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A mentira como elemento da ampla defesa no ordenamento jurídico constitucional processual penal brasileiro: possibilidade, alcance e dimensão

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Resumo:


  • O direito do acusado de mentir em juízo é objeto de debate no sistema jurídico brasileiro, sendo respaldado pela ampla defesa e não incriminação.

  • A legislação brasileira não tipifica a conduta de mentir perante autoridade policial ou em juízo, diferentemente dos Estados Unidos onde o perjúrio é crime.

  • O posicionamento jurisprudencial majoritário reconhece o direito do acusado de mentir em juízo como parte de sua ampla defesa, mas ressalta que tal direito não é absoluto, podendo o acusado responder por outros crimes se a mentira resultar em condutas tipificadas no Código Penal.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Examina-se a possibilidade de uso da mentira pelo réu como um instrumento do exercício da ampla defesa, sob a ótica dos preceitos inseridos na Constituição.

1. INTRODUÇÃO

No processo penal constitucional brasileiro, é de notória importância a aplicação e efetividade dos princípios da ampla defesa e do contraditório, os quais constituem garantias constitucionais do réu e são basilares de todo o ordenamento jurídico processual pátrio. Em razão do princípio da ampla defesa, poderá o acusado, em juízo ou extrajudicialmente, defender-se com todos os meios e recursos disponíveis.

Entretanto, não se pode negar a existência do debate acerca da possibilidade (ou não) de o acusado mentir em juízo, se a mentira configura um direito seu, respaldado pela ampla defesa. Sendo assim, o objetivo do presente trabalho é analisar, de maneira sucinta, através de pesquisas bibliográficas e jurisprudenciais, o alcance da ampla defesa garantida ao réu, no sentido de discutir a possibilidade de utilização da mentira como meio de defesa e suas implicações para o processo criminal.


2. Breves considerações sobre a Constituição Federal de 1988 e a ampla defesa no Processo Penal Constitucional brasileiro

Ab initio, cumpre destacar algumas das novas diretrizes aplicadas ao processo penal brasileiro, instituídas com o advento da Constituição Federal de 1988 (CRFB/88). Conforme assenta Pacelli (2015, p. 8), em oposição ao autoritarismo enraizado no Código de Processo Penal de 1941, a nova carta política brasileira deu forma a um sistema de amplas garantias individuais, cujo pilar reside no art. 5º, LVII, CRFB/88: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória".

Neste cenário, o direito de defesa é uma garantia expressa do indivíduo na Constituição Federal de 1988, a qual, por meio do art. 5º, LV, institui que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".

Ressalte-se que, no processo penal, a ampla defesa abrange tanto a defesa técnica, exercida por advogado ou defensor público, como a autodefesa, exercida pelo próprio réu. Devido à autodefesa, o réu não é obrigado a se incriminar (nemo tenetur se detegere).

Em razão disso, deve-se destacar, também, a previsão do art. 5º, inciso LXIII, da CRFB/88, segundo o qual o preso deverá ser informado de seus direitos, entre os quais, o de permanecer calado. A legislação internacional, especificamente a Convenção Americana de Direitos Humanos, instrui que, no curso do processo, a presunção de inocência é um direito da pessoa, assim como não é obrigada a depor contra si mesma nem se dizer culpada (art. 8°, 2, "g").

Assim, o devido processo legal materializa-se para o réu como um instrumento de garantia dos preceitos constitucionais face à atividade punitiva estatal, que muitas vezes se encontra eivada por tendências políticas ou ideológicas. Em melhores dizeres, acentua Fernandes (2012, p.8):

Disso tudo extrai-se que o processo penal não é apenas um instrumento técnico, refletindo em si valores políticos e ideológicos de uma nação. Espelha, em determinado momento histórico, as diretrizes básicas do sistema político do país, na eterna busca de equilíbrio na concretização de dois interesses fundamentais: o de assegurar ao Estado mecanismos para atuar o seu poder punitivo e o de garantir ao indivíduo instrumentos para defender os seus direitos e garantias fundamentais e para preservar a sua liberdade.

Todos esses institutos revelam o forte arcabouço instrumental existente na Constituição Federal, norteada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, a fim de assegurar ao acusado a proteção a um dos mais importantes direitos fundamentais: a liberdade.


3. Mentira, pelo acusado, em juízo: abordagem legal e doutrinária sobre o tema

Conforme já assentado, é garantia constitucional do réu o direito de permanecer em silêncio durante o interrogatório, e o de não se incriminar. Na legislação infraconstitucional o tema também é abordado, pois preconiza o Código de Processo Penal, em seu art. 186, que o acusado, antes do início do interrogatório, será informado do direito de ficar calado e não responder as perguntas que lhes forem dirigidas. Ainda segundo o mesmo dispositivo, tal conduta não poderá ser interpretada em prejuízo de sua defesa. In verbis:

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.

Na legislação brasileira, não há tipificação para a conduta de o acusado mentir perante autoridade policial ou em juízo. Situação diferente ocorre nos Estados Unidos, onde tal ato configura o crime de perjúrio.

Por este motivo, alguns doutrinadores entendem que os princípios da ampla defesa, autodefesa e não autoincriminação compreendem o direito de acusado mentir. Nesse sentido posiciona-se Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 456):

Sustentamos ter o réu o direito de mentir em seu interrogatório de mérito. Em primeiro lugar, porque ninguém é obrigado a se autoacusar. Se assim é, para evitar a admissão de culpa, há de afirmar o réu algo que saber ser contrário à verdade. Em segundo lugar, o direito constitucional à ampla defesa não poderia excluir a possibilidade de narrar inverdades, no intuito cristalino de fugir à incriminação. Aliás, o que não é vedado pelo ordenamento jurídico é permitido. E se é permitido, torna-se direito [...]. No campo processual penal, quando o réu, para se defender, narra mentiras ao magistrado, sem incriminar ninguém, constitui seu direito de refutar a imputação. O contrário da mentira é a verdade. Por óbvio, o acusado está protegido pelo princípio de que não é obrigado a se autoincriminar, razão pela qual pode declarar o que bem entender ao juiz. É, pois, um direito.

Concorda com tal entendimento o doutrinador Luiz Flávio Gomes (2010) ao afirmar:

O direito de ficar calado, previsto na Constituição brasileira (CF, art. 5º, inc. LXIII), assim como o direito de não declarar ou o direito de não confessar (previstos nos tratados internacionais), não podem ser interpretados restritivamente. Por força do princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais (que são vinculantes e de aplicação direta e imediata CF, art. 5º, 1º), onde existe a mesma razão (ratio legis), deve preponderar o mesmo direito. Se a razão de conferir ao réu o direito ao silêncio está no seu direito de não se autoincriminar, onde este último direito der o ar da sua presença (da sua graça), o mesmo direito, ou seja, as mesmas consequências do direito ao silêncio hão de vingar. É nesse raciocínio (lógico e dedutivo) que descansa a base constitucional e internacional não só do direito ao silêncio, senão também de todas as (nove) dimensões da não autoincriminação. Para não se incriminar o réu tem até o direito de mentir, porém, também esse direito tem limite: não pode prejudicar terceiros [...].

Por outro lado, parte da doutrina vai de encontro aos pensamentos retro, aduzindo que, pelo fato de a verdade não ser exigível do acusado, a mentira é tolerada e não prejudicial ao acusado. É o caso de Lima (2016, p. 60 e 61):  

A nosso ver, e com a devida vênia, não se pode concordar com a assertiva de que o princípio do nemo tenetur se detegere assegure o direito à mentira. [...] A questão assemelha-se à fuga do preso. Pelo simples fato de a fuga não ser considerada crime, daí não se pode concluir que o preso tenha direito à fuga. Tivesse ele direito à fuga, estar-se-ia afirmando que a fuga seria um ato lícito, o que não é correto, na medida em que a própria Lei de Execuções Penais estabelece como falta grave a fuga do condenado (LEP, art.50, inciso II). Na verdade, por não existir o crime de perjúrio no ordenamento pátrio, pode-se dizer que o comportamento de dizer a verdade não é exigível do acusado, sendo a mentira tolerada, porque dela não pode resultar nenhum prejuízo ao acusado. Logo, como o dever de dizer a verdade não é dotado de coercibilidade, já que não há sanção contra a mentira no Brasil, quando o acusado inventa um álibi que não condiz com a verdade, simplesmente para criar uma dúvida na convicção do órgão julgador, conclui-se que essa mentira há de ser tolerada por força do nemo tenetur se detegere [...]

Como é possível perceber, não é unânime, para a doutrina brasileira, a possibilidade de o acusado mentir em processo criminal. Enquanto de um lado há quem defenda a conduta como um direito decorrente da extensão dos princípios da ampla defesa e não incriminação, outros doutrinadores apontam para a existência apenas de uma tolerância à mentira, posto que não há uma tipificação para a conduta, conforme esclarece Palis (2016).


4. Dos posicionamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acerca do tema

Acerca do tema em abordagem, os Tribunais Superiores pátrios têm se manifestado no sentido da existência do direito de mentir do acusado, o qual estaria albergado no direito de não produzir provas contra si ou não se incriminar.

Nesse sentido, o Habeas Corpus 68929/SP, julgado no STF com relatoria do Ministro Celso de Mello, é de grande pertinência para o tema. Isto porque, conforme o entendimento adotado em sua fundamentação, em virtude do direito ao silêncio, de cunho constitucional, é reconhecido ao acusado a prerrogativa de negar, ainda que falsamente, judicial ou extrajudicialmente, a prática do delito. In verbis:

"HABEAS CORPUS" - INTERROGATORIO JUDICIAL - AUSÊNCIA DE ADVOGADO - VALIDADE - PRINCÍPIO DO CONTRADITORIO - INAPLICABILIDADE - PERSECUÇÃO PENAL E LIBERDADES PUBLICAS - DIREITOS PUBLICOS SUBJETIVOS DO INDICIADO E DO RÉU - PRIVILEGIO CONTRA A AUTO-INCRIMINAÇÃO - CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CARACTERIZADO - PEDIDO INDEFERIDO. - A SUPERVENIENCIA DA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL NÃO DESQUALIFICOU O INTERROGATORIO COMO ATO PESSOAL DO MAGISTRADO PROCESSANTE E NEM IMPÔS AO ESTADO O DEVER DE ASSEGURAR, QUANDO DA EFETIVAÇÃO DESSE ATO PROCESSUAL, A PRESENCA DE DEFENSOR TECNICO. A AUSÊNCIA DO ADVOGADO NO INTERROGATORIO JUDICIAL DO ACUSADO NÃO INFIRMA A VALIDADE JURÍDICA DESSE ATO PROCESSUAL. A LEGISLAÇÃO PROCESSUAL PENAL, AO DISCIPLINAR A REALIZAÇÃO DO INTERROGATORIO JUDICIAL, NÃO TORNA OBRIGATORIA, EM CONSEQUENCIA, A PRESENCA DO DEFENSOR DO ACUSADO. - O INTERROGATORIO JUDICIAL NÃO ESTÁ SUJEITO AO PRINCÍPIO DO CONTRADITORIO. SUBSISTE, EM CONSEQUENCIA, A VEDAÇÃO LEGAL - IGUALMENTE EXTENSIVEL AO ÓRGÃO DA ACUSAÇÃO-, QUE IMPEDE O DEFENSOR DO ACUSADO DE INTERVIR OU DE INFLUIR NA FORMULAÇÃO DAS PERGUNTAS E NA ENUNCIAÇÃO DAS RESPOSTAS. A NORMA INSCRITA NO ART. 187 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL FOI INTEGRALMENTE RECEBIDA PELA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. - QUALQUER INDIVIDUO QUE FIGURE COMO OBJETO DE PROCEDIMENTOS INVESTIGATORIOS POLICIAIS OU QUE OSTENTE, EM JUÍZO PENAL, A CONDIÇÃO JURÍDICA DE IMPUTADO, TEM, DENTRE AS VARIAS PRERROGATIVAS QUE LHE SÃO CONSTITUCIONALMENTE ASSEGURADAS, O DIREITO DE PERMANECER CALADO. "NEMO TENETUR SE DETEGERE". NINGUEM PODE SER CONSTRANGIDO A CONFESSAR A PRÁTICA DE UM ILICITO PENAL. O DIREITO DE PERMANECER EM SILENCIO INSERE-SE NO ALCANCE CONCRETO DA CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. E NESSE DIREITO AO SILENCIO INCLUI-SE ATÉ MESMO POR IMPLICITUDE, A PRERROGATIVA PROCESSUAL DE O ACUSADO NEGAR, AINDA QUE FALSAMENTE, PERANTE A AUTORIDADE POLICIAL OU JUDICIÁRIA, A PRÁTICA DA INFRAÇÃO PENAL. (STF - HC: 68929 SP, Relator: CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 22/10/1991, PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 28-08-1992 PP-13453 EMENT VOL-01672-02 PP-00270 RTJ VOL00141-02 PP-00512) (grifos acrescidos)

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O Superior Tribunal de Justiça também já teve oportunidade de se manifestar quanto ao tema, nos autos do Habeas Corpus 98013/MS. Na ocasião, asseverou o Ministro Relator que a conduta do agente ao mentir sobre a prática delituosa está abarcada pela sua pretensão de se defender, e não pode ter efeitos na valoração de sua personalidade:

HABEAS CORPUS. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS. FUNDAMENTAÇÃO. ART. 59 DO CP. INOCORRÊNCIA EM APENAS UMA DAS CIRCUNSTÂNCIAS. ILEGALIDADE.1. É cediço que a pena-base deve ser fixada concreta e fundamentadamente (art. 93, IX, CF), de acordo com as circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do delito. 2. O fato do agente mentir acerca da ocorrência delituosa, não assumindo, desta maneira, a prática do crime, está intimamente ligado ao desejo de se defender e, por isso mesmo, não pode representar circunstância a ser valorada negativamente em sua personalidade, porquanto a comprovação de tais fatos cabe a acusação, desobrigando, por conseguinte, que essa mesma comprovação seja corroborada pela defesa. 4. Ordem parcialmente concedida para reduzir a pena de 15 (quinze) anos de reclusão para 13 (treze) anos e 4 (quatro) meses, a ser cumprida inicialmente em regime fechado. (HC 98.013/MS, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 20/09/2012, DJe 01/10/2012) (grifos acrescidos)

Cumpre mencionar, ainda, recente decisão prolatada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF), de relatoria do Desembargador Waldir Leôncio Lopes Júnior, onde é expressamente adotado o entendimento de que, com amparo no princípio constitucional da ampla defesa, é garantida ao réu a liberdade de, inclusive, mentir em juízo:

DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. CONTRAVENÇÃO PENAL DE VIAS DE FATO. LEI MARIA DA PENHA. PRELIMINAR DE NULIDADE ABSOLUTA. INTERROGATÓRIO DO RÉU. PREJULGAMENTO, PARCIALIDADE E CONSTRANGIMENTO JUDICIAL AO EXERCÍCIO DO DIREITO DE AUTODEFESA. DIREITO DE MENTIR DO ACUSADO. VIOLAÇÃO DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. 1. O interrogatório é manifesta expressão das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa porque é a oportunidade que tem o réu de se dirigir diretamente ao juiz, trazendo à tona a sua versão a respeito dos fatos que lhe são imputados pela acusação, podendo, inclusive, indicar meios de prova, confessar ou até mesmo permanecer em silêncio. 2. O réu está protegido pelo princípio de que não é obrigado a se autoincriminar; logo, em seu interrogatório, para se defender, pode mentir e declarar o que bem entender ao juiz. É direito seu amparado pela garantia constitucional da ampla defesa. 3. O juiz deve conduzir o interrogatório de forma neutra, imparcial e equilibrada, não lhe sendo lícito, sob pena de constrangimento ao exercício da autodefesa e de nulidade absoluta, confrontar o réu com veemência, deixando-o acuado e sugerindo ser a sua versão falsa ou inverossímil. 4. Recurso de apelação conhecido e provido. (TJ-DF 20130810080348 0007863-60.2013.8.07.0008, Relator: WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR, Data de Julgamento: 02/02/2017, 3ª TURMA CRIMINAL, Data de Publicação: Publicado no DJE: 08/02/2017. Pág.: 103/107) (grifos acrescidos)

Entretanto, mister se faz analisar, também, até que ponto se estende o direito à ampla defesa e não autoincriminação. Assim, conforme extrair dos seguintes julgados, tanto o STF como STJ têm entendido que a autodefesa não é um direito absoluto, pois, na medida em que a conduta do acusado em mentir configura a prática de algum delito tipificado no ordenamento jurídico vigente, deverá o agente responder por esta.

Desse modo, no Habeas Corpus 92763, o STF entendeu que o uso de documento falso perante autoridade policial, configurando o crime previsto no art. 304 do Código Penal, não encontra respaldo na autodefesa:

HABEAS CORPUS. PENAL. USO DE DOCUMENTO FALSO. ATIPICIDADE. INOCORRÊNCIA. O fato de o paciente ter apresentado à polícia identidade com sua foto e assinatura, porém com impressão digital de outrem, configura o crime do art. 304 do Código Penal. Havendo adequação entre a conduta e a figura típica concernente ao uso de documento falso, não cabe cogitar de que a atribuição de identidade falsa para esconder antecedentes criminais consubstancia autodefesa. Ordem denegada. (HC 92763, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em12/02/2008, DJe-074 DIVULG 24-04-2008 PUBLIC 25-04-2008 EMENT VOL-02316-06 PP-01186) (grifos acrescidos)

Fundamentação semelhante foi aplicada no reconhecimento de repercussão geral no RE 640139/DF, quando o STF afirmou que o princípio constitucional da autodefesa também não alcança o agente que atribui falsa identidade, delito que encontra previsão no art. 307 do Código Penal:

CONSTITUCIONAL. PENAL. CRIME DE FALSA IDENTIDADE. ARTIGO 307 DO CÓDIGO PENAL. ATRIBUIÇÃO DE FALSA INDENTIDADE PERANTE AUTORIDADE POLICIAL. ALEGAÇÃO DE AUTODEFESA. ARTIGO 5º, INCISO LXIII, DA CONSTITUIÇÃO. MATÉRIA COM REPERCUSSÃO GERAL. CONFIRMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE NO SENTIDO DA IMPOSSIBILIDADE. TIPICIDADE DA CONDUTA CONFIGURADA. O princípio constitucional da autodefesa (art. 5º, inciso LXIII, da CF/88) não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente (art. 307 do CP). O tema possui densidade constitucional e extrapola os limites subjetivos das partes. (STF - RG RE: 640139 DF - DISTRITO FEDERAL, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 22/09/2011, Data de Publicação: DJe-198 14-10-2011) (grifos acrescidos)

No mesmo sentido, há também precedente do Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. DIREITO PENAL. ART. 307 DO CP. PRISÃO EM FLAGRANTE. FALSA IDENTIFICAÇÃO PERANTE AUTORIDADE POLICIAL. AUTODEFESA. INEXISTÊNCIA. TIPICIDADE DA CONDUTA DE FALSA IDENTIDADE. SUBMISSÃO AO RITO   PREVISTO NO ART. 543-C DO CPC E NA RESOLUÇÃO N. 8/2008 DO STJ. 1. Típica é a conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial, ainda que em situação de alegada autodefesa (art. 307 do CP). 2. O Supremo Tribunal Federal – ao julgar a repercussão geral no RE n. 640.139/DF, DJe 14/10/2011 – reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria controvertida, no sentido de que o princípio constitucional da autodefesa (art. 5º, LXIII, da CF) não alcança aquele que se atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente (art. 307 do CP). 3. Recurso especial provido exclusivamente para restabelecer a condenação do recorrido pelo delito de falsa identidade (art. 307 do CP), consoante o decisum de primeiro grau, mantido, no que não contrariar este voto, o acórdão a quo. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do Código de Processo Civil e da Resolução n. 8/2008 do Superior Tribunal de Justiça.(STJ. 3ª Seção. REsp 1.362.524-MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 23/10/2013, DJe 02/05/2014) (grifos acrescidos)

Inclusive, o entendimento acima restou consolidado na Súmula 522 do STJ, aprovada em 25/03/2015: "A conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa".

Destarte, conclui-se que o posicionamento jurisprudencial majoritário é no sentido de que ao réu é assegurado, em função do princípio da ampla defesa e da garantia da não autoincriminação, mentir acerca dos fatos que estão sendo a ele imputados, vez que inexiste crime de perjúrio no âmbito nacional.

Entretanto, suas garantias não são absolutas, de modo que se a sua mentira acarreta na prática dos crimes tipificados no Código Penal, como o uso de documento falso, atribuição de falsa identidade ou denunciação caluniosa (arts. 304, 307 e 399, respectivamente), por estes delitos deverá responder legalmente.

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Sobre as autoras
Amanda Marinho de Lima Tavares

Estudante de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Alexia Maria Heroncio Melo Cavalcanti ; TAVARES, Amanda Marinho Lima. A mentira como elemento da ampla defesa no ordenamento jurídico constitucional processual penal brasileiro: possibilidade, alcance e dimensão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5714, 22 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69852. Acesso em: 22 dez. 2024.

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