1. Introdução
O presente artigo versa sobre a trajetória das constituições brasileiras até a positivação do direito à saúde, bem como de que forma a Constituição Federal de 1988 se posicionou acerca dos direitos fundamentais. Ainda, será abordado o fenômeno da judicialização como forma de concretização de políticas públicas, já implementadas, no entanto, sem condições hábeis a entregar o direito positivado à sociedade nos termos delineados na Carta Maior.
A proposta é analisar as bases teóricas como forma de concretização do direito à saúde através da cooperação entre os poderes, sob uma perspectiva constitucional, trazendo recortes pontuais capazes de estabelecer diálogos produtivos acerca dos temas levantados no presente trabalho.
2 Positivação do direito à saúde no ordenamento jurídico brasileiro
Com o advento da Constituição Federal de 1988 o direito à saúde deixou de ser exclusivo aos trabalhadores, passando a ser considerado como direito fundamental, assegurado o acesso universal e igualitário com relevância pública. Todavia, o caminho percorrido até esta positivação se revelou extenso, como podemos verificar na trajetória histórica das constituições brasileiras.
Em 25.03.1824 foi promulgada a Constituição do Império[1], que trazia em seu texto constitucional algumas inovações no que dizia respeito aos direitos sociais, porém, em nenhum momento houve a normatização específica do direito à saúde, apenas alguns traços que posteriormente delineariam os Direitos Humanos do século XX.
Em 24.02.1891 houve a promulgação da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, através da qual se estabeleceu que o Brasil adotaria a forma de governo de República Federativa, sem novamente, qualquer positivação do direito à saúde.
Já em 16.07.1934, com a promulgação da segunda Constituição da República dos Estados do Brasil, houve algumas inovações com relação às preocupações sanitárias, conforme menciona Sturza, Cassol (2008, p.361):
"a influência dos políticos e doutrinadores estrangeiros se fez presente o tratamento dado à saúde na Constituição de 1934. Essa Constituição representou a inauguração do Estado Social brasileiro e trouxe consigo algumas tímidas preocupações sanitárias, descritas em seu art.138."
No entanto, a referida Constituição foi revogada com a promulgação da Carta Constitucional[2], em 10.11.1937, que se voltou para uma maior solidez do Poder Executivo, no tocante à elaboração das leis.
Somente nas Constituições de 1937 e 1946, houve uma tímida abordagem às competências de legislar sobre a saúde, bem como, amparo à assistência médica e sanitária aos trabalhadores. Neste aspecto, a Constituição de 1946, conforme menciona Sturza, Cassol (2008):
"se voltou às fontes formais do passado e nasceu de costas para o futuro, mas, mesmo dessa forma, não deixou de cumprir sua tarefa de redemocratização, propiciando condições para o desenvolvimento do país durante os vinte anos em que o regeu."
Em 09.04.1964, houve a expedição de um Ato Institucional, com intuito de manter a ordem no país, no período do Regime Militar. Embora o Brasil tenha reconhecido a Declaração Universal dos Direitos do Homem, isso não acarretou grandes alterações no sentido de garantir o direito à saúde na Constituição de 1964.
A Constituição promulgada em 24.01.1967, novamente, não demonstrou grandes avanços no tocante ao direito à saúde. Cuidou especificamente em dar ênfase aos assuntos referentes à reformulação do sistema tributário, da mesma forma, delineou com maior clareza os poderes conferidos à União, bem como ao Presidente da República.
Finalmente, em 1988, com a promulgação da Constituição Cidadã, que teve uma participação popular efetiva em sua elaboração, viu-se positivado o direito à saúde, através do seu artigo 196:
“Art.196: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
Após a positivação do direito à saúde como direito fundamental, o legislador cuidou de atribuir ao Poder Público o dever de garantir o acesso aos serviços e ações de saúde através de políticas públicas que visem à promoção, proteção e recuperação da saúde, sem prejuízo da participação do poder judiciário diante de ameaça ou lesão ao referido direito.
Neste aspecto, em razão da necessidade da intervenção do poder judiciário enquanto garantidor do direito fundamental à saúde, surge o fenômeno da judicialização, que será abordado especificamente no capítulo seguinte.
Cumpre então delimitar inicialmente, que a partir da criação de normas jurídicas definidoras de direitos fundamentais, compete à Administração Pública uma série de deveres que comportam ações positivas, consistindo inclusive, em prestações materiais e na implementação de programas eficientes, proporcionando o efetivo acesso a este rol de direitos fundamentais. Neste sentindo, bem ensina Queiroz (20011, p.131):
"como a criação de instituições, por normas, é um dever-meio de realização dos direitos fundamentais sociais prestacionais, visto que os sujeitos de direito têm seu direito subjetivo ao objeto próprio dos direitos, independentemente de interposição normativa dos poderes constituídos, já que os têm por um mandamento constitucional fundamental é a Administração Pública – órgãos e agentes do Poder Executivo- a encarregada primeira do dever de materializá-los, na forma de fornecimento aos sujeitos de direito da prestação que lhe é devida."
Nota-se que o entendimento é de que o Poder Executivo figura como primeiro ente competente para implementação de meios eficientes à promoção do direito à saúde, sem no entanto, excluir os demais poderes.
Todavia, a implementação de políticas públicas hábeis a assegurar o direito universal e igualitário à saúde, esbarra em diversas limitações dentro do âmbito do poder executivo, isso porque, o processo de implementação é relativamente complexo, envolvendo etapas específicas.
Analisando o conceito de políticas públicas, o mesmo remete para a esfera do público e seus problemas. Ou seja, diz respeito ao plano das questões coletivas, da polis (SCHMIDT, 2009). É justamente neste momento que se insere a participação da sociedade civil para a efetividade das políticas públicas, seja no âmbito do processo deliberativo, seja no controle fiscalizatório.
Tal conceito corrobora justamente com o próprio teor da constituição federal de 1988, que se reveste de uma caráter comunitarista, conforme leciona Bitencourt, Reck (2017 p.127):
"É real que a Constituição de 1988 possui forte cor comunitarista. O próprio momento de 1988, marcando a superação do difícil período de ditadura militar, torna compreensível a criação de tão forte teor comunitarista. Este teor não aparece só, como já visto, no estabelecimento de objetivos e princípios que não são voltados somente à realização da vida individual (mas sim que estabelecem projetos coletivos de felicidade baseados em uma perspectiva ética de auto entendimento de uma comunidade), mas também no preâmbulo da Constituição."
Assim, é possível concluir que a ideia central do legislador foi justamente maximizar os interesses nas comunidades e na sociedade, e não no indivíduo. Valorando de diversas formas a participação da sociedade em todas as etapas da implementação de políticas públicas.
No entanto, a quantidade de impedimentos que ocasionam a ineficácia das implementações eficientes no que tange à inserção de políticas públicas capazes de assegurar o direito básico de forma universal e igualitária, teve como consequência, um agigantamento de demandas judiciais em busca de efetividade, cumprindo ao judiciário se manifestar acerca de tal situação, ocasionando assim o fenômeno denominado como “judicialização”.
3 Uma análise principiológica da judicialização no direito à saúde
Em razão das dificuldades do Poder Executivo em implementar políticas públicas eficientes, a sociedade se viu compelida a buscar socorro nos braços do poder judiciário. O objeto do presente trabalho não é analisar as restrições que impedem a efetiva implementação das políticas públicas, mas sim, como as mesmas podem ser efetivamente entregues à sociedade através da judicialização do direito à saúde, e de que forma a sua efetivação será possível sob aspecto teórico das decisões.
Para elucidar o conceito de judicialização neste contexto, cumpre analisar o entendimento de Barroso (2015 p.3):
"Judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo – em cujo âmbito s encontram o Presidente da República, seus ministérios e a administração pública em geral. Com o intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. "
O conceito de judicialização do direito à saúde nos remete intimamente ao conceito de colaboração entre os poderes, permanecendo cada um deles com a sua autonomia, mas havendo a possibilidade de intercomunicação de funções de forma sistêmica, como forma de assegurar maior agilidade e cooperação nas demandas existentes.
Assim, após a delimitação da judicialização do direito à saúde, entramos no âmbito da apreciação do direito pelo judiciário, como caminho essencial para concretização do direto
Neste aspecto, cumpre relembrar que quando estamos diante de um direito fundamental, ele se torna exigível. Ocorre que em inúmeras situações existem conflitos que desafiam o julgador a analisar o caso em concreto de forma sistêmica, valorando direitos fundamentais e princípios constitucionais, como forma de contemplar o direito ali pleiteado. Com relação à valoração dos princípios, leciona Dworkin (2002 p.X):
"Se os princípios jurídicos fazem parte do direito, apesar do fato de que, neste caso, o direito possa ser natural é um argumento em favor das restrições que a Constituição impõe ao poder da maioria. Tanto a questão conceitual quanto as questões de jurisdição e legitimidade incidem de maneira óbvia sobre a teoria da observância da lei."
Ademais, os princípios possuem uma carga justificatória ampla, no entanto, não se bastam sozinhos. Daí, a função dos magistrados em identificar de que forma os princípios dão sentido a uma norma, adequando-os dentro dos casos concretos. Neste ponto, cumpre-nos aclarar os conceitos de princípios segundo a doutrina alemã. Já que os mesmos constituem fonte de aplicação do direito. Para tal, cumpre transcrever o que leciona Alexy (2011, p.87):
[...] princípios são normas com grau de generalidade relativamente alto, enquanto o grau de generalidade das regras é relativamente baixo. Um exemplo de norma de grau de generalidade relativamente alto é a norma que garante a liberdade de crença. De outro lado, uma norma de grau de generalidade relativamente baixo seria a norma que prevê que todo preso tem o direito de converter outros presos à sua crença. Segundo o critério de generalidade, seria possível pensar em classificar a primeira norma como princípio, e a segunda como regra.
Diante da complexidade envolvida no controle judicial de políticas públicas, percebe-se que a valoração de princípios constitucionais compõe a base teórica das decisões que emergem do poder judiciário a partir da judicialização do direito à saúde.
Ainda, com relação ao conceito de princípios norteadores estabelecidos por Alexy, é possível destacar que o princípio impõe que algo seja decidido dentro das possibilidades jurídicas e fática de cada caso, cumpre transcrever o entendimento de Alexy (2011, p.90-91):
"princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes."
Os princípios são fontes formais mediatas do direito, sendo que a aplicabilidade de um, não incide a exclusão do outro. Desta forma, necessária é a ponderação equânime, como forma de aplicação sistêmica e abrangente com relação ao caso posto em análise.
Quando falamos de direito subjetivo individual a uma prestação material envolvendo o direito à saúde, podemos citar um exemplo corriqueiro, qual seja, o não fornecimento de medicamento a um indivíduo, por razões de ausência de recursos orçamentários, por exemplo.
Neste caso, estamos diante da necessidade do indivíduo, após efetuar diligências administrativas com o intuito de suprir à referida necessidade, e não obtendo êxito, aforar uma lide para que o poder judiciário determine que a administração pública forneça tal medicamento. Nota-se que neste caso, já existe uma política pública que tem por escopo a prestação material de determinado medicamento, no entanto, a mesma não vem sendo cumprida. Os aspectos que importam à dificuldade de concretização dessa prestação material são diversos, configurando inclusive, princípios como a “reserva do possível”.
De encontro a este princípio, observamos a necessidade de assegurar o mínimo existencial, bem como a proteção de direitos fundamentais.
Em casos como este, se delimita a judicialização de uma necessidade específica, em um caso concreto. Todavia, no caso de controle de demandas de políticas públicas, é imprescindível a valoração do caráter universal, ou seja, a decisão deverá atingir a todos que necessitem de amparo naquela determinada situação. Neste contexto, cumpre descrever o que leciona Brum (2014, p.36):
[...] mesmo que a ação fosse ajuizada para beneficiar apenas uma pessoa (demanda individual), penso que ainda assim seria possível falarmos em judicialização da política pública. [...] as decisões judiciais devem obedecer o critério de universalizabilidade, de modo que um caso decidido de determinada maneira em favor de um indivíduo deverá ser decidido da mesma maneira para todos os outros indivíduos que estiverem em situação semelhante.
As demandas que envolvem a temática abordada no presente trabalho, além de possuírem um núcleo de alta complexidade, em razão do conflito de princípios que de toda forma precisam ser contemplados, demandam uma fundamentação coerente em face de estarmos diante de questões fáticas e interpretativas opostas, porquanto de um lado tem-se a necessidade premente de resguardo de um direito fundamental, e de outro uma restrição em prestá-lo.
Cumpre-nos entender qual é a função desempenhada pelos princípios em face da justificação apresentada pelo julgador, que deve impreterivelmente estabelecer uma visão coerente no âmbito do Direito. Nestes termos, nos ensina Brum (2014, p.126):
"a função do princípio, nesta contextura, será a de determinar “a faixa legítima de considerações justificatórias” a serem apresentadas pelo julgador. Não fornecerá, pois, sozinho, uma resposta conclusiva. O argumento à luz da coerência deve ser processado então da seguinte maneira. O juiz faz uma investigação sobre princípios ou valores que, na medida do possível, dão sentido a um conjunto de normas jurídicas e precedentes candidatos a incidir na espécie."
A abordagem da base teórica das decisões apoiadas em valoração de princípios é justamente um recorte importante para que se identifique as distinções entre as atividades dos poderes, como já mencionado, podem, ou melhor, devem se complementar, como forma de entregar o melhor resultado à sociedade.
As demandas judiciais surgem por uma impossibilidade do poder executivo cumprir à legislação que assegura um direito fundamental ao cidadão. Essa impossibilidade deve ser analisada, assim como a necessidade da situação de risco. Neste aspecto, há que se atentar para o fato de que o poder judiciário entra em contato com a demanda em si, com o caso concreto, diferentemente dos outros poderes que trabalham no âmbito de alta complexidade e contingência. Estas diferenciações são essenciais para que se compreenda às especificidades de cada atividade, sem que uma exclua a competência das demais.