INTRODUÇÃO
Uma das vertentes da jurisdição é a atividade satisfativa, ou seja, é onde o juiz transforma em realidade o comando contido em uma decisão, que se perfaz por meio da tutela jurisdicional de execução. O art. 4º do Código de Processo Civil, inclusive, reconhece que “as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”.
A execução forçada, que se dá através do cumprimento de sentença ou do processo de execução, se perfaz com a expropriação dos bens do devedor e, para que isso ocorra, indispensável a penhora. É a partir dela que o credor encontra a garantia do processo.
Por isso mesmo que o assunto tratado no presente estudo é relevante. A fraude à execução frustra o direito do credor, mas também viola a autoridade da jurisdição e, por isso mesmo, deve ser combatida veementemente. E, assim, nossa pequena contribuição a essa discussão vai ser dada nesse texto. É preciso dizer, todavia, que estamos canalizando nossa energia apenas nos bens imóveis, em razão da relevância – e valor, evidentemente – que tais bens possuem.
Nossa proposta, aqui, é analisar a questão da fraude à execução e dos mecanismos para garantir que a penhora efetuada não seja violada, como a averbação da distribuição da ação de execução e do registro da penhora no cartório de registro de imóveis. Propomo-nos, também, a analisar a súmula 375 do STJ e, em cotejo com o novo Código de Processo Civil, e, de maneira assumidamente pretensiosa, estabelecer o seu alcance, em relação ao inciso IV do art. 792. Esperamos conseguir.
1. DA FRAUDE À EXECUÇÃO.
O vocábulo fraude, na língua portuguesa, é utilizado para designar qualquer ardil, ou ato enganoso, de má-fé, cujo objetivo é lesar ou ludibriar outrem, ou para descumprir um dever ou obrigação. No direito, o sentido da palavra fraude é praticamente o mesmo, e aparece em diversas situações com na fraude à execução ou na fraude contra credores.
A fraude à execução, tema deste pequeno ensaio, se refere aos atos praticados pelo devedor com a finalidade de subtração de bens determinados que devam ser entregues ao credor, ou de bens indeterminados que possam conduzi-lo à insolvência, pouco importando se o ato é simulado ou não, com intenção enganosa ou não, constituindo razão para reconhecer a ineficácia do negócio jurídico que importa em alienação ou oneração do bem em relação ao credor[1]. Da lição de Cândido Rangel Dinamarco tiramos que “a fraude de execução consiste na realização de um ato de disposição ou oneração de coisa ou direito depois de instaurado um processo cujo resultado poderá ser impossível sem lançar mão desse bem”[2], ao passo que, para Alexandre Freitas Câmara, “é de se considerar em fraude de execução o ato de alienação ou oneração de bens realizado no curso de um processo, quando tal ato reduza o devedor à condição de insolvente”[3].
É um ato de tamanha gravidade que constitui, também, ato atentatório à dignidade da justiça, conforme art. 774, I do Código de Processo Civil[4], além de ser tipificado como crime contra a administração da justiça, no art. 179 do Código Penal[5]. Isso ocorre, porque ela afeta diretamente a autoridade da jurisdição, eis que “havendo ação judicial em andamento, o interesse na manutenção do patrimônio do executado não é mais apenas do credor, mas também da jurisdição, cuja atividade atua sobre este conjunto de bens”[6].
A consequência do reconhecimento da fraude à execução é a ineficácia do ato de alienação em relação ao credor, como se depreende da leitura exata do § 1º do art. 792[7]. Isso significa que o ato de alienação não será anulado, mas apenas não terá eficácia em relação ao credor e ao processo executivo. Nesse sentido, o escólio de MARINONI E ARENHART:
A fraude à execução, diferentemente do que ocorre com a fraude contra credores, gera a ineficácia relativa do ato de oneração ou alienação. Vale dizer que, caracterizada a fraude à execução, o ato praticado – embora válido e eficaz entre as partes que o celebraram – não surte qualquer efeito em relação à execução movida, podendo o bem ser penhorado normalmente. É como se, para a execução, a alienação ou a oneração do bem não tivesse ocorrido.[viii]
Assim também explica Elpídio Donizetti:
Se um bem é alienado em fraude à execução, a lei considera válida a venda, o adquirente vai se tornar proprietário, mas a execução poderá continuar a incidir sobre esse bem. Em suma, reconhecida a fraude, o juiz determinará que a constrição recaia sobre o bem, ainda que ele esteja em poder de terceiro, porque é esse bem que responderá pela dívida, como se alienação não tivesse ocorrido.[9]
Destarte, declarada a ineficácia do ato em relação ao processo, este prosseguirá com a penhora do bem, apenas, sendo que nenhuma outra responsabilidade será atribuída ao adquirente. É o que diz Humberto Theodoro Jr.:
Da fraude à execução decorre simples submissão de bens de terceiro à responsabilidade executiva. O adquirente não se torna devedor e muito menos coobrigado solidário pela dívida exequenda. Só os bens indevidamente alienados é que se inserem na responsabilidade que a execução forçada faz atuar; de sorte que, exauridos estes, nenhuma obrigação ou responsabilidade subsiste para o terceiro que os adquiriu do devedor.[10].
1.1. Fraude à execução x fraude contra credores.
É preciso, sempre, distinguir a fraude à execução da fraude contra credores. Nesta, a alienação do bem pelo devedor frustra o interesse pessoal do credor. Posto não haver, ainda, ação em andamento, não há afronta à autoridade da jurisdição, razão pela qual a fraude contra credores encerra uma questão de caráter subjetivo e privado, estando prevista nos arts. 158 e 159 do Código Civil:
Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos.
§ 1º Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.
§ 2º Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles.
Art. 159. Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante.
Vê-se, dessa forma, que a fraude contra credores é motivo de anulabilidade do negócio jurídico. MARINONI E ARENHART alertam que
A fraude contra credores é instituto de direito material, representando defeito do negócio jurídico que importa alienação ou oneração patrimonial, praticado por quem está em condições de insolvência – criada por fato anterior ou pelo próprio negócio jurídico – em prejuízo dos credores. Viola-se aqui interesses privados dos credores, o que dá a essa figura tratamento menos severo do que o dispensado à fraude à execução.[xi]
Em razão disso, o credor, para anular a alienação ou oneração do bem ocorrida em fraude contra credores, deverá promover a necessária ação revocatória, conhecida popularmente como ação pauliana.
Essa ação, de caráter declaratório, tem por fundamento o eventus damni, que é o prejuízo efetivo suportado pelo credor, e o consilium fraudis, que é conhecimento, ou a ciência, pelos adquirentes do bem, de que a alienação frustrará os interesses de credores. São questão subjetivas, cuja prova compete ao autor da ação, nos termos do art. 373, I, do CPC. Por isso mesmo “é ônus do autor (credor quirografário) da ação pauliana demonstrar a existência de tais requisitos, não se presumindo sua existência”[xii]. Daí a sua dificuldade.
É bom lembrar que só quem pode ajuizar a ação pauliana é quem já era credor ao tempo da alienação, conforme dispõe o § 2º do art. 158, acima transcrito, c.c. art. 161 do Código Civil[13]. Como explica Cândido Rangel Dinamarco, “os credores que se tornaram tais depois do ato já terão encontrado o patrimônio do devedor no estado a que fora conduzido pelo ato fraudulento, não tendo portanto sido vítimas da fraude”[14].
Na fraude à execução, por outro lado, não há necessidade de ação própria para reconhecê-la: o próprio juízo da execução poderá reconhecê-la, por simples decisão interlocutória, tal como afirma DONIZETTI:
A fraude à execução constitui a forma mais grave fraude, na qual ocorre a violação da atividade jurisdicional. Desse modo, será desnecessário o ajuizamento de ação especifica para desconstituir o ato fraudulento.[15].
É que a vítima da fraude, aqui, é a própria justiça, e os critérios para o seu reconhecimento são objetivos. “Por se tratar de situação mais grave, a lei dispensa a prova da intenção de fraudar (consilium fraudis), Bastará a ocorrência do fato – estabelecido em lei – para estar configurada a fraude à execução”[16].
1.2. Da averbação da distribuição da ação na matrícula do imóvel e da fraude presumida.
No ano de 2006, uma minirreforma no Código de Processo Civil então vigente modificou o processo de execução e, dentre várias alterações promovidas, incluiu o art. 615-A, que estabelecia a possibilidade do exequente obter, no ato da distribuição da execução, uma certidão para ser averbada no Registro competente dos bens sujeitos à penhora.
Com o advento do novo Código de Processo Civil, em 2015, manteve-se essa mesma situação, no art. 828:
Art. 828. O exequente poderá obter certidão de que a execução foi admitida pelo juiz, com identificação das partes e do valor da causa, para fins de averbação no registro de imóveis, de veículos ou de outros bens sujeitos a penhora, arresto ou indisponibilidade.
§ 1o No prazo de 10 (dez) dias de sua concretização, o exequente deverá comunicar ao juízo as averbações efetivadas.
§ 2o Formalizada penhora sobre bens suficientes para cobrir o valor da dívida, o exequente providenciará, no prazo de 10 (dez) dias, o cancelamento das averbações relativas àqueles não penhorados.
§ 3o O juiz determinará o cancelamento das averbações, de ofício ou a requerimento, caso o exequente não o faça no prazo.
§ 4o Presume-se em fraude à execução a alienação ou a oneração de bens efetuada após a averbação.
§ 5o O exequente que promover averbação manifestamente indevida ou não cancelar as averbações nos termos do § 2o indenizará a parte contrária, processando-se o incidente em autos apartados.
No caso de bens imóveis, a certidão será averbada na matrícula correspondente no Cartório de Registro de Imóveis. Isso é importante porque dá ciência da existência da ação de execução a todos, com efeito erga omnes, em razão da publicidade prevista e determinada no art. 16 e seguintes da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973).
O ponto importante a considerar, aqui, é que, uma vez averbada a distribuição da ação de execução no Cartório de Registro de Imóveis, havendo qualquer alienação ou oneração do imóvel a posteriori, a fraude à execução será presumida, na forma do que dispõe o § 4º, do art. 828, acima transcrito. É que, possuindo o efeito erga omnes, o adquirente do bem não poderá alegar desconhecimento da ação.
2. DA PENHORA.
A penhora é ato essencial à execução judicial forçada – cumprimento de sentença ou processo de execução. Ela representa a garantia de recebimento do crédito, que é o objetivo precípuo da execução, enquanto atividade satisfativa. Como afirmamos em outra ocasião,
Penhora é um ato processual de constrição judicial que tem por finalidade propiciar a expropriação dos bens do executado. A penhora é essencial ao processo de execução por quantia certa e sem a qual ele não alcançará a sua finalidade e o resultado esperado, que é a expropriação dos bens do executado (art. 824).[xvii]
Na mesma linha de argumentação, Alexandre Freitas Câmara explica que a penhora é “ato executivo, através do qual se apreendem bens do executado, implementando-se, assim, a sujeição patrimonial que se tornou possível em razão da responsabilidade patrimonial”[xviii]. A penhora é, destarte, um ato judicial de natureza executiva, por meio do qual se vai definir qual bem do patrimônio do devedor será expropriado para satisfação do crédito. E, como tem natureza processual, qualquer lei que trate de penhora tem aplicação imediata no processo, assim como uma lei que estabeleça determinado bem como impenhorável também tem efeito imediato nos processo em andamento, e nas penhoras pendentes, como se vê da súmula 205 do STJ:
STJ, súmula 205.
A Lei n. 8.009/1990 aplica-se à penhora realizada antes de sua vigência.
Da imperiosa necessidade da penhora nos processos de execução decorre a importância do instituto da fraude à execução. É que a alienação de bens em fraude à execução resulta na frustração do credor-exequente, em não ter a garantia processual adequada ao recebimento do seu crédito. Ao dispor de seus bens e reduzir-se à insolvência, o devedor-executado impede que a penhora seja efetivada e, por consequência, que a garantia seja constituída. E, sem penhora, a ação de execução não tem prosseguimento.
2.1. Do registro da penhora na matrícula do imóvel.
Realizada a penhora em bens imóveis, esta poderá ser registrada na matrícula do imóvel. A Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973), no art. 167, I, 5, confere ao Cartório de Registro de Imóveis a atribuição de efetuar o registro das penhoras, arrestos e sequestros de imóveis.
Assim, uma vez efetuado o registro da penhora do imóvel, tal situação passa a ter efeito erga omnes, e qualquer alienação ocorrida após tal registro, por óbvio, vai ser considerada em fraude à execução. Com o registro da penhora, gera-se uma presunção absoluta de conhecimento de terceiros, de sorte que ninguém poderá alegar desconhecimento da ação ou da constrição do bem adquirido. Essa é a regra estabelecida no art. 844 do Código de Processo Civil:
Art. 844. Para presunção absoluta de conhecimento por terceiros, cabe ao exequente providenciar a averbação do arresto ou da penhora no registro competente, mediante apresentação de cópia do auto ou do termo, independentemente de mandado judicial.
Comentamos esse artigo em outra obra, na qual afirmamos:
Formalizada a penhora, o exequente deverá providenciar a sua averbação junto ao registro do bem penhorado (desde que esteja submetido a registro). Isso se faz apresentando ao registro competente cópia do auto ou termo de penhora, não havendo necessidade de mandado judicial. Tal averbação produz efeito erga omnes, gerando, como consequência, uma presunção absoluta de conhecimento de terceiros. Qualquer alienação ou oneração do bem ocorrida após a averbação é reputada fraude à execução, na forma do art. 792, III.[19]
Vê-se, daí, a importância do exequente em promover o registro[20] da penhora do bem imóvel no Cartório de Registro de Imóveis, para evitar qualquer discussão futura sobre fraude á execução e boa-fé do adquirente.
3. A SÚMULA 375 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Tratando sobre o assunto fraude à execução, no ano de 2009, o STJ editou a súmula 375, com o seguinte teor:
STJ, súmula 375.
O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova da má-fé do terceiro adquirente.
Como se vê, para o STJ, dois são os requisitos para se reconhecer a fraude à execução: o registro da penhora ou a má-fé do adquirente.
O registro da penhora só pode ocorrer, por óbvio, depois que houver a penhora, o que pressupõe a existência de execução forçada – cumprimento de sentença ou processo de execução. Não atinge, portanto, os processos de conhecimento não julgados.
Nos casos em que há penhora de bens imóveis, o registro desta no Cartório de Registro de Imóvel revela-se uma segurança para o credor, já que tal registro tem efeito erga omnes, e gera uma presunção absoluta de conhecimento da penhora a terceiros, conforme dispõe o art. 844 da lei adjetiva civil.
Para os casos em que não há penhora – e que não se pode exigir, pois, o registro da penhora –, o STJ entende que, para caracteriza a fraude, deve-se demonstrar a má-fé do adquirente. É o caso onde a alienação do bem se deu, no processo de conhecimento, após o ajuizamento da ação e citação do réu, mas antes do cumprimento de sentença.
Essa súmula do STJ mais complicou do que esclareceu. Com todo o respeito que se devota àquela Corte de Justiça, a súmula simplesmente ignora a lei e toda a construção doutrinária que se formou em torno do tema. Deste modo, muitas decisões equivocadas se deram a partir da sua interpretação.
E é aqui que precisamos analisar o alcance dessa súmula, em face do novo Código de Processo Civil.
4. O ALCANCE DA SÚMULA 375 DO STJ EM FACE DO ART. 792 DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
A fraude à execução está prevista no art. 792 do Código de Processo Civil:
Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:
I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;
II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828;
III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude;
IV - quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;
V - nos demais casos expressos em lei.
Assim, a súmula 375 do STJ deve ser analisada à luz do dispositivo legal acima transcrito, para que possamos definir o seu alcance. Nesse diapasão, podemos abordar o assunto em três dimensões, como vermos a seguir.
4.1. O limite de uma súmula é a lei.
Uma súmula é criada a partir de julgamentos reiterados sobre um mesmo assunto. Ela condensa, assim, a jurisprudência dominante de um tribunal sobre o assunto em questão. A súmula, em verdade, denota a interpretação do direito feita pela jurisprudência. Daí a questão que se põe: até onde o tribunal pode ir, na criação de uma súmula? A resposta: até o limite da lei. Pelo princípio constitucional da separação dos poderes (CF, art. 2º) o Poder Judiciário não pode legislar, atribuição essa que é precípua do Poder Legislativo.
Na interpretação da lei, papel preponderante do Poder Judiciário, ele poderá criar, através da jurisprudência, normas de caráter integrativo, para suprir eventuais lacunas da lei, mas jamais poderá ir além ou contra ela. É que vigora no nosso ordenamento o princípio da legalidade (CF, art. 5º, II), segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
Daí porque aquela súmula 375 deve ser analisada de acordo com o art. 792 do Código de Processo Civil. E, nesse desiderato, veremos que referida súmula só guarda relação com as suas três primeiras hipóteses, previstas respectivamente nos incisos I a III, daquele artigo, não se aplicando ao inciso IV. Em obra recente, pudemos externar essa mesma opinião, ao enfatizar que
o teor da súmula em comento incide apenas sobre os 3 (três) primeiros incisos, não atingindo a hipótese do inciso IV. Para este, não há dependência de registro, bastando a simples existência da demanda, que gera uma presunção relativa de má-fé do adquirente.
Na hipótese dos incisos I a III, a averbação gera uma presunção absoluta de conhecimento de terceiros.[21]
É que o inciso IV trata de outra questão: o processo de conhecimento. Aqui não é caso de averbar a distribuição da ação, porque não se trata de execução (inciso II); nem de registrar penhora, porque esta ainda não ocorreu (inciso III).
O inciso IV reconhece em fraude à execução a alienação ou oneração do bem quando, ao tempo do ato, já havia contra o devedor ação que pudesse reduzi-lo à insolvência (ação de indenização, ação de cobrança, entre outras). Assim, de acordo com o texto legal, para caracteriza a fraude é bastante a simples existência da ação. A questão é objetiva. Não há de se perquirir o elemento subjetivo que envolveu o negócio jurídico tido por fraudulento.
Na fraude à execução, baseada na hipótese do inciso IV do art. 792 do CPC, não há que se demonstrar o consilium fraudis: basta que ao tempo da alienação ou oneração do bem já houvesse ação contra o devedor capaz de conduzi-lo à insolvência. Nesse sentido, é o que dizem MARINONI E ARENHART:
Parte-se do pressuposto de que o devedor que aliena ou onera seus bens, ciente de demanda capaz de reduzi-lo à insolvência, está agindo para fraudar a execução. Portanto, para a caracterização da presunção de má-fé, basta que, no momento em que se deu a alienação ou a oneração, esteja em curso demanda capaz de reduzi-lo à insolvência.[22]
O legislador, ao estabelecer a hipótese do inciso IV do citado art. 792, nada dispôs sobre boa-fé ou má-fé do adquirente. E, se assim o é, não cabe ao interprete fazê-lo, como manda a boa regra de hermenêutica. Como o limite da súmula é a lei, e a lei nada diz sobre a má-fé do terceiro adquirente como condição para reconhecer a fraude à execução, o STJ não poderia criar essa condição para os casos do inciso IV daquele art. 792. Então, daí, duas conclusões: 1) ou a súmula do STJ só tem aplicação nos incisos I a III do art. 792, ou 2) ela não tem validade por ser contra a lei. Inclinamo-nos a pensar que a primeira está correta, até para reconhecer a validade da súmula.
4.2. A má-fé decorre da própria aquisição do bem quando havia ação pendente contra o vendedor.
Mesmo que pudesse admitir que a súmula 375 do STJ encontrasse aplicação na hipótese do inciso IV do art. 792, há uma questão preponderante a se cogitar: a má-fé do terceiro adquirente seria presumida por ter adquirido um bem quando pendia sobre o vendedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência.
Explica-se:
Conquanto o art. 792, no seu inciso IV, não tenha cogitado sobre má-fé do adquirente, ou seja, não tenha estabelecido o elemento subjetivo como condição para reconhecimento da fraude, esta se presume em razão da situação em que o terceiro adquirente se colocou e do conhecimento do homem médio para transações imobiliárias (que é o ponto central desse estudo).
É do conhecimento geral, pelo menos por todos aqueles que vão fazer uma transação imobiliária, os cuidados que se deve ter, especialmente em razão dos altos valores envolvidos no negócio. Um bem imóvel custa muito dinheiro! E a primeira providência que qualquer pessoal cuidadosa e bem intencionada faz antes de adquirir um imóvel é investigar a vida do vendedor, exigindo certidões negativas de toda sorte, inclusive de distribuição de feitos à justiça comum e do trabalho. Essas informações são públicas e de fácil acesso.
A receber as certidões, o adquirente verificará se há alguma ação contra o vendedor que possa embaraçar a transação e, assim, não concluí-la.
Mas, se a despeito da existência da ação, o adquirente conclui o negócio, das duas uma: ou ele está agindo de má-fé ou, no mínimo, assumiu o risco. Em qualquer caso, não há desculpa, pois o adquirente descurou do seu dever de boa-fé objetiva. Daí se dizer que a má-fé é presumida.
Por outro lado, se o adquirente não exigiu as certidões de praxe antes de concluir o negócio, ele não foi diligente e, portanto, não agiu com a boa-fé necessária, o que caracterizaria a sua má-fé.
Essa parece ser a tese que está ganhando força no Judiciário, até como forma de harmonizar a súmula 375 com o inciso IV do art. 792. Em recentes decisões, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem adotado esse entendimento:
EXECUÇÃO - FRAUDE À EXECUÇÃO - VENDA DE IMÓVEL APÓS A CITAÇÃO - Depois de citado, o executado “alienou” o imóvel em discussão ao seu próprio irmão, tentando se furtar ao pagamento da dívida, demonstrando claramente a prática da fraude à execução - Caso em que, ao tempo da alienação, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência (art. 593, II, do CPC; art. 792, IV, CPC/2015) - Pelas máximas de experiência, todo interessado na aquisição de imóvel deve pesquisar junto ao Distribuidor Cível da situação do imóvel ou do domicílio do alienante para constatar a pendência de alguma demanda – RECURSO PROVIDO.
(TJSP, AI 2020018-52.2016.8.26.0000, Rel. Des. Sérgio Shimura, 23ª Câm. Direito Privado, j. 11/05/2016).
FRAUDE À EXECUÇÃO – AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO C.C. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS EM FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. Alienação do imóvel a terceiro após a citação da agravada em ação condenatória. MM Juízo que deixou de reconhecer a fraude à execução por não haver registro de constrição sobre o bem, tampouco prova de má-fé do adquirente. Fraude à execução que é patente nos autos. Agravada que alienou o bem a terceiro após citada para os termos de ação capaz de reduzi-la à insolvência, o que basta para a configuração da fraude. Irrelevância da apuração do elemento subjetivo da conduta. Inteligência do art. 792, IV, do novo Código de Processo Civil. Decisão reformada. Recurso provido.
(TJSP, AI 21002787-20.2016.8.26.0000, Rel. Des. Vito Guglielmi, 6ª Câm. Direito Privado, j. 27/10/2016).
A má-fé do adquirente revela-se, destarte, por não adotar as condutas de cautela mínimas, próprias do homem médio (bonus pater familias), descurando, assim, do seu dever de boa-fé objetiva, que é o padrão do nosso direito. Como ensina Rosa Maria de Andrade Nery,
Para a identificação daquilo que se entende por boa-fé objetiva, a análise se desloca da averiguação específica sobre a conduta da parte ou intenção do agente e se centra no ajuste dessa conduta em face do caso concreto que ela projetou, ou no resultado por ela gerado, e sob o ponto de vista de circunstâncias exteriores que indicam um equilíbrio entre a conduta e os vínculos sociais e jurídicos em questão, de sorte a não se comprometer aquilo que se logrou denominar de equidade.[23]
É por conta disso que se pode dizer que “a conduta do terceiro adquirente merece ser analisada de acordo com a boa-fé ética, e não psicológica. Assim, a má-fé corporifica-se através de comportamento descuidado, indiligente e cercado de inescusável incúria, não se cogitando de dolo para sua caracterização”[24]. Desta forma, quem adquire um bem imóvel – sempre de valor considerável – sem adotar as cautelas medianas próprias dessas operações, descumpre regra fundamental da boa-fé objetiva, respondendo, então, pelos seus atos e, principalmente, pelas consequências dele.
4.3. Estando o bem alienado ou onerado sujeito a registro, a fraude se comprova pela data do registro do bem.
Nos casos em que o reconhecimento da fraude à execução envolve bens imóveis – porque sujeitos a registro – não se exige prova do comportamento do adquirente, porque a prova da fraude está na própria alienação ou oneração do bem. E essa afirmação encontra eco na própria lei processual, conforme disposto no § 2º do art. 792:
§ 2º. No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.
Essa disposição é emblemática: o legislador impôs ao adquirente o ônus da prova de que tomou as cautelas devidas apenas quando o bem em questão não estiver sujeito a registro. Nada falou sobre os bens sujeitos a registro, como os bens imóveis.
E porque o fez assim, restringindo o texto apenas aos bens não sujeitos a registro? A resposta é clara: porque para os bens sujeitos a registro não precisa! Porque para os bens sujeitos a registro a prova se dá in re ipsa, ou seja, ela reside no próprio fato. Assim, para verificar a ocorrência da fraude basta ver a data do registro e, se ela for posterior ao ajuizamento da ação e citação do réu alienante, a fraude estará configurada! Tollitur quaestio!
É simples aplicação do inciso IV do art. 792, que não exige prova da má-fé do adquirente que, além de tudo, é presumida.