Questão que historicamente causou divergência de opiniões no meio jurídico é sobre a extensão do significado da expressão "atos libidinosos" para fins de enquadramento criminal na legislação positiva. O ponto culminante da discussão se acentuou ainda mais após o caso ocorrido em São Paulo, amplamente divulgado nos meios de comunicação quando um homem ejaculou em uma mulher dentro de um ônibus.
Em artigo por nós escrito1, nos propusemos a analisar a tipificação criminal adequada daquela conduta diante dos tipos penais incriminadores vigentes à data do fato, quando, então, fomos categóricos em afirmar que a lei penal possuía apenas dois artigos nos quais aquela conduta se amoldava de forma natural, sem que fosse necessário um malabarismo jurídico para seu enquadramento penal. Veja-se:
Assim, afastada a aplicação das teses acima analisadas, com o devido respeito aos seus defensores, resta fazer referência aos tipos penais aonde a conduta do “homem que ejacula em mulher dentro de veículo de transporte público” se amolda de forma natural, sem que seja necessário “forçar” a subsunção típica.
Trata-se do art. 233. do Código Penal, que descreve a conduta de “praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público”, já que o agente masturbou-se em local público; e do art. 61. da Lei das Contravenções Penais, que descreve a conduta daquele que “importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor”, pois que embora o agente pretendesse satisfazer sua libido, importunou pessoa certa em local público.
Por muito tempo os aplicadores da lei sofreram com a inexistência de um comando legal incriminador que promovesse uma subsunção típica adequada e com sanção penal razoável para condutas desta natureza.
Esse cenário perdurou até a entrada em vigor da Lei 13.718, em 24 de setembro de 2018, que alterou o Código Penal para, entre outras modificações, tipificar o crime de importunação sexual. O novo tipo penal está inserido no artigo 215-A, cuja redação incrimina a conduta daquele que “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”, atribuindo-se pena de um a cinco anos de reclusão, se o ato não constituir crime mais grave.
Com a criação deste novo crime, o legislador revogou o artigo 61 da Lei das Contravenções Penais2, estipulando uma pena mais razoável e adequada, e, indiscutivelmente, tutelando de forma mais proporcional a dignidade sexual das vítimas. Repare-se que a pena da contravenção revogada era apenas “multa”.
Em decorrência da nova pena, esses casos não serão mais tratados sob o manto descriminalizador da Lei 9.099/95, de modo que o agente não terá mais a sua conduta formalizada em Termo Circunstanciado, com a possibilidade de ser colocado imediatamente em liberdade (em caso de flagrante) após assinar o termo de comparecimento ao juizado especial criminal. Agora, o comportamento criminoso será apurado por inquérito policial, com possibilidade de lavratura de auto de prisão em flagrante pelo delegado de polícia, o qual, aliás, não poderá arbitrar fiança3.
Nesse passo, condutas que antes eram consideradas contravenções penais, e, portanto, infrações de menor potencial ofensivo, agora, em razão da pena abstrata, passam a ser infrações de médio potencial ofensivo, permitindo apenas a aplicação da suspensão condicional do processo4.
Registre-se: ainda que tenha sido revogado o artigo 61 da Lei das Contravenções Penais, não há que se falar em abolitio criminis quanto às condutas praticadas na sua vigência, pois se aplica, neste caso, o princípio da continuidade normativo-típica. Na mesma esteira, não há que se falar em retroatividade do novo dispositivo para alcançar condutas praticadas antes da sua vigência, uma vez que, em homenagem ao princípio da irretroatividade da lei penal, por se tratar de clara novatio legis in pejus, esta não pode atingir fatos já ocorridos.
Cumpre frisar, ainda, que a criação deste novo crime, como corolário do princípio da proporcionalidade, viabiliza um enquadramento típico melhor para os atos libidinosos não invasivos e de pequena gravidade social, v.g., beijo roubado, apalpamentos (passar de mãos) e “encoxamento”. É que, antes do dispositivo legal em comento, os aplicadores da lei penal tinham muita dificuldade para viabilizar uma responsabilização proporcional. Estava-se literalmente entre a cruz e a espada, pois havia somente dois caminhos para tipificação: como importunação ofensiva ao pudor (contravenção penal, punida com multa)5 ou como estupro (crime punido com reclusão de seis a vinte anos). Era oito ou oitenta!
De acordo com as circunstancias do caso, era comum perceber-se que, em alguns casos, somente a pena de multa seria pouco para reprimir a ação do agente (desproporcionalidade por proteção deficiente do bem jurídico) e, em outros casos, a reclusão de 06 a 20 anos seria muito (desproporcionalidade por excesso de punição).
Agora, no entanto, o legislador corrigiu esse “abismo punitivo” que se tinha nos casos de atos libidinosos de baixa e média gravidade, cuja subsunção penal no estupro, até para os adeptos do punitivismo, soava desarrazoada. Assim, para nós, ainda que alguma crítica possa ser feita à reforma implementada pela Lei 13.718, não se pode deixar de reconhecer que estas condutas intermediárias foram mais bem tipificadas.
E, conquanto o tipo incriminador tenha sido criado em resposta ao caso emblemático, referido no início, que ganhou grande repercussão na mídia, evidenciando que o legislador agiu contagiado pelo “populismo penal”, não podemos esquecer que a doutrina e a jurisprudência, de longa data, clamavam por um dispositivo penal mais justo e eficaz na repressão desses atos, que viesse para sanar a lacuna legal que dificultava a punição adequada desses comportamentos desvirtuados.
Notas
1 GARCEZ. William. O caso do ejaculador, os atos libidinosos e o enquadramento criminal dessas condutas na legislação brasileira. Disponível em: <https://www.delegados.com.br/component/k2/o-ejaculador-os-atos-libidinosos-e-o-enquadramento-criminal-dessas-condutas>. Acessado em 08 de outubro de 2018.
2 Artigo 3°, II, da Lei 13.718/2018.
3 Artigo 322, caput, do Código de Processo Penal.
4 Artigo 89 da Lei 9.099/95.
5 Ou, em alguns casos, não fosse a ação praticada em “local público ou acessível ao público”, a aplicação da contravenção penal descrita no artigo 65 do Decreto-Lei 3.688/41 (perturbação da tranquilidade, punida com prisão simples de quinze dias a dois meses).