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Usucapião extrajudicial como instrumento de desjudicialização

29/01/2019 às 15:16
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O novo CPC, ao introduzir o artigo 216-A à LRP, alargou a via extrajudicial para todas as modalidades de usucapião. A alteração legislativa desafogou o Judiciário e garantiu mais celeridade ao posseiro.

1 INTRODUÇÃO

O Poder Judiciário brasileiro, abarrotado por um alto número de demandas e cuja administração é muitas vezes ineficiente, é moroso e, não raro, incapaz de entregar ao usuário a tutela jurisdicional almejada. Isto porque, como leciona Cassio Scarpinella Bueno, a tutela jurisdicional não se encerra com o acesso ao judiciário, mas com o efetivo acesso ao direito pleiteado. (SCARPINELLA, 2016, pg. 55)

Nisto resulta a preocupação do legislador em, paulatinamente, desjudicializar diversas lides que podem ser resolvidas extrajudicialmente, de forma que o direito do usuário é garantido em tempo hábil. Exemplos disso foram as previsões de retificação extrajudicial de registro imobiliário, divórcio e inventário extrajudiciais, consignação em pagamento extrajudicial, conciliação extrajudicial, entre outros, e agora, com o NCPC, a possibilidade de usucapião extrajudicial, para os casos em que houver consenso.

Embora o usucapião administrativo não tenha sido criado pelo NCPC, tendo em vista que a Lei 11.979/09 já previa tal instituto para os detentores de título de legitimação de posse, a novidade do Novo Código de Processo Civil foi a ampliação para qualquer modalidade de usucapião, desde que presente o consenso e, é claro, a disponibilidade de direitos envolvidos. Desse modo, agilizou-se o procedimento e desafogou o judiciário de demandas que podem ser facilmente resolvidas nas serventias notariais e registrais.

Nesse sentido, a Lei 13.105/2015 acrescentou o artigo 216-A na Lei de Registros Públicos (6.015/73), disciplinando o instituto em seus 4 incisos e 10 parágrafos. Mais tarde, em meados de 2017, a Lei 13.465/2017 fez algumas alterações no dispositivo e acrescentou 5 parágrafos.

Importante ressaltar que, segundo entendimento do STF na ADIN 4.641-SC, os notários e registradores não exercem cargo ou emprego público. O regime de delegação aplicado a eles é semelhante ao da concessão de serviços públicos, mas com peculiaridades. Primeiramente, há concurso público (e não licitação), para depois haver delegação e fiscalização da atividade pelo Poder Publico, em atividade de caráter privado. Sua atividade goza de fé pública e tem fundamento no artigo 236 da Constituição Federal e na Lei 8.935/94.


2. USUCAPIÃO

A usucapião, do latim “adquirir pelo uso”, é um modo originário de aquisição de propriedade de qualquer bem suscetível de domínio, bem como alguns direitos reais (DONIZETTE, 2017, pg. 731). Também é chamada de “prescrição aquisitiva”, pois gera direitos para uma pessoa e exclusão de direitos para outra mediante o decurso do tempo.

Desde o Direito Romano, o usucapião é o modo de adquirir o domínio ou outros direitos reais pelo decurso do tempo condicionado à posse incontestada e ininterrupta. Dessa forma, é imprescindível à pretensão de usucapir que o bem objeto da posse ad usucapionem (apto a sofrer usucapião) não seja contestado pelo seu dono durante transcurso do prazo legal, e que a posse seja contínua e não interrompida, pois em caso de interrupção a contagem de prazo reiniciará do zero.

A previsão deste instituto no Direito Civil visa cumprir a “função social da posse” (termo pelo CC/02) e o que a CF/88 chama de função social da propriedade. A Constituição Federal prevê a garantia do direito de propriedade a todo brasileiro e estrangeiro residente no país (art. 5º, caput), desde que se atenda a função social (incisos XXII e XXIII). Nesse sentido, a ideia do usucapião é consolidar a situação de quem exterioriza a propriedade sem tê-la, porém querendo tê-la, em detrimento do proprietário desidioso, que não reinvindica o que é seu (DONIZETTE, 2017, pg. 732).

Ressalta-se que o usucapião tem aplicabilidade não só para o domínio, mas também para outros direitos reais, não só para o bem imóvel, mas também ao bem móvel.

Nesta oportunidade, o enfoque do estudo é o usucapião de bens imóveis, mais especificamente a novidade trazida pelo novo Código de Processo Civil: o usucapião extrajudicial.

 2.1 REQUISITOS

Para toda e qualquer modalidade de usucapião, é necessário a observância de dois requisitos obrigatórios: a posse ad usucapionem e prazo usucaptivo, que é definido por lei em cada hipótese de usucapião.

Para se caracterizar posse apta a sofrer usucapião (ad usucapionem), é necessário: a) que a coisa seja hábil, tendo em vista que o bem público e a área comum de condomínio edílico não podem sofrer usucapião; b) que a posse seja mansa e pacífica, ou seja, que seja incontestada por quem deveria requerê-la; c) que a posse seja ininterrupta, pois se houver interrupção a contagem do prazo se reinicia – excepcionando-se o caso de sucessão, em que a posse exercida pelo sucessor se presume continuação da posse inicial exercida pelo sucedido, não havendo então interrupção; d) que haja animus domini, ou seja, a vontade de ser dono.

Em havendo sucessão durante a contagem do prazo usucaptivo, entendeu a 3ª turma do STJ  no REsp 1.279.204 que o termo inicial é o da primeira posse, desde que a partir dela não tenha havido interrupção e nem oposição. Na oportunidade, o ministro João Otávio de Noronha salientou, in verbis:

Se, por uma cadeia de contratos, foram sendo cedidos os direitos hereditários sobre determinada área de terra rural e, ao longo do tempo, foi sobre ela exercida a posse ininterrupta, mansa e pacífica, sem nenhuma oposição, é possível acrescer esse tempo ao do atual posseiro para fins de aferição do decurso do lapso prescricional aquisitivo.

Quando ao prazo usucaptivo, cada modalidade terá lapso temporal específico estabelecido em lei.

Além desses, há ainda dois requisitos: o justo título e a boa-fé que, na prática, servem para diminuição do prazo usucaptivo.

O justo título é o instrumento público ou particular com aptidão para transferir a propriedade, mas que, em razão da existência de algum vício, a transferência não se efetivou. Por exemplo: uma escritura pública inválida ou um contrato particular de compra e venda. Quem tem o justo título não só tem animus domini, mas também a opinio domini, que é a convicção de ser dono. Diz-se que tem a propriedade putativa. O usucapião ordinário servirá para lhe dar o direito de propriedade que pensava tê-lo, mas não tinha.

Na prática, as hipóteses de justo título para efeito de usucapião são a da alienação inválida, mas cujo título é válido (p.ex.: suposta alienação por quem não era o proprietário), e a da alienação válida, porém ineficaz, pelo não cumprimento de alguma formalidade da qual dependia a produção de efeitos.

Por outro lado, a boa-fé é o desconhecimento dos vícios que maculam a posse. Esses dois requisitos serão exigidos na hipótese de usucapião ordinário.


3 USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL

Como já foi dito, o NCPC não inaugurou o procedimento de usucapião administrativo, apenas inovou ao abranger todas as demais espécies de usucapião, desde que sejam provados os requisitos legais em cartório de registro de imóveis e que não haja litígio.

A opção pelo usucapião extrajudicial, bem como a recusa do pedido pelo cartorário, não obsta o posterior ajuizamento, em homenagem ao princípio do acesso a justiça (CF/88, art. 5º, inc. XXXV). Essa é uma opção que preza pela celeridade, mas não prejudica o direito fundamental de acessar as vias judiciais.

O NCPC (Lei 13.105/2015), em seu artigo 1.071, acrescentou na Lei de Registros Públicos (6.015/1973) o artigo 216-A, prescrevendo:

Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado [...]

Como o texto aduz, o requerente deve estar acompanhado de advogado, pois, embora o pedido seja extrajudicial, o ato postulatório é dotado de complexidade. A petição deverá apresentar os documentos necessários para comprovar a posse pelo tempo exigido na modalidade de usucapião invocada, bem como certidões negativas de distribuição que comprovem a natureza pacífica e mansa da posse. Caso o oficial de registro de imóveis não se convencer dos fatos alegados, ainda poderá requerer diligências para elucidar as suas dúvidas.

O acolhimento do pedido, ou mesmo a sentença judicial, tem natureza declarativa, e não constitutiva, pois, uma vez cumprido os requisitos, a parte vai ao cartório ou perante o juiz apenas para declarar o direito de propriedade que já possui. A sentença que declara a usucapião serve de fundamento para o registro que, por sua vez, é indispensável para dar publicidade ao fato.

3.1 DOCUMENTOS PARA INSTRUÇÃO DO OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS

O artigo 216-A traz os documentos que deverão ser apresentados no cartório de registro de imóveis para a instrução e convencimento do oficial de registros. Esses documentos são: a) a ata notarial, que é o documento em que o tabelião formaliza e declara fidelidade àquilo que foi narrado, perpetuando a existência de um fato jurídico relevante. Esta atestará o tempo da posse do requerente e seus antecessores para averiguação do prazo usucaptivo; b) a planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, acompanhada de ART (Anotação de Responsabilidade Técnica), assinado com a concordância dos confinantes ou titulares de direitos reais sobre os limites da área usucapienda; c) as certidões negativas de ações envolvendo o imóvel usucapiendo; d) o justo título ou qualquer documento que demonstrem a origem da posse, continuidade, natureza e tempo.

Segundo o Enunciado 86 da I Jornada de Direito Civil: “a expressão ‘justo título’ contida nos artigos 1.242 e 1.260 do CC abrange todo e qualquer ato jurídico hábil, em tese, a transferir a propriedade, independentemente de registro”.

Nesse sentido, o STJ entendeu na Súmula 239 que a promessa de compra e venda constitui justo título independentemente do registro, pois se considera que teria havido a alienação, mas que a propriedade não teria se transferido pela não celebração do contrato definitivo. In verbis, a Súmula 239:

A promessa de venda gera efeitos obrigacionais não dependendo, para sua eficácia e validade, de ser formalizada em instrumento público. O direito à adjudicação compulsória é de caráter pessoal, restrito aos contratantes, não se condicionando a obligatio faciendi a inscrição no registro de imóveis.

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Dessa forma, o compromisso de compra e venda, mesmo que não seja levado ao registro, configura-se em justo título e gera direito à adjudicação compulsória, não obstante não gerar o direito real à aquisição do imóvel, o qual só se constitui com o registro. Entretanto, para que isso ocorra, é necessário que o preço tenha sido integralmente pago pelo promitente comprador.

3.2 PROCEDIMENTOS NO CARTÓRIO

O requerente, acompanhado de advogado, e tendo em mãos todos os documentos exigidos no artigo 216-A da Lei 6.015/73, tem seu pedido apreciado pelo oficial de registros de imóveis. O pedido será autuado pelo registrador e será prorrogado o prazo para prenotação até o acolhimento ou rejeição do mesmo.

O pedido deverá indicar: a) a modalidade da usucapião requerida; b) a origem e as características da posse, bem como informações sobre edificações, benfeitorias ou acessões no imóvel usucapiendo; c) o número do registro imobiliário (matrícula ou transcrição), se houver, ou a informação de que não possui matricula ou transcrição; d) o valor atribuído ao imóvel usucapiendo conforme lançamento do IPTU ou, quando não estipulado, o valor de mercado aproximado; e) em caso de sucessão, o nome e estado civil de todos os possuidores anteriores cujo tempo de posse foi somado ao do requerente para perfazer o prazo usucaptivo;

Se na planta do imóvel faltar assinatura de algum dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis dos confinantes, estes deverão ser notificados pessoalmente ou por correio (com aviso de recebimento) para manifestar seu consentimento ou impugnação no prazo de 15 dias. O silencio destes é interpretado como discordância, operando em desfavor do requerente.

Como a usucapião extrajudicial requer consenso, o oficial de registro de imóveis deverá notificar, pessoalmente ou mediante oficial de registro de títulos ou correio (com aviso de recebimento), a União, Estado, Distrito Federal e Município para que se manifestem em 15 dias. No mesmo sentido, será publicado de edital em jornal de grande circulação para ciência de terceiros e eventuais interessados para se manifestarem no mesmo prazo. Todavia, o silêncio destes não prejudica o requerente.

Durante esse prazo, se houver impugnação ao pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, e o requerente deverá emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum.

Todavia, se transcorrido os prazos de publicação sem impugnação, estando todas as documentações requeridas em ordem e não havendo mais diligências pendentes para elucidação de dúvidas do oficial de registro de imóveis, será registrada a aquisição do imóvel com as descrições apresentadas, sendo permitida, se for o caso, a abertura de matrícula.


3 - CONCLUSÃO

A novidade introduzida pela Lei 13.105/2015 de se realizar extrajudicialmente o pedido de usucapião em quaisquer de suas modalidades somente trouxe benefícios, na medida em que desafogou o Poder Judiciário e permitiu ao cidadão acessar vias mais céleres.

Além de garantir celeridade ao procedimento, não afasta o cidadão do Poder Judiciário, na medida em que o artigo 216-A da Lei 6.015/73, caput, prescreve: “sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido extrajudicial da usucapião”.

O usucapião extrajudicial encontra fundamento na Constituição Federal, quando esta prescreve que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (art. 5º, inc. LXXVIII). Dessa forma, vê-se a genialidade do legislador ordinário que atuou com os olhos voltados para o constituinte originário, anunciando um instrumento de desjudicialização que tornou mais efetivos direitos fundamentais como o acesso à Justiça, a propriedade e sua  função social e a duração razoável do processo.


REFERÊNCIAS

CONJUR. O usucapião extrajudicial no novo código de processo civil. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-mai-18/direito-civil-atual-usucapiao-extrajudicial-codigo-processo-civil>. Acesso em: 11 out. 2017.

DONIZETTI, Elpídio; QUINTELLA, Felipe. Curso didático de direito civil. 6 ed.  São Paulo: Atlas, 2017. 1240 p.

JUSBRASIL. Primeiro modelo e caso prático de pedido de usucapião extrajudicial - art. 216-a da lei de registros públicos - lei 6.015/73. Disponível em: <https://bernadetedelnero.jusbrasil.com.br/modelos-pecas/318087630/primeiro-modelo-e-caso-pratico-de-pedido-de-usucapiao-extrajudicial-art-216-a-da-lei-de-registros-publicos-lei-6015-73>. Acesso em: 11 out. 2017.

JUSBRASIL. Usucapião de imóveis e suas espécies. Disponível em: <https://rafaelioriatti.jusbrasil.com.br/artigos/200682523/usucapiao-de-imoveis-e-suas-especies>. Acesso em: 11 out. 2017.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CERQUEIRA, João Marcos. Usucapião extrajudicial como instrumento de desjudicialização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5690, 29 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70381. Acesso em: 18 abr. 2024.

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