assumindo, dessa forma, uma posição egocêntrica, sem demonstração de qualquer empatia.

Também tem despertado reações e discussões acaloradas o crescimento de fluxos migratórios, que vem afetando diversos países da Europa e outros, inclusive Brasil. Não é incomum na sociedade brasileira a demonstração explícita de preconceito em relação a chegada de estrangeiros às terras tupiniquins que saem de seus países de origem em busca de vida melhor, às vezes até de sua própria sobrevivência, fugindo de desastres naturais, miséria ou conflitos armados. São sírios, haitianos, angolanos, senegaleses, peruanos, bolivianos etc. O comportamento anti-imigrante (que, não raras vezes, mescla com comportamento racista) de certos setores sociais também pode ser verificado em vários brasileiros descendentes de japoneses, que, despudoradamente, alegam que empregos, bens e serviços públicos seriam reservados apenas a brasileiros e rejeitam qualquer gesto de acolhida. Mais uma vez a dura discriminação enfrentada pelos seus antepassados como imigrantes no Brasil  —  e imigrantes de um país que ameaçava o Ocidente  —  fica no esquecimento.

Examinando um caso específico e atual, é interessante trazer à baila uma pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha sobre intenções de voto a candidatos à Presidência República, divulgada em 4 de outubro de 2018, que trouxe resultados por diversos segmentos, dentre os quais aqueles definidos por raça. Um candidato conhecido por afirmações racistas e xenófobas — como se referir a imigrantes como “escória do mundo” e que viriam de “países de merda”, ou a quilombolas como aqueles que “não servem nem para procriar”, ou, ainda, dizer que “índio não terá mais um centímetro de terra”, conforme veiculado pela imprensa  —  aparecia com 45% de intenções de voto entre amarelos, que incluem descendentes de japoneses. Sem adentrar no mérito das declarações, constata-se que o racismo e a xenofobia, que no passado motivaram toda ordem de discriminação contra imigrantes japoneses, não constituem motivo de preocupação por boa parte da atual geração de nikkeis.

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Vale lembrar que a Constituição Federal de 1988 constituiu importantíssimo marco para a democracia brasileira, introduzindo o primado da prevalência de direitos humanos, como princípio orientador das relações internacionais, o que foi fundamental para a ratificação de relevantes tratados internacionais de direitos humanos e esta, por sua vez, permitiu o fortalecimento do processo democrático, mediante a ampliação e o reforço do universo de direitos por ele assegurado (Piovesan, 2012, pp. 50-1). Logo, buscar no darwinismo social para justificar uma postura de omissão ou mesmo assumidamente contrária a ações inclusivas de povos negros e indígenas e, além de outros segmentos sociais alvos de preconceito, como mulheres, LGBT, refugiados, que vem pautando a agenda nacional e internacional de direitos humanos. Mormente quando essa atitude egocêntrica vem de amarelos, cujos antepassados foram também alvo de uma política de discriminação do Estado, o que revela a premente necessidade de resgatar histórias de luta e sofrimento, apagadas no decorrer de gerações.


Conclusão

O que se percebe atualmente é que a luta dos primeiros imigrantes japoneses contra uma política institucional racista cedeu lugar a uma geração que, preferindo se encaixar nos padrões socialmente aceitos e acomodando-se com o estereótipo da minoria modelo, prefere endossar discursos e comportamentos que refletem a supremacia branca e a opressão contra outros povos, sobretudo negros e indígenas. Por óbvio, não se quer diminuir as contribuições dadas pela comunidade nipo-brasileira à sociedade brasileira, porém, perde-se uma oportunidade grande de trazer tais questões à tona no ano em que se celebram 110 anos da imigração japonesa no Brasil. Resgatar a memória não só se mostra fundamental para redescobrir a identidade do nikkei, como também para manter viva a consciência de que, numa sociedade construída sobre séculos de escravidão e teorias raciais “científicas” que procuravam justificar a desigualdade racial, amarelos não são brancos e, a depender da conveniência das classes dominantes, são colocados ora ao lado de negros e indígenas, ora ao lado de brancos.

O racismo não se combate colocando uma minoria contra outra. O mito da minoria modelo foi concebido com este propósito, o que levou muitos dos que se encaixavam no rótulo a uma passividade inaceitável, ao sentimento de orgulho pelo que são. Uma minoria domesticada é perfeita para manutenção da supremacia branca e do racismo como base estrutural da desigualdade. Enfim, a concepção de minoria modelo serve para unicamente sustentar a falácia da meritocracia. Urge, assim, uma tomada de consciência por parte de asiáticos-brasileiros — em particular, de descendentes de japoneses — acerca do papel que desempenham numa sociedade estruturalmente racista, que lança negros e indígenas para a parte mais baixa, mas que ainda não confere aos amarelos um tratamento livre de microagressões, rótulos e jocosidades. Em vez de colaborarem com a supremacia branca e se perderem em visões despolitizadas sobre representatividade, é hora de assumirem a identidade nikkei, enfrentarem também o sistema e demonstrarem uma solidariedade antirracista, sem a qual serão eternamente invisibilizados em suas causas.


Bibliografia:

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RAMOS, Jair de Souza. "Dos males que vêm com o sangue: as representações raciais e a categoria do imigrante indesejável nas concepções sobre a imigração da década de 20". In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (Org). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Rio Cruz, 1996.

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SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870–1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SHIRAISHI NETO, Joaquim e SHIRAISHI, Mirtes Tieko. Código Amarelo: dispositivos classificatórios e discriminatórios de imigrantes japoneses no Brasil. São Luís: Eduma, 2016.

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Sobre o autor
Renato Takashi Igarashi

Procurador Legislativo da Câmara Municipal de São Paulo. Especialista em Direito Municipal pela Escola Paulista de Direito e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

IGARASHI, Renato Takashi. Algumas reflexões sobre o passado e o presente da comunidade nipo-brasileira como minoria racial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5803, 22 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69497. Acesso em: 22 nov. 2024.

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