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Função social da farmácia como estabelecimento de saúde

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02/11/2023 às 11:28
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3. FARMÁCIA: ESTABELECIMENTO COMERCIAL E DE SAÚDE

Como visto, o direito à saúde e os valores atinentes à livre iniciativa possuem notadamente amparo constitucional. Além disso, abrangem uma gama de segmentos que permeiam as mais diversas atividades, dentre as quais destacamos a farmacêutica, objeto deste estudo.

Logo, é imperioso verificar como ambos os institutos jurídicos em comento podem convergir à direção que possibilite as farmácias cumprirem com a sua função social como estabelecimento de saúde.

Em todo caso, não se pode olvidar, por uma questão lógica de mercado, que a comercialização legal de medicamentos aduz à farmácia a característica de estabelecimento empresarial, uma vez que também fomenta a exploração de sua atividade econômica.

Nesse sentido, vejamos o que ensina o doutrinador Fábio Ulhoa Coelho:

Pense-se a hipótese de um empresário interessado no comércio varejista de medicamento (farmácia). Ele deve adquirir, alugar, tomar emprestado, ou, de qualquer forma reunir determinados bens, como por exemplo: os remédios e outros produtos normalmente comercializados em farmácia, as estantes, balcões e demais itens imobiliários, a máquina registradora, balança e demais equipamentos. Além desses bens, o empresário deve encontrar um ponto para o seu estabelecimento, isto é, um imóvel (normalmente alugado) em que exercerá o comércio.

Ao organizar o estabelecimento, o empresário agrega aos bens reunidos um sobrevalor. Isto é, enquanto estes bens permanecem articulados em função da empresa, o conjunto alcança, no mercado, um valor superior a simples soma de cada um deles em separado. Aquele empresário interessado em se estabelecer no ramo farmacêutico tem, na verdade, duas opções: adquirir uma farmácia já pronta, ou todos os bens que deve existir em uma farmácia. No primeiro caso, irá despender valor maior que no segundo. Isto porque ao comprar o estabelecimento já organizado, o empresário paga não apenas os bens nele integrados, mas também a organização, um serviço que o mercado valoriza. As perspectivas de lucratividade da empresa abrigada no estabelecimento compõem, por outro lado, importante elemento de sua avaliação, ou seja, é algo por que também se paga7.

Vê-se, portanto, que a farmácia também figura como estabelecimento empresarial, tendo em vista que a atividade econômica é explorada ante a reunião de bens por parte do empresário do ramo farmacêutico.

Em outras palavras, esse conjunto de bens torna-se elemento indissociável à existência da empresa, pois não existe como dar início à exploração de qualquer atividade sem a organização de um estabelecimento.

Desse modo, a farmácia é um estabelecimento comercial cuja atividade está regulada pela Lei nº 5.991, de 17 de dezembro de 1973. Para reverberação de seus efeitos, esse diploma legal, em seu artigo 4º, apresenta conceitualmente o significado de alguns institutos jurídicos, dentre os quais destacamos os seguintes:

Art. 4º [...]

VIII - Empresa - pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, que exerça como atividade principal ou subsidiária o comércio, venda, fornecimento e distribuição de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, equiparando-se à mesma, para os efeitos desta Lei, as unidades dos órgãos da administração direta ou indireta, federal, estadual, do Distrito Federal, dos Territórios, dos Municípios e entidades paraestatais, incumbidas de serviços correspondentes;

IX - Estabelecimento - unidade da empresa destinada ao comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos;

X - Farmácia - estabelecimento de manipulação de fórmulas magistrais e oficinais, de comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, compreendendo o de dispensação e o de atendimento privativo de unidade hospitalar ou de qualquer outra equivalente de assistência médica;

XI - Drogaria - estabelecimento de dispensação e comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos em suas embalagens originais;

XII - Ervanaria - estabelecimento que realize dispensação de plantas medicinais;

XIII - Posto de medicamentos e unidades volante - estabelecimento destinado exclusivamente à venda de medicamentos industrializados em suas embalagens originais e constantes de relação elaborada pelo órgão sanitário federal, publicada na imprensa oficial, para atendimento a localidades desprovidas de farmácia ou drogaria;

XIV - Dispensário de medicamentos - setor de fornecimento de medicamentos industrializados, privativo de pequena unidade hospitalar ou equivalente;

Pelos conceitos apresentados, nota-se que os objetivos sociais da farmácia são mais amplos que os da drogaria, da ervanaria, do posto de medicamentos e unidades volante, bem como do dispensário de medicamentos, os quais, não obstante a sua importância, não compõem o escopo da presente pesquisa.

Além de exercer o comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, as farmácias também podem manter serviços de atendimento ao público para a aplicação de injeções e pequenos curativos, sob a responsabilidade do técnico habilitado, de acordo a Resolução nº 239, de 25 de setembro de 1992.

3.1 Regulamentação da atividade farmacêutica no Brasil

De antemão, vale lembrar que o papel social desses estabelecimentos se torna ainda mais importante ao considerar que grande parte da população brasileira recorre a eles como primeiro local de auxílio quando há sinais de agravos à sua saúde.

Sendo assim, torna-se oportuno traçarmos algumas linhas que nos remetam a um breve passado, a fim de compreender melhor a origem da regulamentação farmacêutica no Brasil.

A profissão farmacêutica no país sofreu grandes transformações políticas, sociais e econômicas durante o último século. De acordo com a Federação Nacional dos Farmacêuticos (FENAFAR), de 1900 a 1930, com a economia agrária, o farmacêutico exercia função social importante, pois o Estado não trabalhava a questão da saúde individual nas populações menos favorecidas economicamente, até porque a população não era tão instruída e exigente em termos de saúde8.

A Federação ainda informa que, à época, o farmacêutico preenchia esta lacuna e exercia contato direto com a população, principalmente em municípios menores, estabelecendo, desta maneira, por meio da pesquisa, produção, comercialização e orientação sobre o uso do medicamento, uma relação de respeito e confiança frente à população, justificando porque muitas definições políticas locais aconteciam dentro da farmácia.

Entre 1930 a 1964, a economia passou por uma transformação urbano-industrial, onde o Estado, principalmente a partir da Era Vargas, começou a preocupar-se com a atenção individual do cidadão, o qual nitidamente representava a força de trabalho nas indústrias.

No aludido período, o Decreto nº 19.606, de 19 de janeiro de 19319, e Decreto nº 20.377, de 08 de setembro de 193110, regulamentaram o exercício da profissão farmacêutica em todo território nacional, compreendendo, entre outros serviços, os que visavam ao desenvolvimento e ao comércio de medicamentos e produtos para a saúde, sendo privativas ao profissional farmacêutico tais atividades.

Ademais, as mencionadas legislações incluíram a atividade deste profissional na indústria farmacêutica, em consonância com o crescimento, desenvolvimento e expansão industrial desta categoria, até mesmo em âmbito mundial.

Nesse sentido, migravam ao país as transnacionais farmacêuticas, sendo a expansão da indústria farmacêutica promovida sob a estratégia de criação de novas necessidades de consumo de medicamentos como contrapartida necessária ao seu crescimento, segundo a FENAFAR11.

Na década de 70, a indústria farmacêutica instalada no Brasil cresceu mais de 300%, segundo a pesquisadora Suely Rozenfeld12. Diante dessa transformação mercantil pela qual passava o setor farmacêutico, urgia a necessidade de advir ao ordenamento jurídico brasileiro uma legislação que tratasse do controle comercial de medicamentos no Brasil.

Eis que, em 1973, essa demanda foi atendida pelos legisladores pátrios. Após 42 anos da regulamentação da atividade do profissional farmacêutico, finalmente foi aprovada a Lei nº 5.991. Ela dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos.

Essa lei sanitária foi de suma importância para o setor farmacêutico e para o comércio de medicamentos, uma vez que definiu os aspectos da responsabilidade técnica nas farmácias e nas drogarias, vigente até hoje, cabendo ao farmacêutico à centralidade dessas ações.

Em 1998, foi aprovada a Política Nacional de Medicamentos (PNM), que ofereceu um norte aos gestores de saúde, em cumprimento ao artigo 196 da Constituição da Federal de 1988, aliando políticas públicas a qualidade de serviços, bem como preservando os direitos dos cidadãos.

No ano seguinte, ocorreu a publicação da Lei nº 9.787, de 10 de fevereiro de 1999. Ela estabeleceu o medicamento genérico, contribuindo para o uso racional e acesso de medicamentos por parte dos usuários, visto a disponibilidade de produtos intercambiáveis.

Inegavelmente, tal processo sinalizou um marco na política brasileira de medicamentos, tendo em vista que a população passou a adquirir medicamentos de qualidade, a um custo evidentemente menor.

Naquele mesmo ano, fora criada pela Lei nº 9.782, de 26 de janeiro 1999, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Autarquia sob regime especial, ela tem como área de atuação não um setor específico da economia, mas todos os setores relacionados a produtos e serviços que possam afetar a saúde da população brasileira, dentre eles, o de medicamentos13.

No ano de 2000, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) de Medicamentos, realizada na Câmara dos Deputados, apontou para situações preocupantes no segmento de farmácias e drogarias, demonstrando, em síntese, que estes estabelecimentos funcionam como simples comércio, como se não fizessem parte da assistência à saúde da população14.

A conclusão foi de que, em sua maioria, tais estabelecimentos não prestam serviços farmacêuticos de qualidade e difundem o uso irracional de medicamentos, causando prejuízos no campo da economia e da saúde.

No ano de 2001, foi realizada a I Conferência Nacional de Vigilância Sanitária, visando efetivar o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. A temática girou em torno da proteção e promoção à saúde, construindo cidadania15.

Dois anos depois, chegou a vez da I Conferência Nacional de Medicamentos e Assistência Farmacêutica. O lema era efetivar o acesso, a qualidade e a humanização na assistência farmacêutica, com controle social16.

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Em 2004, o Programa Farmácia Popular do Brasil foi criado como política pública por parte do governo federal, implementado mediante parcerias com prefeituras, governos estaduais, órgãos e instituições públicas ou privadas sem fins lucrativos de assistência à saúde, colimando ampliar o acesso aos medicamentos essenciais para o tratamento de doenças com maior ocorrência no país.

Nesse sentido, analgésicos, antihipertensivos e remédios de controle para diabetes, colesterol, entre outros, tornaram-se mais acessíveis à população, mediante o simples ressarcimento dos seus custos. Um das finalidades principais do programa foi beneficiar as pessoas, que têm dificuldades para realizar o tratamento, por causa do preço dos medicamentos17.

De acordo com o Ministério da Saúde e a Fundação Oswaldo Cruz, dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de instituições brasileiras indicam que as famílias de menor renda destinam 2/3 (dois terços) dos gastos com saúde para a compra de remédios18.

Tal situação ainda hoje representa um dos grandes desafios dos gestores públicos, pois uma parcela significativa dessas pessoas comumente recorre aos serviços privados de saúde, os quais não garantem assistência farmacêutica adequada.

3.2 Política Nacional de Assistência Farmacêutica (Pnaf)

Ao encontro dessa realidade adveio a Política Nacional de Assistência Farmacêutica, nos termos da Resolução nº 338, de 06 de maio de 2004, editada pelo Ministério da Saúde, por meio de seu Conselho Nacional.

Para viabilizar a sua efetiva implementação e servir de referência aos agentes atuantes na gestão da assistência farmacêutica, 13 (treze) pontos basilares foram elencados no art. 2º do citado normativo, conforme se verifica no excerto transcrito a seguir:

Art. 2º - A Política Nacional de Assistência Farmacêutica deve englobar os seguintes eixos estratégicos:

I - a garantia de acesso e equidade às ações de saúde, inclui, necessariamente, a Assistência Farmacêutica;

II - manutenção de serviços de assistência farmacêutica na rede pública de saúde, nos diferentes níveis de atenção, considerando a necessária articulação e a observância das prioridades regionais definidas nas instâncias gestoras do SUS;

III - qualificação dos serviços de assistência farmacêutica existentes, em articulação com os gestores estaduais e municipais, nos diferentes níveis de atenção;

IV - descentralização das ações, com definição das responsabilidades das diferentes instâncias gestoras, de forma pactuada e visando a superação da fragmentação em programas desarticulados;

V - desenvolvimento, valorização, formação, fixação e capacitação de recursos humanos;

VI - modernização e ampliar a capacidade instalada e de produção dos Laboratórios Farmacêuticos Oficiais, visando o suprimento do SUS e o cumprimento de seu papel como referências de custo e qualidade da produção de medicamentos, incluindo-se a produção de fitoterápicos;

VII - utilização da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), atualizada periodicamente, como instrumento racionalizador das ações no âmbito da assistência farmacêutica;

VIII - pactuação de ações intersetoriais que visem à internalização e o desenvolvimento de tecnologias que atendam às necessidades de produtos e serviços do SUS, nos diferentes níveis de atenção;

IX - implementação de forma intersetorial, e em particular, com o Ministério da Ciência e Tecnologia, de uma política pública de desenvolvimento científico e tecnológico, envolvendo os centros de pesquisa e as universidades brasileiras, com o objetivo do desenvolvimento de inovações tecnológicas que atendam os interesses nacionais e às necessidades e prioridades do SUS;

X -definição e pactuação de ações intersetoriais que visem à utilização das plantas medicinais e medicamentos fitoterápicos no processo de atenção à saúde, com respeito aos conhecimentos tradicionais incorporados, com embasamento científico, com adoção de políticas de geração de emprego e renda, com qualificação e fixação de produtores, envolvimento dos trabalhadores em saúde no processo de incorporação desta opção terapêutica e baseado no incentivo à produção nacional, com a utilização da biodiversidade existente no País;

XI - construção de uma Política de Vigilância Sanitária que garanta o acesso da população a serviços e produtos seguros, eficazes e com qualidade;

XII - estabelecimento de mecanismos adequados para a regulação e monitoração do mercado de insumos e produtos estratégicos para a saúde, incluindo os medicamentos;

XIII - promoção do uso racional de medicamentos, por intermédio de ações que disciplinem a prescrição, a dispensação e o consumo.

Nesse sentido, nota-se que, quando observadas, tais diretrizes agregam qualidade aos serviços farmacêuticos, aprimorando os processos de gerenciamento dos planos de assistência farmacêutica e o atendimento qualificado na dispensação de medicamentos, contribuindo, diretamente, para o fortalecimento da presença do farmacêutico neste processo.

Não é demasiado destacar que a PNAF possui a visão como uma política norteadora para formulação de políticas setoriais, tais como: políticas de medicamentos, ciência e tecnologia, desenvolvimento industrial, formação de recursos humanos.

Vale apontar para o fato de que a política farmacêutica bem estruturada é imprescindível ao Sistema Único de Saúde (SUS), dado que o medicamento é insumo estratégico para a melhoria da saúde e sua ligação com as demais ações e programas de saúde é transversal, constituindo ferramenta fundamental em planejamento e de impacto nos serviços.

Destarte, as farmácias passam a ter funções e serviços definidos e serão responsáveis pelo atendimento aos usuários, com compromisso orientado ao uso racional de medicamentos e à integralidade e resolutividade das ações de saúde. Realizam, portanto, atividades consubstanciadas em atos sanitários e não apenas atos comerciais, de ética questionável.

No contexto do Sistema Único de Saúde, a farmácia, a cujo termo se inclui estabelecimentos públicos e privados, ocupa lugar privilegiado como posto avançado de saúde. Exerce papel importante na educação em saúde e na dispensação de medicamentos.

3.3 Central de Medicamentos – CEME

A assistência farmacêutica no Brasil, nas últimas décadas, se confundiu com a existência da Central de Medicamentos, criada em 1971, sendo órgão integrante da Presidência da República, destinado a promover e organizar o fornecimento, por preços acessíveis, de medicamentos de uso humano àqueles que, por suas condições econômicas, não pudessem adquiri-los19.

As atividades por ela desenvolvidas tinham a característica de um modelo centralizado de gestão, onde o nível central estabelecia as diretrizes e participava decididamente das suas execuções.

Os Estados e Municípios brasileiros eram excluídos praticamente de todo o processo decisório. Ao longo dos seus 26 anos de existência20, a CEME foi o principal ator das ações relacionadas ao medicamento e à assistência farmacêutica no país.

Com a CEME, os anos da década de 80 foram marcados por um elevado índice de produção de medicamentos essenciais, não só pelos laboratórios oficiais, como também, pelas empresas privadas de capital nacional.

Os recursos financeiros eram originários principalmente, do convênio que a CEME celebrava anualmente com o Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social – INAMPS.

Em linhas gerais, a rede dos serviços públicos ambulatoriais, inclusive do INAMPS, recebia os medicamentos adquiridos pela CEME, destinados ao uso primário, secundário e terciário da atenção à saúde, disponibilizando os produtos que compunham a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – Rename21.

Este sistema de financiamento permaneceu até o início dos anos 90, época em que houve a extinção do INAMPS, por meio do pelo Decreto nº 8.689, de 27 de julho de 1993, e sua incorporação ao Ministério da Saúde.

Entretanto, a aquisição de medicamentos continuou por meio do Ministério da Saúde, das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, que mantinham convênios próprios com a CEME.

Da mesma forma Hospitais Universitários, Santas Casas de Misericórdia e outras instituições públicas estaduais e federais, podiam ter acesso ao medicamento CEME, mediante a celebração de convênios específicos.

Em 1987, a CEME realizou um diagnóstico institucional, reconhecendo a pouca utilização da Rename pelos prescritores, desperdícios consideráveis de medicamentos, recursos financeiros insuficientes e pouco conhecimento das doenças prevalentes no país, os quais contribuíam para a ineficiência do Programa de Assistência Farmacêutica desse período.

Frente a esse diagnóstico foi definida como estratégia a criação da Farmácia Básica – CEME, como forma de racionalizar a disponibilidade de medicamentos ao atendimento primário.

Baseada em um módulo padrão de suprimentos, composto por medicamentos selecionados da Rename, a Farmácia Básica pretendia tratar dos agravos mais comuns da população, na atenção básica em nível ambulatorial. Entretanto, frente a inúmeros problemas, principalmente àqueles decorrentes da centralização dos processos de programação e aquisição que não correspondiam à realidade da demanda dos serviços de saúde dos estados e municípios, este programa com duração de dois anos, se encerrou em 1988.

Com a institucionalização do Sistema Único de Saúde - SUS por meio da Lei n.º 8.080/1990, necessário se fazia formular uma política de medicamentos, consoante à nova estrutura do sistema de saúde do país.

Em virtude da descentralização da gestão preconizada pelo SUS e assumindo os municípios a responsabilidade direta pela atenção à saúde, modificações importantes e novas questões passaram a orientar a assistência farmacêutica.

O fato é que a aquisição e a distribuição centralizadas de medicamentos efetuadas pela CEME nos últimos vinte anos demonstraram ser um processo ineficiente.

Sobre a questão, tornaram-se constantes as queixas pela escassez de produtos, avolumaram-se as perdas em estocagens sucessivas no nível central, estadual e regional até atingir o nível local.

Dessa forma, os supostos ganhos de escala econômica na aquisição de grandes lotes se perderam nos caminhos e custos dos transportes e armazenagens e nos processos burocráticos de controle.

Com a desativação da CEME, por meio do Decreto nº 2.283, de 24 de julho 1997, os anos de 1997 e 1998 foram marcados por um processo de transição dentro do Ministério da Saúde – MS, onde coube à sua Secretaria Executiva a responsabilidade da manutenção das atividades de aquisição e distribuição dos medicamentos dos programas estratégicos para as Secretarias Estaduais de Saúde.

3.4 Política Nacional de Medicamentos

Ao fim da década de 90, coube à Secretaria de Políticas de Saúde – SPS – coordenar o processo de elaboração e construção de uma nova Política Nacional de Medicamentos – PNM – para o Brasil, de modo a acompanhar a reforma do setor saúde, o que resultou na edição da Portaria GM nº 3.916, de 30 de outubro de 1998.

Essa política teve como base os princípios e diretrizes do SUS, integrando os esforços voltados à consolidação do mesmo, contribuindo ao desenvolvimento social do país, orientando a execução das ações e metas fixadas para o Ministério da Saúde22:

As diretrizes aprovadas na Política Nacional de Medicamentos foram as seguintes:

  • Adoção da Relação de Medicamentos Essenciais;

  • Regulação Sanitária de Medicamentos;

  • Reorientação da Assistência Farmacêutica;

  • Promoção do Uso Racional de Medicamentos;

  • Desenvolvimento Científico e Tecnológico;

  • Promoção da Produção de Medicamentos;

  • Garantia da Segurança, Eficácia e Qualidade dos Medicamentos;

  • Desenvolvimento e Capacitação de Recursos Humanos.

Essas diretrizes objetivam nortear as ações nas três esferas de governo que, atuando em estreita parceria, devem promover o acesso da população a medicamentos seguros, eficazes e de qualidade, ao menor custo possível.

Uma das diretrizes fundamentais da PNM é a Reorientação da Assistência Farmacêutica, de modo que o modelo adotado não se restrinja apenas à aquisição e à distribuição de medicamentos.

Conforme estabelecido na PNM, as ações incluídas nesse campo da assistência farmacêutica têm por objetivo implementar, no âmbito das três esferas do SUS, todas as atividades relacionadas à promoção do acesso da população aos medicamentos e seu uso racional.

De qualquer maneira, o histórico da assistência farmacêutica no Brasil demonstra que ainda há grandes carências nessa área, em especial no que se refere ao acesso e a organização de serviços farmacêuticos qualificados, que venham, efetivamente, promover a sua reorientação.

3.5 A Reorientação da Assistência Farmacêutica

A PNM, ao trazer como uma de suas principais diretrizes a Reorientação da Assistência Farmacêutica, impôs nova ordem acerca dos desafios para ampliação do acesso e promoção do uso racional de medicamentos, a ser assumida pelas três instâncias gestoras do SUS, mostrando, assim, a necessidade de uma visão mais abrangente que passa pela compreensão da mudança na concepção da assistência farmacêutica na resolutividade das ações de saúde23.

Este processo de reorientação, ainda em curso no país, esta fundamentado:

  • na descentralização da gestão;

  • na promoção do acesso e uso racional de medicamentos;

  • na otimização e eficácia das atividades envolvidas na assistência farmacêutica;

  • na busca de iniciativas que possibilitem a redução de preços dos produtos, promovendo, inclusive, o acesso da população aos mesmos no âmbito do setor privado.

Desse modo, ampliou-se o conceito de assistência farmacêutica, que passa a ser caracterizado como um grupo de atividades relacionadas ao medicamento, as quais constituem um ciclo que compreende: a seleção, a programação, aquisição, o armazenamento e distribuição, o controle da qualidade, a prescrição e a dispensação.

A implementação da PNM exigiu a definição de planos, programas e atividades específicas nas esferas federal, estadual e municipal. Neste contexto, em março de 1999, foi publicada a Portaria GM nº 176, que instituiu o Incentivo à Assistência Farmacêutica Básica, considerando como responsabilidade do Ministério da Saúde o financiamento dos Programas Estratégicos.

A lógica de financiamento adotada por essa portaria, com repasse do Incentivo à Assistência Farmacêutica Básica do fundo federal diretamente aos fundos estaduais e municipais de saúde, conforme pactuação nas respectivas Comissões Intergestores Bipartites – CIB, assim como a definição da responsabilidade compartilhada entre os três níveis de gestão, de forma coerente com os propósitos do SUS, figura como passo efetivo na descentralização da gestão, permitindo a progressiva autonomia dos estados e municípios24.

Os critérios e requisitos estabelecidos pela portaria em comento para a qualificação ao Incentivo à Assistência Farmacêutica Básica possibilitaram aos Estados e Municípios a definição conjunta dos recursos financeiros correspondentes às respectivas contrapartidas e da elaboração do Plano Estadual de Assistência Farmacêutica Básica, o qual contempla o elenco de medicamentos básicos, bem como, a sistemática de programação, acompanhamento, controle e avaliação da sua implementação no Estado.

A partir da instituição do Incentivo, a Secretaria de Políticas de Saúde – SPS – do Ministério da Saúde, por intermédio de sua Gerência Técnica de Assistência Farmacêutica (GTAF), pôde desenvolver atividades voltadas ao aperfeiçoamento do processo de implementação da assistência farmacêutica, quer na elaboração de documentos e materiais instrucionais, quer desenvolvendo, em conjunto com os representantes dos Estados e dos Municípios, estratégias de avaliação, cujos resultados permitem definir novos caminhos no sentido de consolidar a descentralização da assistência farmacêutica básica no Brasil.

3.6 A Gerência Técnica de Assistência Farmacêutica

A Gerência Técnica de Assistência Farmacêutica – GTAF – integra o Departamento de Atenção Básica de Saúde – DAB/Secretaria de Políticas de Saúde – SPS/MS.

Suas atividades gerenciais e seu desempenho técnico e administrativo encontram-se voltados a um conjunto diversificado de objetivos direcionados a implementação da Política Nacional de Medicamentos e à consolidação do SUS, tendo como ponto norteador a Reorientação da Assistência Farmacêutica.

Especificamente, suas atribuições são as seguintes:

  1. assessorar a SPS e demais instâncias do Ministério da Saúde em assuntos relativos à assistência farmacêutica;

  2. interagir com as áreas técnicas do Ministério da Saúde e demais Ministérios, na formulação e execução de projetos;

  3. elaborar estratégias e projetos em consonância com a Política Nacional de Medicamentos;

  4. prestar cooperação técnica às instâncias do SUS no desenvolvimento das atividades relativas a Política Nacional de Medicamentos.

Em atendimento aos propósitos da PNM, a GTAF buscou estruturar-se técnica e administrativamente para cumprir o seu papel. Frente à sua responsabilidade social e à amplitude de suas ações, a Gerência Técnica de Assistência Farmacêutica estabeleceu como missão a responsabilidade de contribuir na ampliação do acesso e utilização racional dos medicamentos essenciais no sistema de saúde.

Desse modo, considerando que o medicamento é um insumo estratégico na melhoria das condições de saúde e vida da população, a GTAF adotou como parte da estratégia de sua gestão um plano de ação, além do compromisso na implementação da PNM e dos instrumentos técnicos e operacionais, fundamentais à estruturação e qualificação da assistência farmacêutica no âmbito dos Estados e Municípios.

Nesse sentido, a GTAF, entendendo que a Reorientação da Assistência Farmacêutica constitui um processo de contínuo aperfeiçoamento, passível de adequações e de estímulos, conduziu programas, projetos e atividades que, de forma articulada com os Estados e Municípios, buscaram propiciar o aprimoramento da gestão, melhorando a efetividade das ações desenvolvidas e o acesso ao medicamento.

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Sobre o autor
Lucas Calvi Akl

Advogado, com atuação especializada em concurso público e processo disciplinar.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AKL, Lucas Calvi. Função social da farmácia como estabelecimento de saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7428, 2 nov. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70385. Acesso em: 16 abr. 2024.

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