4 - DA FIXAÇÃO DE ASTREINTES PELO DESCUMPRIMENTO
No que tange às prestações de saúde por via judicial, cabe ao juízo a possibilidade de cominação de multa à fazenda pública que não cumpre com a decisão que concede o fornecimento dos medicamentos pleiteados, sendo, inclusive, a fixação de multa largamente utilizada e aceita pela jurisprudência, tal como decidido por unanimidade de votos pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, sob o rito de recursos repetitivos:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC/1973. AÇÃO ORDINÁRIA DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO PARA O TRATAMENTO DE MOLÉSTIA. IMPOSIÇÃO DE MULTA DIÁRIA (ASTREINTES) COMO MEIO DE COMPELIR O DEVEDOR A ADIMPLIR A OBRIGAÇÃO. FAZENDA PÚBLICA. POSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO DO CONTEÚDO NORMATIVO INSERTO NO § 5º DO ART. 461 DO CPC/1973. DIREITO À SAÚDE E À VIDA. Conheço do recurso especial e dou-lhe provimento, a fim de restabelecer a imposição de multa diária, caso haja descumprimento da obrigação de fazer. Todavia, reduzo, de ofício, o valor da multa, fixando-o em um salário mínimo por mês, caso haja descumprimento na obrigação de fornecer o medicamento, determinou o relator. (STJ. RECURSO ESPECIAL: REsp 1474665 RS 2014/0207479-7. Relator: Min. Benedito Gonçalves. DJ: 22/06/2017. JusBrasil, 2017. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/471215149/recurso-especial-resp-1474665-rs-2014-0207479-7?ref=juris-tabs. Acesso em: 21 mai. 2018.)
As multas impostas se mostram necessárias à medida em que servem de "estímulo" para os entes cumprirem com a decisão que antecipou os efeitos da tutela de mérito, pois, com exceção dos sequestros de verbas públicas, nenhuma outra medida tem se apresentado eficaz para convencer o ente estatal ao cumprimento das decisões judiciais, ficando demonstrado que os pedidos de busca e apreensão de medicamentos são inócuos, haja vista a realidade das farmácias públicas que não mantém a quantidade de medicamentos e insumos adequadamente.
No que toca aos valores de multas impostas, tem-se que o Juízo é deveras cauteloso, tanto que, geralmente, o valor fixado não consta como fato impeditivo do ente descumprir as inúmeras decisões judiciais prolatadas em seu desfavor, relativas às prestações de saúde, sendo tal fato notório.
Nas ações por medicamentos e insumos, a fixação de multa tem sido o instrumento utilizado a fim de penalizar pelo descumprimento da decisão judicial, podendo ser aplicada tanto a pessoas jurídicas, como a pessoas físicas.
Neste sentido, pode-se observar no julgado abaixo colacionado, a busca pela garantia dos direitos fundamentais, o qual demonstra na ordem constitucional e jurídica, proteção à vida, à igualdade à liberdade entre outros.
ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. AÇÃO JUDICIAL PARA O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA JURISDICIONAL CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. POSSIBILIDADE. PRESSUPOSTOS DO ART. 273 DO CPC. SÚMULA 7/STJ. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS PELO FUNCIONAMENTO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DA UNIÃO.1. É possível a concessão de antecipação dos efeitos da tutela contra a Fazenda Pública para obrigá-la a fornecer medicamento a cidadão que não consegue ter acesso, com dignidade, a tratamento que lhe assegure o direito à vida, podendo, inclusive, ser fixada multa cominatória para tal fim, ou até mesmo proceder-se a bloqueio de verbas públicas. Precedentes. 2. A apreciação dos requisitos de que trata o art. 273 do Código de Processo Civil para a concessão da tutela antecipada enseja o revolvimento do conjunto fático-probatório dos autos, o que é vedado pela Súmula 7/STJ. 3. O funcionamento do Sistema Único de Saúde é de responsabilidade solidária da União, dos Estados e dos Municípios, de modo que qualquer um desses entes tem legitimidade ad causam para figurar no polo passivo de demanda que objetiva a garantia do acesso a medicamentos para tratamento de problema de saúde. Precedentes. 4. Agravo regimental não provido. (STJ. RECURSO ESPECIAL: REsp: 1291883 PI 2011/0188155-1, Relator: Min. Castro Meira. DJ: 20/06/2013. JusBrasil, 2011. Disponível em: .https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/23577120/agravo-regimental-no-recurso-especial-agrg-no-resp-1291883-pi-2011-0188115-1-stj/relatorio-e-voto-23577123?ref=juris-tabs Acesso em: 04 jun. 2018.)
Sucede-se que, embora haja a imposição de multa para garantir o cumprimento da decisão, nem sempre ocorre o devido cumprimento, uma vez que a multa reflete diretamente ao patrimônio do ente público e não do agente administrativo, responsável pela má gestão referente à saúde, que acaba negligenciando o cumprimento da decisão judicial, causando confusão ao Judiciário, que, por sua vez vê suas decisões serem largamente ignoradas, para a surpresa dos jurisdicionados, mais uma vez tendo seus direitos sendo desrespeitados.
O agente público, Prefeito ou Secretário de Saúde, que ao receber ofício de Juiz de Direito determinando o fornecimento de certo medicamento, simplesmente ignora, sem deflagrar procedimento administrativo para cumprimento da ordem judicial, incide em crime de desobediência, consoante dispositivo no artigo 330, do Código Penal.
Não se trata de questionar se é ou não crime do Prefeito ou do Secretário de Saúde cumprir a decisão completamente, mas sim de reconhecer como dever inerente ao seu cargo público adotar medidas concretas para buscar o cumprimento, tais como promover licitação – para medicamentos de uso continuado, que pelo ofício judicial já sabe que terá que providenciar- bem como informar o Juízo as medidas adotadas e o tempo que levará.
Conforme leciona Hugo de Brito Machado (2002):
Não é razoável sustentar-se, que, sendo o Estado responsável pela prestação jurisdicional, cuja presteza lhe cabe preservar, tutelando e defendendo o interesse público primário, possa ele próprio cometer um ato atentatório a dignidade da jurisdição. Quem comete esse ato na verdade é o servidor público que não está realmente preparado para o desempenho suas atribuições em um Estado de Direito. A esse, portanto, cabe suportar a sanção correspondente.
Diante do exposto, fica demonstrada a necessidade da fixação de astreinte em face da fazenda pública que se omite diante de decisões judiciais que determinam o fornecimento dos medicamentos necessários ao munícipe enfermo, causando constrangimento ao adotar tal medida, uma vez que não é de competência do Judiciário estipular política pública de saúde, mas, tão somente, fazer garantir os direitos previstos em lei.
CONCLUSÃO
Com o presente estudo ficou demonstrado que os entes públicos têm responsabilidade solidária quanto à prestação de saúde às pessoas acometidas de enfermidade, a fim de garantir o direito constitucional de assistência à saúde.
Ocorre que, mesmo sendo uma garantia constitucional, é notória a ineficácia do Sistema Único de Saúde, onde não há medicamentos básicos para dispensação nas farmácias municipais, obrigando, indiretamente, o cidadão necessitado de procurar socorro ao Poder Judiciário a fim de requerer direito à saúde. Ressalte-se que uma pequena parcela de pessoas tem conhecimento da possibilidade de propor uma ação judicial em face do Estado a fim de pleitear medicamentos, quando a maioria, muitas vezes hipossuficientes, esperam, em estado de urgência, regularização do sistema de saúde.
Salienta-se que a opção de a pessoa doente ajuizar ação judicial não é garantia de que vá conseguir receber os medicamentos que necessita em tempo ágil para o tratamento, pois é um processo moroso e nem sempre eficaz, tendo em vista que pode haver evolução no quadro clínico da parte ou, até mesmo, o óbito pela falta de tratamento.
Na Comarca de Nova Iguaçu, a Defensoria Pública da 7ª Vara Cível, propôs Ação Civil Pública, de nº 0038713-95.2018.8.19.0038, expondo os fatos ocorridos no município devido à má gestão nas políticas públicas de saúde, em razão da alta quantidade de ações requerendo medicamentos, principalmente aqueles integrados na lista do SUS, mas que nunca estão disponíveis na Secretaria de Saúde, requerendo a regularização dos medicamentos na Secretaria, bem como a licitação dos medicamentos mais pleiteados, baseado nos ofícios expedidos a fim de verificar a disponibilidade.
Em decisão, o juiz da 7ª Vara Cível da Comarca de Nova Iguaçu, Dr. Gustavo Quintanilha julgou favoravelmente, senão vejamos:
O principal problema, sem dúvida, consiste na reiterada falta de medicamentos no dispensário Municipal. Importante discutir sobre se as quantidades necessárias à população estão sendo regularmente definidas e adquiridas, e se estão sendo cumpridos os critérios legais de controle e dispensação destes medicamentos, notadamente para que se compreenda o motivo dessa falta - que gera tantas ações individuais - e, principalmente, sejam apresentadas soluções eficazes. Há questões periféricas relevantes, como a existência de programas de cadastramento para recebimento de medicamento e vias efetivas para que a população realize esse cadastramento; os critérios legais e regulamentares para que as pessoas possam obter esses medicamentos; o local físico onde podem se cadastrar, retirar os medicamentos mensalmente ou fazer reclamação administrativa sobre a falta dos medicamentos, para que providências concretas sejam adotadas. Outros temas importantes são a inclusão das obrigações decorrentes de decisões judiciais, entre as providências efetivas do Município para adquirir e dispensar medicamentos, haja vista que, evidentemente, a obrigação judicial de fornecimento de medicamentos equipara-se a legal, para todos efeitos administrativos práticos. Por outro lado, há temas ínsitos às próprias ações judiciais, quais sejam, a validade dos laudos e sua origem - lembrando que cabe ao Município prover o atendimento ambulatorial para fins de obtenção de receituário pelas partes; a periodicidade da necessidade de renovação dos laudos no caso de doenças crônicas, assim reconhecidas inclusive pelo laudo do NAT (Núcleo Atendimento Técnico). Por fim, no que tange os processos já em curso que não sejam sanados pelo compromisso que este juízo espera firmemente seja alcançado, caberá debater as exigências que podem legitimamente ser feitas as partes, em sua maioria hipossuficientes, com limitações econômicas, de locomoção, de acesso à internet e até mesmo de instrução básica. Especialmente deverá ser considerado que a dinâmica do processo judicial é que deve atender à especificidade - e urgência - do direito material e não o contrário, a fim de que se cogite de um protocolo que assegure mais efetividade à tutela jurisdicional, sem descuidar da necessária atenção ao uso de verba pública. (TJRJ. Decisão – Concedida a Medida Liminar. Juiz: Gustavo Quintanilha Telles de Menezes. DJ: 29/05/2018. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, 2018. Disponível em: http://www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoWebV2/popdespacho.jsp?tipoato=Descri%E7%E3o&numMov=21&descMov=Decis%E3o. Acesso em: 04 jun. 2018.)
Portanto fica demonstrado que o direito a saúde é universal e, ficam, os entes federados obrigados solidariamente a garantir, mediante políticas públicas de saúde, meios que viabilizem a preservação da saúde, bem como o tratamento daquele que se vir acometido de
doença grave. Infelizmente, as políticas públicas implementadas pelo Ministério da Saúde não consegue alcançar toda sociedade, tendo em vista, a falta de recursos orçamentários, muitas vezes decorrente de má gestão.
Porém, embora, a assistência à saúde esteja integrada ao princípio da universalidade, assegurando às pessoas a não discriminação, preconceitos e privilégios, na prática, é fato notório a falta de medicamentos e prestações emergenciais de saúde, mesmo aqueles previstos na lista dos medicamentos padronizados pelo SUS.
Por esses motivos acima expostos, o enfermo vê a necessidade de propor, como medida alternativa, ação judicial para garantir seu direito a saúde, tendo em vista o retorno negativo dos entes em fornecer a medicação.
Ou seja, por conta da falha do sistema administrativo em promover saúde, faz-se necessário movimentar o Poder Judiciário para decidir questões pertinentes à integridade das pessoas doentes. Ocorre que, atualmente, o Poder Judiciário está assoberbado das ações que tratam de medicamentos e, mesmo assim, não se vê uma evolução quanto às políticas públicas relacionadas a saúde, quedando-se, mais uma vez, inerte os entes federados.
Em virtude dos fatos acima expostos, ficou demonstrado que os entes federativos não podem se mostrar omissos quanto ao direito à saúde da população, sob pena de incidir em grave violação aos direitos fundamentais previstos na nossa Constituição.
ABSTRACT
THE PASSIVE SOLIDARITY OF FEDERATIVE EDUCATION: WHAT ABOUT THE PUBLIC HEALTH SYSTEM AND ITS INEFFECTIVENESS
The Federal Constitution guarantees people the right to health, but it is to verify the inefficacy of public policies in complying with the guaranteed right. If it is necessary to seek alternative measures to obtain this, what is to file a lawsuit in order to require medicines and inputs to federative entities.
Keywords: Right to health. Passive Solidarity. Medicines.
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