Artigo Destaque dos editores

Que venham os Conselhos Estaduais de Justiça

Exibindo página 1 de 2
08/07/2005 às 00:00
Leia nesta página:

            Primeiramente se faz necessário uma rápida e lúcida explanação sobre o modelo organizacional do Poder Judiciário brasileiro, para termos uma pequena noção do que representa a implantação dos Conselhos Estaduais de Justiça para o alcance, ainda longínquo, da democratização judiciária.


O modelo organizacional tecnoburocrático em detrimento ao democrático como causa da dependência interna do judiciário

            Não seria prudente, neste trabalho de pesquisa, esclarecer sobre a função legislativa do Poder Judiciário sem antes transparecer, mesmo que superficialmente, a organização interna do Poder Judiciário.

            Seria ingênuo de nossa parte acreditar que o reflexo da organização interna do Poder Judiciário não é sentido no cumprimento das suas atribuições, inclusive a administrativa e a legislativa.

            Inicialmente, atentemos ao modo de estruturar o exercício do poder no Judiciário. José de Albuquerque Rocha (1995) descreve os seguintes modos:

            "Nesse sentido vamos fazer uma corte na realidade, isto é, vamos reduzir os inúmeros tipos de organização de poder existentes na realidade, para trabalharmos com apenas dois tipos de organizar o exercício do poder: o burocrático e o democrático.

            Portanto, para nossos fins, as organizações, do ponto de vista do exercício do poder, ou são burocráticas ou democráticas.

            As burocracias se caracterizam pelo fato de o poder ser hierarquizado, significando que o exercício do poder está condicionado ao lugar que a pessoa ocupa na organização. Portanto, o poder de mando nas organizações burocráticas decorre do posto que se ocupa nela, de uma relação superior-inferior. Em síntese, a burocracia é o modo de exercício do poder em que este desce dos governantes para os governados, de cima para baixo.

            As organizações democráticas, ao contrário, se caracterizam pelo fato de o poder derivar da participação política dos interessados na formação dos órgãos de poder, de modo que nem governa o faz em nome de todos, ou da maioria. Em síntese, a democracia é modo de exercício do poder em que este sobe dos governados para os governantes, de baixo para cima (Bobbio)". (1) (grifos nossos).

            O poder burocrático interno é exercido de cima para baixo e não o inverso conforme a organização democrática. Assim sendo a primeira característica da organização interna do Judiciário exsurge: burocrática. Porém, a organização do Poder Judiciário brasileiro já se aprofundou tanto neste modo organizativo que não se classifica como meramente burocrática, e sim em sua espécie metamórfica evolutiva mais adaptada aos tempos em que vivemos: a tecnoburocracia.

            A classificação da estrutura judiciária brasileira como tecnoburocática é feita por Eugenio Raul Zaffaroni (1995): "O caso do Brasil, adiantamos, segundo nosso juízo, é o único da estrutura judiciária latino-americana que escapa ao modelo empírico-primitivo, pois corresponde preferencialmente ao modelo tecno-burocrático". (2)

            A demonstração que a tecnoburocracia é a correspondente evolutiva da burocracia e a respectiva diferenciação são lecionadas por Antonio Carlos Wolkmer (2000) citando L. C. B. Pereira:

            "Aprofundando a questão, convém, inicialmente, com faz L.C. B. Pereira, distinguir a expressão burocracia da tecnoburocracia, que com muita freqüência são usadas nos textos de Ciências Sociais. Desta forma, a tecnoburocracia ‘pode ser entendida como uma forma mais moderna ou mais técnica de burocracia. A autoridade tecnoburocrática é também racional-legal, mas a legitimação jurídica cede em grande parte à legitimação técnica. A eficiência da organização é o objetivo essencial. Enquanto a organização burocrática tende facilmente para a rigidez, com base no princípio da unidade de comando e da centralização administrativa, a organização tecnoburocrática é muito mais flexível: abandona o princípio da unidade de comando para apoiar-se em combinações várias e superpostas de autoridades de linha e autoridades funcionais’". (3)

            No Brasil esta transmudação, da burocracia para a tecnoburocracia, pode ser claramente exemplificada com a inclusão do princípio da eficiência na Administração Pública, e especificamente no Poder Judiciário; a maior destinação de atribuições à função do cargo de escrivão.

            A burocracia estatal, entendida como gênero englobante da tecnoburocracia, no Judiciário é o meio de organização mais eficaz no atendimento aos interesses das autoridades judiciárias. Porém submete aos jurisdicionados e aos servidores hierarquicamente inferiores a um sistema estático e incompatível com a dinamicidade do direito. Antonio Carlos Wolkmer (2000) leciona citando Karl Mannheim:

            "Na proposição da sociologia do conhecimento, verifica-se que Mannheim explicita que a tendência de todo pensamento burocrático é converter ‘os problemas de política em problemas de administração’.

            Dessa forma, segundo o teorizados de Ideologia e utopia, ‘a mentalidade jurídica administrativa só sabe construir sistemas de pensamento estáticos e fechados, deparando sempre com a tarefa paradoxal de ter que incorporar novas leis a seu sistema, leis que emergem da interação não-sistematizada de forças vivas como se fossem apenas uma elaboração do sistema original’. Em seu argumento, Mannheim afirma que cada burocracia ‘tende a generalizar sua experiência e a desconsiderar o fato de que o campo da administração e da ordem em funcionamento regular representa apenas uma parte da realidade política total’." (4)

            Vale ressaltar que também é configurada incompatibilidade entre este sistema de organização burocrático e o princípio democrático, norteador do outro sistema de organização de mesmo nome. Recorremos as palavras de José de Albuquerque Rocha (1995):

            "Então, a respeito do judiciário, as normas constitucionais que o estruturam, imprimindo-lhe um caráter burocrático, aparecem dissociadas do princípio constitucional fundamental que é o princípio democrático.

            (...)

            Como o princípio democrático é um princípio jurídico fundamental, ou seja, é uma norma jurídica básica da qual dependem as demais normas que tratam do exercício do poder, a conclusão a que chegamos nesse sentido é que as normas sobre a organização interna do judiciário devem se harmonizar com o princípio democrático através de uma adequada interpretação, ou de sua modificação por emenda á Constituição". (5)

            A burocracia é característica inerente ao sistema de organização interna do Judiciário brasileiro. Consiste numa dupla vinculação da subordinação do Juiz singular ao Tribunal, tanto no exercício da função jurisdicional e administrativa. Raul Eugênio Zaffaroni (1995) com maestria anota as premissas irrefutáveis da dependência interna do Judiciário, dada em relação ao magistrado de primeira instância, e a externa dada em relação ao Judiciário enquanto Poder:

            "A independência do juiz, ao réves, é a que importa a garantia que o magistrado não estará submetido às pressões de poderes externos à própria magistratura, mas também implica a segurança de que o juiz não sofrerá as pressões dor órgãos colegiados da própria judicatura.

            Um juiz independente, ou melhor, um juiz, simplesmente, não pode ser concebido em uma democracia moderna como um empregado do executivo ou do legislativo, mas nem pode ser um empregado da corte ou do supremo tribunal. Um poder judiciário não é hoje concebível como mais um ramo da administração e, portanto, não se pode conceber sua estrutura na forma hierarquizada de um exército. Um judiciário verticalmente militarizado é tão aberrante e perigoso quanto um exército horizontalizado". (6) (grifos nossos).

            O magistrado argentino esclarece que a dependência interna do Judiciário, ou seja, a sua composição hierárquica verticalmente, é proporcional a dependência externa do sistema organizacional. Porém apresenta a ressalva de que a dependência interna é o sintoma mais grave deste sistema burocrático e assim antidemocrático, e que necessariamente os atos advindos deste sistema, em sua quase totalidade, são motivados por uma mentalidade irracional:

            "A pressão sofrida pelos juízes em face de lesão à sua independência externa, em um país democrático, é relativamente neutralizável, por via da liberdade de informação, de expressão e de crítica, mas a lesão de sua independência interna é muito mais contínua, sutil, humanamente deteriorante e eticamente degradante. Quanto menor independência externa possua, maior parece ser a compensação buscada pelos seus corpos colegiados no exercício tirânico de seu poder interno. Em uma magistratura com estes vícios é quase impossível que seus atos sejam racionais". (7) (grifos nossos).

            A dependência externa é entendida como a influência dos meios externos na atividade administrativa e jurisdicional do judiciário. Isso ocorre até o momento em que o poder político e econômico consiga através de seus sustentáculos influenciar no gerenciamento do judiciário e na sua atividade precípua de julgamento de conflitos. Tal influência é causada pela falta de total autonomia orçamentária do judiciário e ainda pela perseverança do modelo burocrático ao longo dos tempos. Pois tal influência não é natural de nossos tempos e sim uma tradição que se constata em épocas outroras. Ives Gandra da Silva Martins Filho (2000) ratifica a longínqua historicidade desta influência:

            "A influência dos donatários das capitanias também se fazia sentir sobre os ouvidores em suas comarcas, razão pela qual também se fez mister afastar essa ingerência indevida do poder administrativo sobre o poder judicial. Assim, por Alvará de 24 de março de 1708, deixou-se claro que os ouvidores das capitanias eram juízes da coroa e não dos donatários". (8)

            A dupla subordinação interna acarreta um estimulo a dependência dos juízes singulares ao Tribunal. Este estimulo é capaz de limitar a interpretação dos juízes singulares, pois sempre sugerirá, seja administrativa e jurisprudencialmente, que somente se reconhece o devido mérito àqueles magistrados que seguem as orientações emanadas de seus superiores.

            A independência plena do magistrado, entendida esta como condição de trabalho sem qualquer influência interna ou externa, conduzir-lhe-á ao exercício de todas suas atribuições compelidas com finalidade exclusiva na busca da justiça. Dalmo de Abreu Dallari (2002) pondera:

            "Porque motivo a magistratura deve ser independente? A resposta a essa indagação tem como ponto de partida os teóricos liberais-racionalistas do século dezoito: a magistratura independente é que pode garantir a eficácia das regras de comportamento social inspiradas na busca da justiça.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

            (...)

            A magistratura deve ser independente para que possa se orientar no sentido da justiça, decidindo com equidade os conflitos de interesses. O juiz não pode sofrer qualquer espécie de violência, de ameaça ou de constrangimento material, moral ou psicológico. Ele necessita da independência para poder desempenhar plenamente suas funções, decidindo com serenidade e imparcialidade, cumprindo verdadeira missão no interesse da sociedade". (9)


O surgimento da oligarquia judiciária pela perpetuação do modelo burocrático

            Do exercício perpétuo do poder através da burocracia, na qual somente os membros do órgão colegiado e não todos os membros do judiciário exercem o poder de escolha, emana uma outra característica da organização do Judiciário, a autocracia. Este exercício, exclusivo, do poder de escolha, pelos membros do Tribunal, por critérios altamente subjetivos, consiste em definir qual será o magistrado de entrância especial que será conduzido ao ingresso da cúpula, ou seja, será alavancado ao cargo de desembargador, conforme salienta José de Albuquerque Rocha (1995):

            "Com efeito, a estrutura interna do Judiciário, como vimos, compõe-se de órgãos inferiores (juízes) e superiores (tribunais). Aos últimos cabe a tarefa de governar o aparelho (função de administração) e, ao mesmo tempo revisar as decisões jurisdicionais dos órgãos inferiores (função jurisdicional).

            Na qualidade de órgãos do governo, os tribunais detêm a competência para decidir sobre todos os aspectos da vida estatutária dos magistrados enquanto servidores públicos. Por sua vez, na qualidade de órgãos jurisdicionados superiores, têm poder para rever as decisões dos inferiores, podendo confirma-las ou reformá-las.

            (...)

            Efeito obvio do modelo burocrático é a completa autonomia dos centros detentores do poder na organização, que definem, soberanamente, ou seja, sem a participação dos demais segmentos, as regras que presidem as relações no interior do grupo, principalmente as regras sobre o acesso aos órgãos do vértice da pirâmide, circunstância que os torna independentes de qualquer controle ou interferência daqueles sobre os quais exercem o poder, circunstância que caracteriza, justamente, o poder burocrático.

            Como não podia deixar de ser, este aspecto está presente também na forma de estruturação do Judiciário, onde os modos de designação e eleição para os tribunais são decididos por seus próprios membros, ou seja, sem a participação direta ou indireta dos outros segmentos.

            Obviamente, isto transforma os órgãos dirigentes do Judiciário em uma autocracia, no sentido de que são independentes da coletividade dos administrados, sobre os quais exercem um poder praticamente absoluto". (10) (grifos nossos).

            Ao longo do tempo o modo autocrático de escolha dos membros dos Tribunais foi se perpetuando. Formou-se com isso um seleto grupo de magistrados envolto numa suposta legitimidade inatingível e assim capaz de exercer seus interesses sem qualquer empecilho. Caso esteja incluído, nestes interesses, a passagem de um magistrado em detrimento de outro, de uma estância à outra, ou ainda, a posse de juiz como desembargador assim será feito, em conformidade com os pressupostos vagos da discricionariedade do ato de provimento de promoção; por antigüidade ou por merecimento.

            Em contraposição a este modelo burocrático está, mais uma vez, o sistema moderno democrático contemporâneo. Tal sistema é um avanço histórico a ser dado necessariamente pelo Estado que anseia a democracia em suas veias organizacionais.

            A luta pela democracia passa indubitavelmente por um judiciário independente externamente do poder político e econômico e internamente num sentido de livre atuação dos membros que o compõe, não havendo subordinação, mas sim distribuição de competências. Eugênio Raul Zafforini (1995) salienta como primeira medida para sublevação da organização democrática em detrimento do burocrático a transferência das funções de controle interno e disciplinares a um órgão democrático como o conselho:

            "Os modelos democráticos modernos procuram reduzir a hierarquia interna do judiciário, tornando realidade e premissa de que entre juízes não há hierarquia, mas diferença de competências. A chave deste objetivo se acha na transferência das funções de controle interno e disciplinares a um órgão democrático como o conselho". (11)

            O grupo que se aproveita perpetuamente do próprio sistema de organização burocrático e autocrático de escolha dos membros da magistratura componentes da mais alta esfera do judiciário estadual é a oligarquia judiciária. Esta é a conseqüência que atinge o plano da moralidade administrativa do judiciário, sobretudo o estadual, trazida pelo modelo autocrático, assim descrita por José de Albuquerque Rocha (1995):

            "Vimos, ao analisar a estrutura administrativa do judiciário, que o governo da instituição é exercido pelos tribunais. A composição dos tribunais não obedece aos procedimentos democráticos, já que seus membros são escolhidos pelo próprio tribunal. Esse modo de formação dos tribunais transforma-os em uma oligarquia, ou seja, em um pequeno grupo que governa em seu próprio nome, dominando, de forma incontrastável, o governo da instituição judiciária, sem nenhuma dependência dos demais interessados". (12)


A mentalidade irracional e imoral da oligarquia judiciária como determinante na função do Judiciário

            A oligarquia judiciária ao seu bel interesse dita os parâmetros a serem seguidos, inclusive no campo financeiro de distribuição orçamentária.

            Nas comarcas os provimentos administrativos advindos dos Diretores do Foro ficam sujeitos a tais parâmetros, pois a estrutura burocrática aliada à autocracia é meio e modo, respectivamente, que a oligarquia faz imperar em todos os atos administrativos, e também em quase todos os atos jurisdicionais, a sua vontade.

            A grande problemática é quando tal vontade não encontra limites e se transforma em arbitrariedade, desviando-se do interesse público para o particular. José de Albuquerque Rocha (1995) faz esta ressalva: "A experiência histórica mostra que o exercício do poder sem controle leva, fatalmente, ao seu abuso e desvio, produzindo uma série de vícios, entre os quais aquele que, em termos muito gerais chamamos de corrupção, em suas inúmeras modalidades". (13)

            O magistrado aposentado menciona que são inúmeras as possibilidades de corrupção dentro do Poder Judiciário.

            O enraizamento da imoralidade e da irracionalidade dentro dos oligarcas jurisdicionais leva ao nascimento da mais brutal forma de corrupção imposta aos jurisdicionados, sendo esta não só capaz de comprometer toda a função jurisdicional precípua do judiciário, como também atinge o estado de direito: a restrição do acesso à justiça.

            É este ato imoral um exemplo significativo de produto de uma mentalidade organizacional irracional e imoral. Juiz de Direito em Santa Catarina, doutor Joel Dias Figueira Júnior (1992) pondera:

            "No momento em que o Judiciário se tornar enfraquecido e desestruturado ao ponto de influenciar indiretamente no espírito de seus jurisdicionados à renúncia do direito, resultando na dificuldade de acesso aos tribunais por múltiplos fatores de ordem interna e externa estará, antes de mais nada, renunciando a si mesmo, a estabilização do Estado de Direito e a paz social". (14)

            Independentemente da forma que a restrição do acesso à justiça encontre a sua concretização, seja usando ou não da função legislativa do Poder Judiciário, esta restrição é, e sempre será, inconciliável com bem dito por Figueira Júnior, com o Estado de Direito, mas também com o ressalvado constitucionalmente Estado Democrático de Direito.

            José Afonso da Silva (2000), mestre constitucionalista, numa brilhante explanação, assevera que o Estado Democrático de Direito absorve os componentes do Estado de Direito e o Estado Democrático acrescentando a participação popular em todos os elementos constitutivos do Estado como essência desta qualificação:

            "A configuração do Estado Democrático de Direito não significa apenas unir formalmente os conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo. E ai se entremostra a extreme importância do art. 1º da Constituição de 1988, quando afirma que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, não como mera promessa de organizar tal Estado, pois a Constituição ai já o está proclamando e fundando.

            A Constituição portuguesa instaura o Estado de Direito Democrático, com ‘democrático’ qualificando o Direito e não o Estado. Essa é uma diferença formal entre ambas as constituições. A nossa emprega a expressão mais adequada, cunhada pela doutrina, em que o ‘democrático’ qualifica o Estado, o que irradia os valores da democracia sobre todos os elementos constitutivos do Estado e, pois, também sobre a ordem jurídica". (15) (grifos nossos).

            O mestre em suas palavras expressa as características do Estado Democrático de Direito, mister se faz ressaltar que as mesmas se contradizem com veemência ao modelo burocrático do judiciário brasileiro, pois este modelo leva o judiciário a não se organizar pelo critério de melhor atendimento ao interesse do povo, contrapondo inclusive sobre a norma fundamental do sistema jurídico brasileiro, e sim pelos mais diversos interesses subjetivos:

            "A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo, pluralista, porque respeita a pluralidade de idéias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade, há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício". (16) (grifos nossos).

            Este Estado Democrático de Direito determina que a sistematicidade jurídica tenha como norma fundamental que a origem de todo poder é o povo e que esta mesma sistematicidade jurídica encontre a justiça como finalidade maior, que use a justiça como axioma essencial para a valoração do fato para a composição da norma, e que principalmente transfigure-se numa Justiça, como instituição representada pelo Poder Judiciário, acessível por todos aqueles que lutam por direito.

            A independência dos magistrados é necessária medida protetora ao pleno exercício, e não simplesmente formal e factoíde, do cumprimento do Estado Democrático de Direito. É de suma importância para a coletividade contar com um Poder Judiciário independente, pois assim é certo que o juiz, ao analisar o caso concreto, estará sempre buscando nada além da justiça.

            Os primeiros interessados na independência devem ser os próprios juízes, apontando as falhas da organização do judiciário, lutando pelo desvencilhamento dos oligarcas judiciários. Dalmo de Abreu Dallari (2002) descreve:

            "Deve-se procurar conhecer a realidade da magistratura e, quando for o caso, reconhecer honesta e serenamente suas eventuais falhas de organização e funcionamento. Para o conhecimento dessa realidade é muito importante a contribuição dos próprios juízes, pois embora não sejam eles os únicos a perceber e sentir as deficiências, existem particularidades que se referem especificamente aos encargos, às necessidades e às responsabilidades dos juízes e que eles conhecem melhor do que ninguém ou, eventualmente, podem ser os únicos a conhecer". (17)

            Esta luta por independência faz parte inerente da construção da democracia, ainda jovem e imatura em nosso país. Histórias de outros países apontam que tal luta é o caminho para a moralização da justiça e ainda a garantia da respeitabilidade desta perante a sociedade. A descrição de Dalmo de Abreu Dallari (2002) evidencia:

            "As experiências da Itália e da França demonstrou que, em lugar da desmoralização do Judiciário e de sua perde de autoridade, prevista pelos tradicionalistas, o que ocorreu foi justamente o contrário, começando a definir-se uma nova imagem dos juízes, muito mais positiva. Na imprensa e na opinião pública os juízes passaram a ser vistos como independentes das oligarquias tradicionais e, por isso mesmo, capazes de exercer o papel de ativos defensores da moralidade pública. A magistratura começou a ser avaliada como única instituição com autoridade moral e força jurídica suficientes para enfrentar a criminalidade organizada, infiltrada nos mais importantes órgãos públicos. E a independência da magistratura passou a ser vista como relevante para o interesse público, muito mais do que para os próprios juízes". (18)

            Ratifica este posicionamento o falecido Leopoldino Marques do Amaral (1997), transcrevendo a necessidade de o Poder Judiciário tornar-se democrático, pois é justamente a falta deste aspecto que o torna malsinado pela sociedade:

            "É a falta de democracia no Judiciário a grande responsável pela situação em que o mesmo se encontra diante da opinião pública.

            (...)

            Urge, pois, que o Judiciário banha-se nas águas cristalinas da democracia, ensope-se nelas, revitalizando-se, curando a sua pele eczemada, beba desse líquido leve e revigorante, para revitalizar seus órgãos quase necrosados e ganhe em responsabilidade". (19)

            A mentalidade irracional e imoral dominante no sistema organizacional burocrático dependente do judiciário é determinante para o tolhimento do Estado Democrático de Direito pela restrição do acesso à justiça, pois esta inibe aquele que luta por direito, inviabiliza o julgamento do caso concreto, e assim não estará afetando somente as partes envolvidas na questão como pensam os tecnocratas-burocráticos e operários do direito, mas também todo o sistema jurídico. As doutas palavras de Augusto Tavares Rosa Marcacini (2001) se fazem necessárias:

            "Mas, se o conflito não vem à apreciação do Judiciário porque, embora querendo solucioná-lo, o interessado enfrente barreiras intransponíveis, ou que dificultem o acesso à Justiça, estamos diante de uma falha do sistema: este conflito não será solucionado pelo poder estatal, o Direito não será imposto neste caso concreto. A própria soberania estatal é posta em xeque e denota a impotência do Estado para fazer cumprir o ordenamento jurídico dentro de seu território". (20)

            O caso concreto nada mais é do que o uso prático das normas integrantes do sistema jurídico ao conflito de interesses apresentado pelas partes. A concretização das condutas hipotéticas descritas nas Leis dar-se-á pelo seu enquadramento nas condutas da partes integrantes do caso concreto.

            O caso concreto é a corporificação do sistema jurídico, e abusando da metáfora, a restrição do acesso à justiça é torná-lo acéfalo. È caso concreto que apresento, é a concretização do viés democrático do judiciário através da implantação dos conselhos de justiça no âmbito estadual.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Bruno José Ricci Boaventura

sócio do Escritório Boaventura Advogados Associados S/C

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOAVENTURA, Bruno José Ricci. Que venham os Conselhos Estaduais de Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 733, 8 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6968. Acesso em: 18 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos