EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DE PROPRIEDADE
O direito de propriedade atravessa os tempos trazendo consigo peculiaridades enraizadas principalmente pelos costumes de determinados povos. Segundo o ensinamento do renomado Clóvis Bevilaqua, citado por Maria Helena Diniz, pode-se observar que aqui mesmo no Brasil, quando da chegada dos exploradores da nossa terra, encontraram sociedades indígenas onde havia domínio comum das coisas úteis, entre os que habitavam a mesma oca, individualizado-se, tão-somente, a propriedade de certos móveis, como redes, armas, e utensílios de uso próprio. O solo, por sua vez, era pertencente a toda a tribo e isso, temporariamente, porque nossos índios não se fixavam na terra, mudavam de cinco em cinco anos.
No direito romano, porém, o sentido da propriedade era individualista, havendo previsão de duas formas de propriedade individualista que era a da gens e a da família diante da realidade dos primórdios da cultura romana quando a propriedade era da cidade ou gens, sendo atribuído a cada indivíduo meio hectare, que eram inalienáveis. Adiante, surgiu o direito de propriedade da família, que também sucumbiu ao crescente fortalecimento da autoridade do pater familias.
Já na idade média os feudos foram dados como usufruto condicional a certos beneficiários que se comprometiam a prestar serviços, inclusive, militares, e, com o passar dos tempos esta se transformou em perpétua e transmissível na linha masculina, sendo que tal situação perdurou até o advento da Revolução Francesa em 1789, quando desapareceu o feudalismo.
De acordo com os regimes políticos a propriedade sofre modificações, tendo peculiaridades. Por exemplo, na URSS, no âmbito da economia privada, admitia-se a propriedade exclusiva sobre os bens de consumo pessoal e a propriedade usufrutuária de bens de utilização direta, como a casa onde o indivíduo mora, seus móveis, dinheiro e valores mobiliários, sendo que na economia pública os bens de produção são socializados.
Nos países do ocidente, onde impera o sistema capitalista e neo-liberal, a propriedade é individual, embora sem conteúdo idêntico de suas origens históricas, pois sofre restrições, tanto voluntárias, como servidões e usufruto, como as limitações oriundas da própria natureza do direito ou de imposição legal, com a finalidade de restringir abusos bem como impedir prejuízo ao bem-estar social, atingindo-se, dessa forma a função social da propriedade, prevista nos artigo 5º, XXIII, 182, § 2º, 186 e 170, III da nossa Carta Magna de 1988.
Merece destaque o pensamento de John Locke, que foi o autor, dentre outras obras, de dois tratados sobre o governo civil, escritos, aproximadamente, entre 1679-80, e publicados na Inglaterra em 1690, após o triunfo da Revolução Gloriosa.
O Segundo Tratado de Locke é, segundo Leonel Itaussu Almeida Melloii, uma justificação ex post facto da Revolução Gloriosa, onde Locke fundamenta a legitimidade da deposição de Jaime II por Guilherme de Orange e pelo Parlamento com base na doutrina do direito de resistência, destinado a:
“confirmar a entronização de nosso Grande Restaurador, o atual Rei Guilherme; a justificar seu título em razão do consentimento do povo, pelo que, sendo o único dos governos legais, ele possui de modo mais completo e claro do que qualquer outro príncipe da cristandade”.iii
Dentro desse raciocínio, vem a chamada teoria da propriedade, que para Locke, já numa segunda acepção sobre o que vem a significar a propriedade, num sentido estrito, significava especificamente a posse sobre bens móveis e imóveis, sendo direito natural do indivíduo que não pode ser violado pelo Estado. A terra fora dada por Deus em comum a todos os homens, sendo que ao incorporar seu trabalho à matéria bruta que se encontrava em estado natural o homem tornava-a sua propriedade privada, estabelecendo sobre ela um direito próprio do qual estavam excluídos todos os outros homens, chegando a firmar que “todo governo não possui outra finalidade além da conservação da propriedade”iv.
Para finalizar, é importante relembrar e manter latente o fato de que Locke considerava a propriedade, não apenas no seu aspecto ligado aos bens materiais móveis e imóveis, mas também, em sentido amplo, a propriedade açambarcaria a própria vida e liberdade do indivíduo que, uma vez violadas de forma deliberada e sistemática, fariam nascer o legítimo direito de resistência à opressão e à tirania.
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
A propriedade é estudada sob dois aspectos que são o estrutural e o funcional, dentre os quais a doutrina se ocupa apenas do primeiro.
Para o professor André Osório Gondinhov, o Código Civil de 1916, em seu artigo 524, embora sem definir ou conceituar o direito de propriedade, acaba por dispor acerca do seu conteúdo, relacionando os poderes conferidos ao proprietário: usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que, injustamente, os possua, sendo que tais poderes, segundo entendimento tradicional, compõem a estrutura do direito de propriedade. Essas faculdades atribuídas ao proprietário seriam, então, o elemento interno ou econômico da propriedade, ao passo que o direito de excluir as ingerências alheias representa o elemento externo ou jurídico da propriedade.
O autor supracitado propõe o estudo da propriedade sob outro aspecto, que seria a sua ideologia, que, por sua vez, seria o aspecto dinâmico do direito de propriedade, ou aspecto funcional, representando o papel que o direito de propriedade desempenha nas relações sociais.
Chegamos então a um ponto primordial do presente estudo que é exatamente o fundamento do instituto da usucapião, posto que visa o atingimento do fim social da propriedade quando dá segurança jurídica a uma situação de fato, desde que preenchidos requisitos determinados pela lei, os quais também remetemos ao item específico.
Ora, a nossa Carta Magna atual previu em seu artigo 170, notadamente em seus incisos II e III como princípios da ordem econômica a propriedade privada e a sua função social, não se podendo mais ser encarada como, no dizer de José Afonso da Silva: “puro direito individual”, relativizando-se seu conceito e significado, especialmente porque os princípios da ordem econômica são preordenados à vista da realização de seu fim: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça socialvi.
Diante do acima exposto, temos uma real noção do objeto da função social da propriedade que, para o professor José Afonso da Silva, não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade. Estes dizem respeito ao exercício do direito ao proprietário; aquela, à estrutura do direito mesmo, à propriedade.
“Constitui, como já se disse, o fundamento do regime jurídico da propriedade, não de limitações, obrigações e ônus, que podem apoiar-se – e sempre se apóiam – em outros títulos de intervenção, como a ordem publica ou a atividade de polícia”.
A USUCAPIÃO NO BRASIL. CONCEITO E ORIGEM
Para Caio Mario da Silva Pereira, citado por Maria helena Diniz, consiste na “aquisição da propriedade ou outro direito real pelo decurso do tempo estabelecido e com a observância dos requisitos estabelecidos em lei”
Não obstante a precisão do conceito acima, outros também merecem destaques, ora pela magnitude do seu alcance para a época em que foram pensados, ora pela sua relevância atual. Nesse contexto citamos, ainda, Clóvis Beviláqua para quem a usucapião é a aquisição do domínio pela posse prolongada. Est acquisitio domini per possessionem prolixam et justam, vel acquisitio per usum (Calvino); ou, como disse Modestino: Est adjectio domini per continuationem possessionis temporis lege definiti (D. 41. 3, fr. 3)
E continua…
”O Código denomina usucapião a prescrição aquisitiva, para evitar confusões, provenientes da identidade de certos cânones, que formam o tecido dos dois institutos: a prescrição propriamente dita ou liberatória, e o usucapião ou prescrição aquisitiva”.
Não podemos deixar de citar também J. M. Carvalho Santosx, que conceitua o instituto em exame como sendo “ o modo de adquirir a propriedade pela posse, continuada durante em certo lapso de tempo, com os requisitos estabelecidos na lei (Fr. 3 de usurpat.; VAMPRÉ).”
Pedro Nunes define a usucapião como sendo “modo derivado de adquirir o domínio da coisa pela sua posse continuada durante certo lapso de tempo, com o concurso dos requisitos que a lei estabelece para este fim”.
A usucapião, portanto, é modo de aquisição apenas do domínio, podendo recair sobre outros direitos reais, tais como as servidões, o domínio útil na enfiteuse, o usufruto, o uso e a habitação.
Nesse sentido Carvalho Santosxii já nos fornecia tal idéia quando lecionava que “Somente o domínio é que se adquire por usucapião? Não. Mas também o usufruto, o uso, a habitação, a enfiteuse e as servidões reais”.
Para encerrar, José Carlos de Moraes Sallesxiii conceitua a usucapião como “a aquisição do domínio ou de um direito real sobre coisa alheia, mediante posse mansa e pacífica, com ânimo de dono, durante o tempo estabelecido em lei”.
Com relação à origem, Pedro Nunesxiv nos ensina que,…”A origem do usucapião remonta às leis das XII Tábuas. Nelas fundou-se Cícero, nesta passagem: “Usus auctoritas fundi dienium esto coeterarum rerum annus”
Auctoritas significa também, posse garantida, legitimidade de posse.
Segundo VAN WETTER, usus auctoritas era o nomem juris que primitivamente tinha a usucapião.
GIRARD entendia que usus se referia a usucapião, e auctoritas à actio auctoritatis, eventual do adquirente contra o alienante, que desaparecia desde o momento em que o primeiro se convertia em proprietário.
KARLOWA acredita que a palavra seja originária e não formada de usum e capere. Porquanto o que se adquire é a coisa e não o uso, donde não haver a capio do usus.
Capio tem o significado de ganhar, conquistar, adquirir; e usus, o uso, o direito de posse, a aquisição da posse (Magnum Lexion e outros léxicos latinos). Além disso, a regra jurídica romana – Usus est pro possessione – o uso faz as vezes de posse (DE MAURI, Regulae Juris).
Daí se supor que a palavra usucapião seja constituída pela junção de usus a capio – aquisição da posse e, conseqüentemente, do domínio, pelo uso da coisa, do que resultou usucapio, visto como a prescrição aquisitiva não é senão a aquisição do domínio pela posse prolongada da mesma coisa.”Deve-se destacar os elementos básicos e essenciais para a aquisição por usucapião, que são: posse, tempo e animus domini, além do chamado “justo título” e da boa-fé, para outras espécies, que serão sucintamente tratadas em momento oportuno.
Para J. M. Carvalho Santosxv, “o fundamento da usucapião não é outro senão garantir a estabilidade e segurança da propriedade, fixando um prazo, além do qual não se podem mais levantar dúvidas, ou contestações a respeito”.
Hodiernamente, José Carlos de Moraes Sallesxvi assim leciona:
“todo bem, móvel ou imóvel, deve ter uma função social. Vale dizer, deve ser usado pelo proprietário, direta ou indiretamente, de modo a gerar utilidades. Se o dono abandona esse bem; se se descuida no tocante a sua utilização, deixando-o sem uma destinação e se comportando desinteressadamente como se não fosse o proprietário, pode, com tal procedimento, proporcionar a outrem a oportunidade de se apossar da aludida coisa. Essa posse, mansa e pacífica, por determinado tempo previsto em lei, será hábil a gerar a aquisição da propriedade por quem seja seu exercitador, porque interessa à coletividade a transformação e a sedimentação de tal situação de fato em situação de direito. À paz social interessa a solidificação daquela situação de fato na pessoa do possuidor, convertendo-a em situação de direito, evitando-se, assim, que a instabilidade do possuidor possa eternizar-se, gerando discórdias e conflitos que afetem perigosamente a harmonia da coletividade“.
Para o autor, esse é o fundamento do usucapião, ou seja, que seja solidificada a titularidade da propriedade de determinado bem àquele que lhe deu destinação por determinado lapso temporal.
Maria Helena Diniz, citando Clóvis Bevilaqua, aduz que:
“o usucapião tem por fundamento a consolidação da propriedade, dando juridicidade a uma situação de fato: a posse unida ao tempo. A posse é o fato objetivo, e o tempo, a força que opera a transformação do fato em direito, o que nos demonstra a afinidade existente entre os fenômenos jurídicos e físicos.”
Assim, os requisitos básicos para usucapir são de ordem pessoal, real e formal.
Brevemente podemos dizer os de ordem pessoal são os atinentes a capacidade e qualidade de quem o pleiteie, para poder adquirir por esta via a propriedade ou direitos outros.
Com relação aos requisitos ditos reais, estes são alusivos aos bens e direitos suscetíveis de serem usucapidos.
E, para finalizar essa breve notícia, chegamos aos requisitos formais que, na visão de Maria Helena Dinizxvii, compreendem quer os elementos necessários e comuns do instituto, como a posse, o lapso temporal e a sentença judicial, quer os especiais, como o justo título e a boa-fé.
A Constituição de 1934 previu uma nova modalidade de usucapião em seu artigo 125, vindo a ser modificado pela Constituição de 1937 (art. 148) chegando à Carta Magna de 1946 no seu artigo 156, § 3º com a seguinte redação:
“Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar por 10 anos ininterruptos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, trecho de terras não superior a 25 hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele sua morada, adquirir-lhe-á a propriedade mediante sentença declaratória devidamente transcrita”.
Em 1964 foi aprovado o Estatuto da Terra, Lei nº 4.504 de 30 de novembro daquele ano, vindo a estabelecer em seu artigo 98 o seguinte:
“Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar por 10 anos ininterruptos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, tornando-o produtivo por seu trabalho, e tendo nele sua morada, trecho de terra com área caracterizada como suficiente, para, por seu cultivo direto pelo lavrador e sua família, garantir-lhe a subsistência, o progresso social e econômico, nas dimensões fixadas por esta lei para o módulo de propriedade, adquirir-lhe-á o domínio, mediante sentença declaratória devidamente transcrita”.
Conforme bem destaca Caio Mário:
“as características fundamentais desta categoria especial de usucapião baseiam-se no seu caráter social. Não basta que o usucapiente tenha a posse associada ao tempo. Requer-se, mais, que faça da gleba ocupada a sua morada e torne produtiva pelo seu trabalho ou seu cultivo direto, garantindo desta sorte a subsistência da família, e concorrendo para o progresso social e econômico. Se o fundamento ético da usucapião tradicional é o trabalho, como nos parágrafos anteriores deixamos assentado, maior ênfase encontra o esforço humano como elemento aquisitivo nesta modalidade especial”xviii.
Adiante, em 10 de dezembro de 1981, com a advento da Lei nº 6.969, foi reduzido o prazo para cinco anos na usucapião especial, trazendo também outras inovações como a possibilidade de aquisição por usucapião de bem público, exceto dos necessários à segurança nacional, às terras de interesse ecológico e às reservas indígenas, adotando o rito sumaríssimo para o usucapião de terras particulares, além de admitir a invocação do usucapião como matéria de defesa.