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A Lei n. 12.015/09 e a incoerência da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual

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17/04/2019 às 14:10
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A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE nº 4301 E OS PRINCÍPIOS DA PROIBIÇÃO DA PROTEÇÃO DEFICIENTE E DA DIGNIDADE HUMANA

Diante da incoerência da ação penal apresentada nos tópicos anteriores, advinda pela Lei nº 12.015/09 no que tange aos crimes sexuais, especificamente, estupro qualificado por lesão corporal grave ou morte, o Procurador Geral da República propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade que obteve o número 4301, cujo pedido principal requer:

[...] a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, do caput do art. 225, do Código Penal (Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940), na redação que lhe foi conferida pela Le 12.015, de 7 de agosto de 2009, para excluir do seu âmbito de incidência os crimes de estupro qualificado por lesão corporal grave ou morte, de modo a restaurar, em relação a tais modalidades delituosas, a regra geral da ação penal pública incondicionada (art. 100 do Código Penal e art. 24 do Código de Processo Penal. (STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4301).

Os argumentos utilizados pelo Procurador Geral da República, fundamenta-se no fato de que a alteração da ação penal aplicada nas modalidades delituosas em estudo, configura ofensa a princípios como a dignidade da pessoa humana, bem como, ao princípio da proteção da proibição deficiente, sendo este, vertente do princípio da proporcionalidade.

Dentre as preocupações apontadas na ADI nº 4301, está a possibilidade de retroatividade da norma, tendo vista ser esta mais favorável ao agente delituoso; outra preocupação parte da premissa da não aplicação da súmula 608 do STF, visto que, diante da alteração da ação penal não se vislumbraria mais a sua utilidade.

Conforme trecho retirado da ADI nº 4301:

A ofensa aos princípios da proporcionalidade sob o prisma da proibição da proteção deficiente (ou insuficiente), e da dignidade da pessoa humana materializa-se, no caso, pelo empecilho à persecução penal nos crimes de estupro qualificado por lesão corporal grave ou morte, tornando vulneráveis bens jurídicos que da mais alta importância- vida e saúde- sem uma razão suficiente forte que justificasse a opção legislativa. (STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4301).

Dessa forma, tem-se que a modificação feita pelo legislador foi infeliz, uma vez que não observou a proteção eficiente ao bem jurídico tutelado, qual seja, a dignidade sexual, que, com alteração no que concerne a ação penal, poderia, em alguns casos, por exemplo, no estupro qualificado, causar a impunidade do agente delituoso.

Princípio da proibição da proteção deficiente

Segundo o entendimento do professor Luiz Flávio Gomes, há diferença entre missão e função do Direito Penal. As funções versam sobre o papel que efetivamente ele vem cumprindo, enquanto a missão equivale aquilo que se espera que ele proporcione.

Explica ainda Luiz Flávio (2007, p.222) que a verdadeira função Direito Penal é ser instrumento para a proteção de bens jurídicos relevantes tais como, vida, integridade física etc. e que, às vezes, algumas de suas funções, acabam sendo desnecessárias, tais como a função promocional e a função simbólica.

Conforme ressalta o autor (2007, p.223):

Toda norma penal, ou melhor, o Direito penal como um todo sempre cumpre funções promocionais e simbólicas. Isso é inerente à força coercitiva da norma penal. O problema, no entanto, não está no fato de que a norma penal tenha função promocional ou simbólica, o mal está em o Poder Público valer-se do Direito penal para cumprir só ou prioritariamente essas funções, iludindo todos os seus destinatários com promessas vãs.

Referida crítica feita pelo autor, pode ser visualizada na elaboração da súmula 608, do STF, onde através do apelo da sociedade foi editada, caracterizando a função simbólica, qual seja, aquela visualizada quando se criam leis penais primordialmente como forma de demonstrar ações de combate à criminalidade.

O princípio da proibição da proteção deficiente surge como fator delimitador da vedação de excessos em matéria criminal, também chamado como garantismo positivo, haja vista que a formulação garantista, analisa sobre seu aspecto negativo e objetiva proibir a incidência do Direito Penal e Processual Penal de forma tirana, no entanto, não anular a força desses.

Destaca-se ainda que como dito anteriormente, o princípio da proibição da proteção deficiente é um viés do princípio da proporcionalidade, sendo este usado também para pesar entre dois ou mais princípios constitucionais que estejam em divergência, estabelecendo, no caso concreto, qual deve prevalecer sobre o outro. Geralmente, é utilizado, por exemplo, para solucionar conflitos entre direitos individuais e o interesse público.

Conforme cita Lenio Streck (XXXII, p.180):

Trata-se de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção positiva e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional o resultado do sopesamento (Abwägung) entre fins e meios; de outro, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental-social, como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da Constituição, e que tem como consequência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador.

É válido frisar que o processo penal, para ser eficiente, também deve garantir a harmonia do princípio da proibição da proteção deficiente com o princípio da proibição de excessos harmônica, não podendo pender para nenhum dos lados, sob pena de ferir preceitos constitucionais.

Na Ação Direta de Constitucionalidade nº 4301, verifica-se a proteção deficiente visto que, embora a Lei nº 12.015/09 tenha sido criada com o aparente intuito de tratar mais severamente os crimes sexuais, agiu no sentido contrário, quando alterou a forma de ser da ação penal nos crimes de estupro qualificado. Como consequência, conforme externado na inicial da ação constitucional, houve violação da dignidade da pessoa humana e do princípio constitucional da proporcionalidade na proteção dos bens jurídico-penais, o que deixou quase a exposto referidos interesses legalmente tutelados.

Diante disso é que se verifica a relevância do princípio da proporcionalidade na proteção dos direitos fundamentais como imperativos de tutela, especificamente em seu aspecto da proibição da proteção deficiente. Isto é, no momento em que o Estado se omite em seu dever de proteção dos direitos fundamentais, ou não o faz de forma eficiente, sua ação estará repleta de inconstitucionalidade por violar a proibição da proteção deficiente.

3.2 A dignidade da pessoa humana

A dignidade da pessoa humana, tem seu fundamento legal previsto na Constituição Federal art. 1, inciso III, a qual estabelece:

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: [...]

III - a dignidade da pessoa humana; (BRASIL, CF/88, art. 1º, III).

Sendo assim, a dignidade da pessoa humana se molda na sociedade na medida da sua evolução, e dessa forma, atende as necessidades dos indivíduos.

De toda sorte, é possível considerar que o princípio da dignidade da pessoa humana possui extrema importância e se apresenta como gênero no qual dignidade sexual é espécie. Nesse sentido, entende-se que ao cometer qualquer crime contra a dignidade sexual, lesiona-se não só a liberdade sexual e dignidade sexual da vítima, mas também a dignidade humana desta, devendo o Estado oferecer proteção eficiente ao indivíduo para tal violação ao direito.

Nesse sentido, Flávia Piovesan diz que (2000, p. 92):

É no valor da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. [...]

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É de grande importância esclarecer também que a dignidade humana é considerada um direito fundamental, visto que, deve ser protegida a fim de conceder a pessoa humana o mínimo de condição para sua sobrevivência.

Conforme Ingo Wolfgang Sarlet (2008, p.88):

A dignidade da pessoa humana, na condição de valor fundamental atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões. Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhes são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria dignidade.

Portanto, ao não observar o legislador quando alterou a ação penal no que concerne o estupro qualificado, verifica-se a ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana, quando tal alteração torna vulnerável a proteção ao bem jurídico tutelado pelo título VI do Código Penal Brasileiro, ou seja, a dignidade sexual e liberdade sexual (espécies do princípio mencionado anteriormente), uma vez que a proteção deficiente do estado para tais bens jurídicos, proporciona ao agente ativo do delito a impunidade.

A modificação traga pela Lei nº 12.015/09 no que concerne ao crime de estupro qualificado, quando não observou a proteção insuficiente do bem jurídico tutelado, favorecendo ao agente delituoso no sentido em que pode trazer benefício a este, não apenas proporciona a vítima uma violação da sua dignidade sexual, vida e integridade física, mas também a faz duplamente vítima, uma vez que vítima do seu agressor que a viola em sua dignidade humana, e ainda a faz vítima do próprio estado, visto ser insuficiente a proteção que deveria ser dada ao bem jurídico tutelado estudado no presente artigo jurídico.

Fere-se assim, o princípio da dignidade da pessoa humana duas vezes, vez que ora violado pelo agressor, ora violado pelo procedimento adotado pelo estado para a proteção insuficiente do bem jurídico, além de ferir a própria Constituição Federal, visto que, ao se fundamentar o texto constitucional na dignidade da pessoa humana, protegendo-a, coibi todas as ações que são contrárias à sua proteção.

Conforme Santos (2008, p.78):

A dignidade da pessoa humana constitui não apenas a garantia de que a pessoa não será objeto de ofensas ou humilhações, mas implica também, num sentido positivo, o pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo.

Cumpre registrar, que a Ação Direta de Inconstitucionalidade mencionada nos parágrafos anteriores, foi proposta no mesmo ano em que a Lei nº 12.015/09 entrou em vigor, porém até o presente ano 2017, não foi levada a julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, o que faz um total de 08 anos, ocorrendo sua última movimentação no ano de 2016.

Com a demora para o julgamento da referida ADI, se observa mais uma vez a violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, visto que, até o julgamento e a consolidação do posicionamento adotado pelo STF, no que concerne à ação penal aplicada ao crime de estupro qualificado, continuará a proceder-se através da ação penal pública condicionada a representação, o que poderá acarretar nos casos de morte da vítima sem representante legal para autorizar a continuação da persecução criminal pelo ministério público, a impunidade do agente delituoso e a consequente violação ao bem jurídico tutelado, qual seja, dignidade sexual, vida da vítima.

Afirma Sérgio Cavalieri Filho (2005, p.61):

“Entre os superiores princípios (valores) consagrados na Constituição de 1988, merece especial destaque o da dignidade da pessoa humana, colocado como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III). Temos hoje o que podemos chamar de direito subjetivo constitucional à dignidade. Ao assim fazer, a Constituição colocou o homem no vértice do ordenamento jurídico da Nação, fez dele a primeira e decisiva realidade, transformando os seus direitos no fio condutor de todos os ramos jurídicos. Isso é valor”.

Violando o princípio da dignidade da pessoa humana, viola-se, indiscutivelmente a constituição, por conseguinte, torna-se inconstitucional a aplicação da ação penal pública condicionada a representação ao crime de estupro qualificado por morte ou lesão corporal grave.

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Sobre a autora
Maria Clara de Lima Gomes

Graduada em Direito pelo Centro Universitário Tabosa de Almeida- Asces/Unita; Advogada, aprovada no XXV Exame da Ordem; Estagiária da Defensoria Pública do Estado de Pernambuco por 03 anos; Pós graduada em Direito Penal e Processo Penal Prático Contemporâneo pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Assessora de Magistrado no Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Maria Clara Lima. A Lei n. 12.015/09 e a incoerência da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5768, 17 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69619. Acesso em: 22 nov. 2024.

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