SUMÁRIO: I) Dos juizados especiais e da transação penal; II) Das espécies de penas propostas e do descumprimento injustificado; II.1 da multa; II.2 da pena restritiva de direitos; II.2.1 Da pena restritiva de direitos; II.2.2 Da conversão em pena privativa de liberdade; II.2.3 Da retomada ou propositura da ação penal; II.2.4 Da execução do acordo descumprido; II.2.5 Da impossibilidade de conversão em pena privativa de liberdade (ausência de previsão legal) e início ou retomada da ação penal; III) Conclusão.
I) Dos Juizados Especiais e da transação penal
Cumprindo o mandamento insculpido no art. 98, I da Carta Política, com o advento da Lei nº 9.099/1995, criou o legislador medidas despenalizadoras, dentre as quais a composição civil, a transação penal e a suspensão condicional do processo.
Trata-se de medida que foi ao encontro dos anseios da sociedade, notadamente da população menos abastada, no sentido de proporcionar prestação da tutela jurisdicional simples, rápida, econômica e segura; enfim, mecanismo hábil de ampliação do acesso à ordem jurídica justa.
Outro não é o entendimento do poder legiferante, que na exposição de motivos da lei em comento ressaltou a necessidade de o sistema processual penal pátrio conformar-se à tendência contemporânea que advoga a manutenção, via de regra, dos princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública, permitindo, entretanto, a denominada discricionariedade regulada, legalmente estabelecida e submetida ao controle jurisdicional, que permite ao Estado, verificadas as condições previstas no texto legal, a faculdade, ou melhor, a disponibilidade da ação penal pública.
Dentre os objetivos visados pela Lei dos Juizados Especiais destacam-se: a) a desobstrução do Judiciário, que se dedica às questões mais importantes; b) a eliminação das chamadas "cerimônias degradantes"; c) a simplificação do procedimento, com a adoção do princípio da oralidade; d) a aplicação imediata de medidas não privativas de liberdade, o que afasta a sensação de impunidade.
No entendimento de Joel Dias Figueira Júnior e Maurício Antonio Ribeiro Lopes (5), instituiu referida norma um novo processo legal em que estão presentes uma fase preliminar mista, que se inicia com atos policiais, prossegue com audiência preliminar, em juízo, em que pode haver transação civil entre as partes quanto aos danos decorrentes do fato delituoso, repercutindo na ação penal quando ela for privada ou condicionada; ou transação entre o autor do fato e o Ministério Público, para aplicação de pena não privativa de liberdade, e findar com a sentença que homologa o acordo civil, ou a que acolhe, ou não, a transação penal efetuada entre o órgão ministerial e o autor da infração penal, aplicando, quando for o caso, a pena acordada, encerrando o procedimento; ou, de outro giro, com o oferecimento da denúncia ou da queixa-crime, necessária, dessa forma, a reunião de todos os elementos caracterizadores do fato delituoso a ser decidido, de modo a permitir ao seu autor a defesa técnica.
No sistema adotado pela legislação pátria, a transação penal tem por escopo premiar o autor do delito que tenha conduta de vida anterior irreparável e tenha praticado delito de reduzido potencial ofensivo. Objetiva-se estimular o sentimento de responsabilidade pessoal do agente, materializado na proibição de se repetir a aplicação do benefício dentro do período de cinco anos (art. 76, § 2º, II). Em suma, tratando-se de infração penal de menor potencial ofensivo e atendidas a exigências determinadas no art. 76 de referida lei, presentes estão as condições que permitem se realize a transação, que consiste na proposta, pelo Ministério Público, de aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não passível de arquivamento.
Segundo Dr. Divino Marcos de Melo Amorim (2), a proposta de transação trata-se de direito/dever imposto ao Ministério Público, que pode deixar de ofertá-la desde que haja justificação embasada na legislação vigente. Tal assertiva é corroborada por Ada Pellegrini Grinover e outros (6) que, aprofundando o raciocínio, preconizam tratar-se de direito subjetivo do autuado, passível de ser suprido pela autoridade judicial na hipótese de não se verificar a atuação do Ministério Público.
II) Das espécies de penas propostas e do descumprimento injustificado
Estabelece o art. 76 da Lei nº 9.099/1995 que a proposta de transação penal contempla duas espécies de composição: aplicação de pena restritiva de direitos ou multa.
Da multa
Relativamente à pena de multa, se aplicada exclusivamente, verificado seu descumprimento é de se proceder à sua execução, aplicando-se as normas da legislação que regem a dívida ativa da Fazenda Pública, dado que por disposição expressa da Lei nº 9.268/1996 tal imposição é considerada dívida de valor.
Em vista da parcial revogação tácita do art. 85 da Lei dos Juizados Especiais Criminais, fica proibida a conversão da pena de multa em privativa de liberdade.
Tal juízo é corroborado pelos tribunais, que entendem não ser cabível tal imposição penal, conforme dão conta os julgados adiante enumerados:
"JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL – Transação penal homologada pelo Juiz – Prosseguimento da ação penal em virtude do inadimplemento, pelo acusado, da pena de multa aplicada – Inadmissibilidade (Apelação nº 1.094.771/1 – São Paulo – 6ª Câmara - Relator: Almeida Braga – 8/4/98 – V.U. (Voto nº 7.693) – Acórdão confirmado pelo STJ, na decisão do Resp nº 190.734."
"CRIMINAL. JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. TRANSAÇÃO. PENA DE MULTA. DESCUMPRIMENTO. OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. IMPOSSIBILIDADE. (REsp 172981/SP, RT 770/536, rel. Min. Fernando Gonçalves, 6ª Turma)"
"RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. LEI 9.099/95, ART. 76. TRANSAÇÃO PENAL. PENA DE MULTA. DESCUMPRIMENTO DO ACORDO PELO AUTOR DO FATO. OFERECIMENTO DE DENÚNCIA PELO MP. INADMISSIBILIDADE. SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA. NATUREZA JURÍDICA CONDENATÓRIA. EFICÁCIA DE COISA JULGADA FORMAL E MATERIAL. (REsp 172951/SP, DJ 31/05/1999, pág. 169, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, 5ª Turma)"
"RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. LEI 9.099/95, ART. 76. TRANSAÇÃO PENAL. PENA DE MULTA. DESCUMPRIMENTO DO ACORDO PELO AUTOR DO FATO. OFERECIMENTO DE DENÚNCIA PELO MP. INADMISSIBILIDADE. SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA. NATUREZA JURÍDICA CONDENATÓRIA. EFICÁCIA DE COISA JULGADA FORMAL E MATERIAL. (REsp 194637/SP, DJ 24/05/1999, pág. 190, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, 5ª Turma)"
Da pena restritiva de direitos
Como visto anteriormente, quanto à execução da pena de multa, a princípio verifica-se que não existe divergência doutrinária ou jurisprudencial significativa a se aplicar o Código Penal à pena de multa imposta e não adimplida..
Entretanto, no que diz respeito à pena restritiva de direitos, trata-se de vexata quaestio em que há controvérsia tanto da doutrina mais abalizada quanto da jurisprudência, nas hipóteses em que não é cumprida a transação.
Damásio de Jesus (8) enumera quatro hipóteses de conseqüências que adviriam do descumprimento da pena restritiva de direitos: a primeira diz respeito à conversão em pena privativa de liberdade; a segunda, à retomada ou propositura da ação penal evitada pela composição; a terceira, à execução do acordo descumprido e a quarta, à não conversão em pena privativa de liberdade, tampouco em início ou retomada da ação penal, por falta de previsão legal.
Segundo o renomado jurista, a composição penal encerra o procedimento, o que não permite a retomada do processo, nem imposição de pena privativa de liberdade. Não previu o legislador a hipótese de não serem atendidas as condições impostas no acordo da transação penal, daí originando controvérsias.
Antes de se analisar cada uma das hipóteses citadas pelo insígne doutrinador, procurar-se-á definir a natureza da sentença prolatada no curso da transação.
Como se sabe uma das características de tal instituto é evitar se instaure o processo penal, abrindo possibilidade da composição na fase administrativa ou pré-processual, portanto, antes do oferecimento da denúncia, e de qualquer atividade investigativa da autoridade policial. Nesse sentido serve de paradigma o julgado do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo no HC 288.586/4, 2ª Câmara, de que se extrai o excerto:
"...não é dado ao Ministério Público ou ao juiz, sem que antes se confirme a inviabilidade das alternativas previstas no art. 72 (composição com a vítima ou aceitação da aplicação imediata de pena não privativa de liberdade), 75 (renúncia à representação quando exigida) e 76 (aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa), exigir da autoridade policial a oitiva dos envolvidos, juntada de documentos ou outras diligências assemelhadas destinadas apenas a fornecer elementos indiciários de convicção. Somente na oportunidade do oferecimento da denúncia ou arquivamento, depois de esgotadas todas as tentativas de transação, é que tais diligências, se absolutamente necessárias, cabem ser requisitadas."
Impende definir qual a característica da manifestação judicial aludida no art. 76, § 4º que, segundo a lei trata-se de sentença, passível de ser atacada por apelação, nos termos do § 1º do art. 82. Existem duas correntes, uma delas entende tratar-se de sentença homologatória e a outra, homologatória de natureza condenatória (ou condenatória imprópria, por aplicar a pena mas não seus efeitos).
Segundo a jurisprudência da mais alta Corte, trata-se de sentença homologatória. A título exemplificativo, cite-se o Acórdão da 2ª Turma do STF, no HC 79.572, de Goiás, julgado em 29.02.2000, relator o Ministro Marco Aurélio que dispôs ser "a sentença que aplica pena no caso do art. 76 da Lei dos Juizados Especiais Criminais não é nem condenatória e nem absolutória. É homologatória da transação penal".
A controvérsia fica por conta dos doutrinadores. É basilar o ensinamento de Maurício Antonio Ribeiro Lopes (5) que entende assumir a feição homologatória apenas na situação prevista no art. 74 (que trata da composição dos danos civis). Segundo ele "...Em Direito Penal, não existe sentença meramente homologatória. A rigor, o que se deve discutir é se a natureza da sentença, no caso, é apenas declaratória, ou constitutiva, ou, ainda, condenatória".
Interessante é a posição de César Henrique Alves (1), juiz de direito substituto em Boa Vista (RR) que perfilha o entendimento de que a sentença que homologa a transação penal trata-se de manifestação (ou decisão) interlocutória, não se podendo falar em decisão absolutória ou condenatória, dado que não examina aspectos de materialidade tampouco culpabilidade.
Passemos a decompor as espécies de orientações citadas por Damásio de Jesus:
Da conversão em pena privativa de liberdade
Ada Pellegrini Grinover, em parceria com outros renomados juristas (6), admite, em tese, tal procedimento sob a alegação de que, muito embora a Carta Política em seu art. 5º, LIV, estabeleça que ninguém será privado da liberdade sem o devido processo legal, de outro giro a própria Constituição Federal em seu art. 98, I admite expressamente a transação, que por ser norma específica, prepondera sobre a norma geral antes relatada. Aduz, ainda, que a previsão legal para se apenar o descumpridor está calcada na Lei de Execuções Penais, referida no art. 86 da Lei nº 9.099/1995. Segundo argumenta, faltaria previsão legal para que tal sistemática fosse implantada.
Julgado do STJ, adiante citado minudentemente, admitiu a conversão sob o argumento de que o descumprimento dá ensejo a processo autônomo de execução que pode desaguar em pena restritiva de liberdade. O acusado, ao transacionar, renuncia a alguns direitos perfeitamente disponíveis, pois, de forma livre e consciente, aceitou a proposta e, conseqüentemente, a culpa. (RHC 8198/GO, 1998/0096138-0, DJ 01/07/1999, rel. min. Fernando Gonçalves).
Marcelo Marcos Cardoso e Marcos Martins (3), acadêmicos de Direito na Universidade Paranaense elaboraram interessante argumento acerca da legitimidade da execução da medida aceita e homologada, convertendo-a em pena privativa de liberdade.
Segundo os autores, a resistência dos que advogam ser inviável a conversão acha-se sedimentada nas seguintes considerações: a) a pena restritiva de direitos trata-se de garantia fundamental do autor do fato; b) ausência do devido processo legal; c) ausência do contraditório e da ampla defesa; d) a conversão afasta a impunidade; e) desrespeito ao Estado Democrático de Direito, e, f) a homologação da transação é condenação, medida que põe fim ao processo.
Arvorando-se em posições de Mirabete, Ada Grinover e Luiz Flávio Gomes, que, em suma, definem ser a sentença de homologação título executivo, passível, portanto de ser convertida em pena restritiva de liberdade, propugnam que "a conversão defendida nesse trabalho atuaria como autêntica profilaxia, fazendo com que os infratores cessem seus comportamentos dispersivos e insubordinados. Perderiam eles sua arrogância e senso de desafio e, além disso – o mais importante, daria bom exemplo a eventuais inadimplentes e serviria de verdadeira medida de prevenção geral".
Como reforço à tese, relatam alguns julgados, a seguir relacionados:
"PROCESSO PENAL – TRANSAÇÃO – PENA RESTRITIVA DE DIREITOS – NÃO CUMPRIMENTO. Realizada transação penal entre o Autor do fato e o Ministério Público, sendo aplicada pena restritiva de direitos consistente na prestação de serviços gerais à comunidade, desde que não cumprida, pode ser convertida em pena de detenção. Abolida foi apenas a conversão da multa não paga em pena privativa de liberdade, quando se remete o apenado ao processo executivo civil""(Acórdão 105951, j. 14.04.98 -–rel. Juiz Haydevalda Sampaio. DJDF, 15.06.98, p. 103 – in RT 755/674)."
"Transação penal/Lei 9099/95, art. 76-Distinção quanto à SUSPENSÃO DO PROCESSO – Descumprimento de PENA ALTERNATIVA – Conversão em PENA RESTRITIVA DE LIBERDADE – Admissibilidade. Criminal. Juizado Especial Criminal. Transação. Pena alternativa. Descumprimento. Conversão em pena restritiva de liberdade. Legitimidade. 1. A transação penal prevista no artigo 76 da Lei nº 9.099/95, distingüiu-se da suspensão do processo (artigo 89), porquanto, na primeira hipótese faz-se mister a efetiva concordância quanto a pena alternativa a ser fixada e, na segunda, há apenas uma proposta do parquet no sentido de o acusado submeter-se não a uma pena, mas ao cumprimento de algumas condições. Deste modo, a sentença homologatória da transação tem, também, caráter condenatório impróprio (não gera reincidência, nem pesa como maus antecedentes, no caso de outra superveniente de infração), abrindo ensejo a um processo autônomo de execução, que pode – legitimamente – desaguar na conversão em pena restritiva de liberdade, sem mau trato ao princípio do devido processo legal. É que o acusado, ao transacionar renuncia a alguns direitos perfeitamente disponíveis, pois, de forma livre e consciente, aceitou a proposta, ipso facto, a culpa. 2. Recurso de habeas corpus improvido (STJ – HC 8198 – Goiânia – 6ª T. – Rel. Min. Fernando Gonçalves – j. 08.06.99 – DJU I, 01.07.99, p. 211). No mesmo sentido o STJ REsp 172981/SP – 6ª T. DJU 02.08.99, Rel. Min. Fernando Gonçalves.
Fernanda Arcoverde Cavalcanti Nogueira (10), advogada em Salvador (BA), expõe com clareza pensamento arguto que fere de morte qualquer possibilidade de conversão imediata. Trata-se de quantificar a pena convertida. Argumenta a causídica que na situação em que a pena restritiva de direitos que substituiu a privativa de liberdade é convertida em prisão, existe um parâmetro que é a pena aplicada. No caso de descumprimento da transação, qual seria?
Ultimamente a manifestação jurisprudencial caminha no sentido de não admitir a conversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade, conforme dão conta os acórdãos a seguir enumerados:
"JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL – Descumprimento de transação penal em que imposta pena restritiva de direitos – Conversão da reprimenda em privativa de liberdade – Inadmissibilidade. – Em sede de Juizado Especial Criminal, descumprida a transação penal em que imposta pena restritiva de direitos, é inadmissível converter a reprimenda em detenção, não se aplicando o art. 44, § 4º do CP, pois a imposição da detentiva pressupõe a existência de anterior pena privativa de liberdade substituída pela restritiva de direitos, sob risco de restringir-se a liberdade do autor do fato sem o devido processo legal." (TACrim - Ap. 1.297.059/1 – Igarapava – 16ª Câmara – Rel. Mesquita de Paula – 14.03.2002 – V. U. nº 7.664)
"JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL – Transação penal – Descumprimento – Conversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade – Impossibilidade – Em sede de Juizado Especial Criminal é impossível a conversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade, em virtude do descumprimento de transação penal, porque, simplesmente, não há a anterior condenação do autor do fato em reprimenda corporal que veio a ser substituída." (TACrim Agr. Ex. 1.225.501/4 – São Paulo – 12ª Câmara – Rel. Antonio Manssur – 6.11.2000 – V.U. (Voto nº 5.007)
"JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL – Transação penal efetivada nos termos do art. 76 da Lei nº 9.099/95, fixando pena restritiva de direitos – Inviabilidade de sua conversão em pena privativa de liberdade – Recurso extraordinário de que não se conhece." (RE 268320/PR, Rel. Min. Octávio Gallotti, j. 15.08.2000, DJ 10.11.2000 – 1ª Turma, STF)
"CRIMINAL. CONDENAÇÃO A PENA RESTRITIVA DE DIREITO COMO RESULTADO DA TRANSAÇÃO PREVISTA NO ART. 76 DA LEI Nº 9.099/95. CONVERSÃO EM PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. DESCABIMENTO. A conversão da pena restritiva de direito (art. 43 do Código Penal) em privativa de liberdade, sem o devido processo legal e sem defesa, caracteriza situação não permitida em nosso ordenamento constitucional, que assegura a qualquer cidadão a defesa em juízo, ou de não ser privado da vida, liberdade ou propriedade, sem a garantia da tramitação de um processo, segundo a forma estabelecida em lei. Recurso não conhecido." (RE 268319/PR, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 13.06.2000, DJ 27.10.2000, 1ª Turma, STF)
Da retomada ou propositura da ação penal
Por meio da figura da retomada da ação penal o autor do fato não seria preso de imediato, exerceria seu direito ao contraditório e à ampla defesa.
O Estado não seria criticado pela impunidade do autor do fato, que teria as garantias processuais e direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. Trata-se de situação não prevista na Lei nº 9.099/95.
Partindo-se da premissa de que a transação penal é homologada por meio de decisão judicial que tem eficácia de coisa julgada formal e material, é inadmissível sua aceitação. Corroborando tal assertiva, transcrevem-se as ementas dos seguintes julgados:
"RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. LEI 9.099/95, ART. 76. TRANSAÇÃO PENAL. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE. DESCUMPRIMENTO DO ACORDO PELO AUTOR DO FATO. OFERECIMENTO DE DENÚNCIA PELO MP. INADMISSIBILIDADE. SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA. NATUREZA JURÍDICA CONDENATÓRIA. EFICÁCIA DE COISA JULGADA FORMAL E MATERIAL." (REsp 196090/SP 1998/00877269-8, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 24.05.1999, p. 192, STJ)
"RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. LEI 9.099/95, ART. 76. TRANSAÇÃO PENAL. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE. DESCUMPRIMENTO DO ACORDO PELO AUTOR DO FATO. OFERECIMENTO DE DENÚNCIA PELO MP. INADMISSIBILIDADE. SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA. NATUREZA JURÍDICA CONDENATÓRIA. EFICÁCIA DE COISA JULGADA FORMAL E MATERIAL." (REsp 191719/SP 1998/0075737-6, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 24.05.1999, p. 190, STJ)
"JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL – Transação penal – Descumprimento de acordo consistente em prestação de serviços à comunidade – Oferecimento da denúncia pelo Ministério Público – Impossibilidade." (Apel. 1.297.555/2 – São Paulo – 3ª Câmara – Rel. Carlos Bueno, 5.3.2002, V.U. (Voto nº 2.089)
"JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL – Transação penal homologada – Início do processo de conhecimento – Inadmissibilidade. Homologada a transação penal realizada nos termos do art. 76 da Lei nº 9.099/95, torna-se inadmissível iniciar-se o processo de conhecimento, posto que este foi afastado em virtude do ato jurídico firmado nesse sentido, sendo certo que a decisão homologatória fica coberta com o manto do trânsito em julgado, formal e material." (Rec 1.168.377/6 – São Paulo – 15ª Câmara – Rel. Geraldo Lucena – 28.10.99 – V.U. (Voto 9.699))
Em sentido contrário:
"JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL – Transação penal – Ausência de cumprimento do acordado – Oferecimento de denúncia – Possibilidade. A transação penal, prevista no art. 76 da Lei nº 9.099/95, conquanto homologada judicialmente, tem cunho administrativo, em que não se contesta a imputação, não se admite culpa e não se condena nem se absolve, não fazendo coisa julgada material, mas apenas formal, o que permite ao Ministério Público, em face do não cumprimento do acordado, promover a devida Ação Penal, oferecendo denúncia." (Apel 1.224.741/8 – Novo Horizonte – 2ª Câmara – Rel. Silvério Ribeiro – 14.12.2000 – V. U. (Voto nº 7.569))
Vale ressaltar o voto proferido pelo Ministro Marco Aurélio, da 2ª Turma do STF, no HC 79.572 , citado por Damásio de Jesus (8) que reformou acordão do Superior Tribunal de Justiça e decidiu que:
a)a sentença que aplica pena no caso do art. 76 da Lei dos Juizados Especiais Criminais não é nem condenatória e nem absolutória. É homologatória da transação penal;
b)tem eficácia de título executivo judicial, como ocorre na esfera civil (art. 584, III, do CPC);
c)se o autor do fato não cumpre a pena restritiva de direitos, como a prestação de serviços à comunidade, o efeito é a desconstituição do acordo penal;
d)em conseqüência, os autos devem ser remetidos ao Ministério Público para que requeira a instauração de inquérito policial ou ofereça denúncia.
Segundo o renomado jurista a orientação do STF não encontra amparo legal, pois inexiste dispositivo permitindo tal providência.
Da execução do acordo descumprido
Fernanda Arcoverde Cavalcanti Nogueira (10) entende ser a melhor alternativa a se adotar na situação em que o autor do fato descumpre o acordado. Segundo a articulista, assume o indigitado uma obrigação de fazer, amparada pela teoria geral das obrigações, encontrando, por conseguinte, supedâneo no Código de Processo Civil, arts. 632 a 641.
Ressalta que embora a legislação trata como pena restritiva de direitos, na essência ocorre uma medida restritiva de direitos, o que afasta, de plano, a aplicação da Lei de Execuções Penais. Salienta que o objetivo do legislador, ao trazer ao mundo jurídico a Lei nº 9.099/95 foi o de minimizar, ou abolir, a aplicação da pena de prisão para as infrações de menor potencial ofensivo.
Registra, também, que não há lógica em se admitir o processo de execução civil para a multa inadimplida e não aplicá-lo ao acordo descumprido.
Do Rio Grande do Sul promanam julgados que prevêem a execução como forma de se resolver o impasse advindo do descumprimento do acordo. A seguir, colacionam-se alguns:
"TRANSAÇÃO CRIMINAL HOMOLOGADA. DESCUMPRIMENTO. O trânsito em julgado da decisão que homologa a transação criminal produz a eficácia de coisa julgada. Com a superação da fase de conhecimento, a pretensão cabível é a de cunho executório, e não acusatória. Correição Parcial indeferida." (Correição nº 71000170126, Turma Recursal Criminal. Ijuí, Rel. Dr. Nereu José Giacomolli, 08.02.01, à unanimidade)
"TRANSAÇÃO PENAL. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE. NÃO CUMPRIMENTO. INVIABILIDADE DE PROSSEGUIMENTO DO FEITO. CABE APENAS EXECUÇÃO. Havendo sentença homologatória, com trânsito em julgado, não pode o processo prosseguir, com denúncia, inclusive, porque tal possibilidade não constou no acordo." (Apelação nº 71000253583, Turma Recursal Criminal, Uruguaiana, Rel. Dra. Katia Elenise Oliveira da Silva, 29.11.01)
"TRANSAÇÃO PENAL. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE. NÃO CUMPRIMENTO. INVIABILIDADE DE PROSSEGUIMENTO DO FEITO. CABE APENAS EXECUÇÃO. Havendo sentença homologatória, com trânsito em julgado, não pode o processo prosseguir, com denúncia, inclusive, porque tal possibilidade não constou no acordo." (Apelação nº 71000253526, Turma Recursal Criminal, Uruguaiana, Rel. Dra. Katia Elenise Oliveira da Silva, 19.12.01)
Em desfavor da autora antes citada pesam os argumentos de Humberto Theodoro Júnior (12) que entende ser passível de execução a sentença penal condenatória que atenda aos seguintes requisitos:
a)a sentença criminal deve ser definitiva, de maneira que as sentenças de pronúncia, que mandam o réu a julgamento final perante o júri, nenhuma conseqüência têm no tocante à execução civil;
b)a condenação criminal há de ter passado em julgado;
c)a vítima deve, preliminarmente, promover a liquidação do quantum da indenização a que tem direito, observando-se, no procedimento preparatório da execução (arts. 603 a 611 do Código de Processo Civil), as normas e critérios específicos traçados pelo Código Civil para "liquidação das obrigações resultantes de atos ilícitos" e que constam de seus arts. 1.527 a 1.553.
Da impossibilidade de conversão em pena privativa de liberdade (ausência de previsão legal) e início ou retomada da ação penal
Argumenta Damásio (8) que a composição penal encerrou o procedimento e que o legislador, não prevendo a hipótese, criou uma situação sem solução contra o autor do fato.
Parece não haver dúvida que a falta de previsão instaurou um imbróglio jurídico. Se o autor do fato não cumprir voluntariamente o que foi acordado nada ocorre contra ele. A adentrarmos por essa senda institucionalizaríamos a impunidade. De fato, seria extremamente cômodo para o autor do fato transacionar, descumprir o que foi acordado e ver-se livre de qualquer espécie de apenação.
As considerações expendidas pelo magistrado Antonio José Franco de Souza Pecego (11) são bastante oportunas. A transação deveria ter sido criada para que fosse proposta após o recebimento da denúncia, durante o processo judicial.
Endente ele que melhor andaria o legislador se previsse na Lei dos Juizados Especiais Criminais, em vez da transação, acordo em que o Estado abriria mão do jus puniendi em troca da conduta absolutamente normal do autor do fato, no prazo prescricional da infração que lhe foi imputada, para em seguida, encerrar-se o procedimento.
IV) Conclusão
A partir do momento em que os indivíduos abriram mão da autotutela, transferindo ao Estado a prerrogativa, ou melhor, o dever da pacificação social, o afloramento de qualquer espécie de conflito deve ser resolvido de forma a manter a própria estrutura do tecido social.
Princípio fundamental do próprio Estado de Direito, explícito na Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro que, a despeito de sua denominação, trata-se de lei sobre interpretação de leis, é o de que o juiz decidirá conforme a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito. A corroborar tal assertiva, o Código de Processo Civil preceitua que o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei.
Dessa forma, adotar-se o posicionamento que entende que a composição penal encerrou o procedimento não resolve a situação de desequilíbrio que se instaurou com o descumprimento da obrigação concertada com o autor do fato.
Na ocorrência de tal estado de coisa, é dever do Estado manifestar-se, de forma a garantir, não só para a sociedade, como para o autor do fato, que o descumprimento do que foi acordado gera conseqüências.
Executar a sentença implica adoção de posições distintas, em razão da natureza jurídica que a ela for dada. Se for encarada como sentença homologatória, como entendem alguns, abre-se oportunidade ao Ministério Público de requerer a instauração de inquérito ou propor ação penal, oferecendo a respectiva denúncia. Se, por outro lado, for considerada sentença homologatória de natureza imprópria, o procedimento antes referido é obstado pela qualidade, ou eficácia – como quer o CPC- , da sentença, que caracteriza o instituto da coisa julgada material.
É oportuno considerar-se o enfoque de que a decisão pré-processual deve ser encarada como manifestação interlocutória, dado que apenas existe notícia crime.
A Carta Política em seu art. 98, I e a própria Lei nº 9.099/95 não proíbem se dê início ao processo. Se o que se preserva é a inexistência de qualquer espécie de registro denegatório contra o autor do fato, de lege ferenda seja a Lei modificada no sentido de que se instaure o processo, seja levado adiante o acordo, sob condição resolutiva da homologação ao final de seu cumprimento. Atendendo o autor a todos os quesitos acordados, encerra-se o processo sem qualquer registro.
BIBLIOGRAFIA
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