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A desigualdade de gênero e a violência contra a mulher à luz da Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher

01/11/2002 às 00:00
Leia nesta página:

   "A igualdade não é um dado, mas um construído"

       (Hannah Arendt)


Introdução

A complexidade da problemática da discriminação e da violência contra a mulher, envolvendo diferentes e significativos aspectos, não é recente, é uma questão milenar.

Diante dos instrumentos jurídicos contemporâneos e das inovações legais, tanto no aspecto interno, como internacional (global e regional), o presente estudo abordará situações concretas transformadas em decisões judiciais propondo as seguintes indagações: os mecanismos atuais de proteção à mulher são suficientes para promover a erradicação das discriminações e violências? Há necessidade de otimizar esses mecanismos? Quais os principais desafios a este processo? Quais os obstáculos? Quais as perspectivas e possibilidades?

À luz desses estudos, buscar-se-á enfocar possibilidades de otimização e perspectivas capazes de estimular o processo de erradicação da discriminação e da violência contra a mulher.


A busca da razão e as influências culturais

Os gregos conceberam a idéia ocidental de razão com um pensamento que segue princípios e regras de valor universal. Sendo assim, a razão é um traço de distinção da condição humana, bem como a capacidade de acúmulo de conhecimento e de transmissão do mesmo pela linguagem.

"Traz em si a superação dos mitos, dos preconceitos, das aparências, das opiniões sem fundamento. Representa, também, a percepção do outro, do próximo, em sua humanidade e direitos. Idealmente, a razão é o caminho da justiça, o domínio da inteligência sobre os instintos, interesses e paixões." [1]

A essência humana se compõe de elementos racionais.

O ser humano tem a faculdade de escolher livremente os seus próprios fins, ou os objetivos a alcançar pela sua atividade. E isso só se realiza em virtude de outra característica essencial do homem, que é a razão axiológica ou capacidade de apreciação de valores éticos, utilitários, estéticos, religiosos, e de livre escolha entre eles. O ser humano é o único ser que vai dar conteúdo moral aos seus atos, é o único ser que vai valorar eticamente suas ações.

Neste contexto, a razão humana confunde-se com a própria dignidade humana inerente a todo ser humano, simplesmente por ser "ser humano". Seja qual for a condição da pessoa ela será titular de direitos, e os direitos humanos serão instrumentos de proteção à dignidade humana. Surge assim, uma universalidade de direitos voltada à proteção e garantia da dignidade humana. É a razão surgindo como fonte principal dos direitos humanos.

É possível afirmar que ao lado da razão humana, também caminha a ideologia, ou seja, aspectos ideológicos e culturais da sociedade em que o ser humano vive. Há uma interferência cultural em suas atitudes.

A universalidade traz a idéia de que os direitos humanos são universais, independentemente da nacionalidade do indivíduo. Considera a "condição de pessoa" como requisito mínimo para que a pessoa seja titular de direitos. Leva em consideração a dignidade humana.

Por outro lado, para o relativismo cultural a cultura é que vai ser a fonte primordial dos direitos humanos. A razão vai ser limitada ou eliminada em função de valores culturais. Tem-se aqui uma concepção de ser humano completamente determinado pelo meio. Uma modificação da cultura poderá causar danos temerários à própria identidade do indivíduo.

"Neste prisma, cada cultura possui seu próprio discurso acerca dos direitos fundamentais, que está relacionado às específicas circunstâncias culturais e históricas de cada sociedade. Neste sentido, acreditam os relativistas, o pluralismo cultural impede a formação de uma moral universal, tornando-se necessário que se respeite as diferenças culturais apresentadas por cada sociedade, bem como seu peculiar sistema moral." [2]

Em alguns casos, quando há eliminação de qualquer resquício de razão, o relativismo cultural pode chegar a seu ponto máximo.

A título de exemplo caberia citar os grupos terroristas islâmicos, que em função de sua cultura, permitem que seus princípios culturais sejam levados às últimas conseqüências.

Também caberia citar as tribos do Kênia e da Somália, onde ainda hoje é comum a prática de mutilação genital feminina na transição da mulher para a vida adulta, cujo fundamento para tal prática é a inferioridade da mulher. É o uso do poder, da força para defender valores culturais. A cultura desses lugares chega a cegar essas mulher ao ponto delas pensarem que não há no mundo mulheres que não sejam mutiladas.

Após séculos de determinadas práticas culturais desiguais, pode-se afirmar que os instrumentos internacionais de proteção dos direitos ainda têm muitos desafios pela frente.


Violência de gênero: a eficácia dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos

Entende-se por violência contra a mulher "qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado", ao mesmo tempo que elege a comunidade, os agentes do Estado e qualquer sujeito convivente nas relações interpessoais como sujeitos ativos dos atos de violência, demonstrando grande sensibilidade social e observação cuidadosa dos fatos que ocorrem com freqüência nas relações sociais latino-americanas.

Assim, entende-se como violência também aquela que tenha ocorrido dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja convivido no mesmo domicílio, na comunidade e perpetrada por qualquer pessoa, na comunidade, local de trabalho, estabelecimentos educacionais de saúde ou qualquer outro lugar, e mesmo aquela perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes onde quer que ocorra.

A violência contra a mulher é um assunto que precisa ser tratado com seriedade. Pois, trata-se de um fenômeno generalizado que não distingue raça, classe social ou religião. Recente estudo constatou que de cada cinco mulheres que faltam ao trabalho, uma o faz por violência doméstica. Em 1994 constatou-se que, de cada cem mulheres que morrem nesta situação, setenta morrem por causas advindas de violência doméstica. A principal causa de lesões contra as mulheres de 15 a 45 anos são agressões por parte de seus parceiros. Em 1998, constatou-se que, de 66,3 % dos acusados em homicídios contra mulheres eram seus próprios parceiros. [3]

Pode-se dizer que os dados são alarmantes.

Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos asseguram parâmetros protetivos mínimos. Só se aplicam no sentido de fortalecer, aprimorar e ampliar o grau de proteção dos Direitos Humanos no âmbito interno.

O sistema internacional de proteção dos direitos humanos pode apresentar diferentes âmbitos de aplicação. Assim, tem-se os sistemas global e regional de proteção aos direitos humanos.

O campo de incidência do sistema global de proteção abrange os Estados da comunidade internacional que fizerem parte das convenções internacionais que integrarem o sistema global de proteção, produzidos no âmbito das Nações Unidas.

O sistema regional de proteção aos direitos humanos, como o próprio nome diz busca internacionalizar os direitos humanos no plano regional, ou seja, no âmbito do continente, por exemplo: Europa, África, América.

A convivência global consolida-se pelos instrumentos das Nações Unidas, como a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948).

No âmbito regional, no que tange ao assunto em questão, tem-se a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, adotada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos em 06.06.1994, ratificada pelo Brasil em 27.11.1995.

Pode-se afirmar que tal Convenção é corajosa ao tratar deste assunto, principalmente pelo fato de permitir a petição individual para assegurar direitos. O art. 12 dessa Convenção prevê o mecanismo das petições.

Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas, ao contrário, são complementares.

"O propósito da coexistência de distintos instrumentos jurídicos – garantindo os mesmos direitos – é, pois, no sentido de ampliar e fortalecer a proteção dos direitos humanos. O que importa é o grau de eficácia da proteção e, por isso, deve ser aplicada a norma que no caso concreto melhor proteja a vítima." [4]

O Direito Internacional dos Direitos Humanos constitui atualmente o ambiente que dispensa a proteção mais sofisticada aos direitos especializados da mulher e das meninas enquanto componentes dos grupos vulneráveis.

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, a "Convenção de Belém do Pará"(1994), introduziu disposições de conteúdo normativo bastante relevante, em seus artigos 1º, 2º e 5º, que definem com bastante precisão a violência contra a mulher, ampliando sensivelmente a possibilidade de proteção dispensada pelo ordenamento jurídico nacional às condutas e fatos ali enunciados.

É importante frisar que o prévio esgotamento dos recursos internos ainda é pressuposto para se pleitear a proteção dos instrumentos internacionais perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Flávia Piovesan ensina que "para recorrer à Comissão é necessário ter esgotado todas as vias nacionais competentes, comprovando-se a ineficácia das mesmas. Esta é a tônica dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, que apresentam um caráter subsidiário, sendo uma garantia adicional de proteção. Por isso, os procedimentos internacionais só podem ser acionados na hipótese das instituições nacionais se mostrarem falhas ou omissas no dever de proteger os direitos fundamentais." [5]


A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) e seus reflexos no Brasil

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher insere-se no sistema regional especial de proteção aos direitos humanos.

Foi aprovada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos em 09 de junho de 1994. Tal Convenção foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com a promulgação do Decreto Presidencial nº 1.973, de 01 de agosto de 1996. Trata-se de Tratado internacional que vincula o Brasil não só perante os demais Estados signatários, mas também internacionalmente, possibilitando sua plena aplicação e execução ante o Poder Judiciário.

O preâmbulo da referida Convenção afirma que "a violência contra a mulher constitui uma violência dos direitos humanos e das liberdades fundamentais e limita total ou parcialmente à mulher o reconhecimento, o gozo e exercício de tais direitos e liberdades". Em seguida, demonstra preocupação porque "a violência contra a mulher é uma ofensa à dignidade humana e uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens."

A adoção desta Convenção no âmbito da Organização dos Estados Americanos, constitui uma contribuição positiva para proteger os direitos da mulher e eliminar as situações de violência que possam afetá-la.

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Em seu art. 1º, a Convenção de Belém do Pará define a violência contra a mulher como "qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público, como no privado". Dessa forma, reconhece expressamente que a violência contra a mulher é um fenômeno que pode afetar a mulher tanto dentro da esfera doméstica quanto na comunidade em que vive, incluindo também as instituições educacionais e relações de trabalho.

O capítulo II da Convenção elenca os direitos protegidos. O art. 4º menciona expressamente alguns direitos das mulheres, tais como:

- o direito a que se respeite sua vida, integridade física, mental e moral;

- direito à liberdade e segurança pessoais;

- direito à não ser submetida à tortura;

- direito a que se respeite a dignidade inerente à sua pessoa e que se proteja sua família;

- direito à igual proteção perante a lei e da lei;

- direito a recurso simples e rápido perante tribunal competente que a proteja contra atos que violem os seus direitos;

- direito de livre associação;

- direito de professar a própria religião e as próprias crenças, de acordo com a lei;

- direito a ter igualdade de acesso às funções públicas de seu país e a participar nos assuntos públicos, inclusive na tomada de decisões.

Em seu art. 6º, a Convenção estatui "o direito de toda mulher a uma vida livre de violência inclui, entre outros, o direito da mulher de ser livre de toda a forma de discriminação".

"A esse propósito, importa lembrar que, em abril de 1995, foi editada a Lei n. 9.029, que exatamente ‘proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho’. Resulta, portanto, que ao menos no âmbito trabalhista, as mulheres brasileiras contam com um instrumento específico de proteção à não discriminação (...)". [6]

O capítulo III da Convenção de Belém do Pará disciplina os deveres dos Estados-parte. Nesse sentido, o Brasil, ao ratificar o Pacto, assumiu o compromisso de adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas a prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher.

É interessante notar que a Convenção adotou a sistemática de deveres exigíveis de imediato, previstos pelo art. 7º, e deveres exigíveis progressivamente, contemplados pelo art. 8º. Assim, as obrigações assumidas nos termos do art. 8º, são providências de efeito programático a serem implementadas paulatinamente, destinando-se, em sua maior parte, a prevenir a violência contra a mulher.

As obrigações assumidas nos termos do art. 7º , por serem exigíveis de imediato, são passíveis de serem exigidas, em caso de violência, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Pois, o art. 12 da própria Convenção, reconhece que qualquer pessoa ou grupo de pessoas o direito de apresentar denúncias ou queixas de sua violência à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Assim, no que diz respeito aos mecanismos de monitoramento, a Convenção de Belém do Pará representa um enorme avanço, pois não se restringe ao sistema de relatórios.

Dentre as obrigações assumidas pelo Brasil e demais países signatários nos termos do art. 7º da Convenção, destacam-se:

- estabelecer procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher que tenha sido submetida a violência, que incluam, entre outros, medidas de proteção, um julgamento oportuno e o acesso efetivo a tais procedimentos;

- estabelecer os mecanismos judiciais e administrativos necessários para assegurar que a mulher, objeto de violência, tenha acesso a efetivo ressarcimento, reparação do dano e outros meios de compensação justos e eficazes;

- adotar medidas jurídicas que exijam do agressor abster-se de fustigar, perseguir, intimidar ou pôr em perigo a vida da mulher de alguma forma que atente contra sua integridade ou prejudique sua propriedade;

- incluir em sua legislação interna normas penais, civis e administrativas necessárias para punir, prevenir e erradicar a violência contra a mulher.

Dessa forma, todos os compromissos acima enunciados são exigíveis de imediato ao Estado-parte da Convenção. Significa, portanto, que as mulheres vítimas de violência podem e devem recorrer ao Poder Judiciário para exigir a plena aplicação da norma internacional, que se encontra perfeitamente integrada ao ordenamento jurídico pátrio.

Outra alternativa consiste em apresentar denúncia ou queixa à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, conforme previsão do art. 12 da Convenção: "Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados membros da Organização, pode apresentar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos petições que contenham denúncias ou queixas de violação do art. 7º da presente Convenção pelo Estado-parte, e a Comissão considera-las-á de acordo com as normas e os requisitos de procedimento para a apresentação e consideração de petições estipulados na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e no Estatuto e Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos."

Dessa forma, é possível afirmar que a proteção internacional aos direitos da mulher tornou-se reforçada com a possibilidade de recurso individual à Comissão Interamericana, sem qualquer intervenção por parte do Estado-parte. Assim, a mulher cujos direitos fundamentais tenham sido violados tem a prerrogativa de individualmente provocar tal mecanismo internacional, ultrapassando a esfera jurídica estritamente nacional de proteção.


Os principais desafios e perspectivas para a construção da igualdade de gênero

Faz-se necessário tecer algumas considerações sobre os direitos humanos sob uma perspectiva de gênero.

O gênero como objeto de proteção normativa deve atentar fundamentalmente para o fato que não é um dado ou um fato biológico, mas socialmente construído, uma vez que mesmo a percepção do sexo é interpretada, sendo culturalmente condicionado.

O discurso jurídico desenvolvido em atenção à perspectiva de gênero é um discurso que prima pelo respeito ao direito à diferença, que não significa desigualdade. Não se deve tratar a mulher promovendo desigualdades não autorizadas pela lei, mas percebê-la como sujeito especializado de direitos que têm por conteúdo não a diferenciação odiosa ou a defesa das minorias, mas a identidade.

Antes de aprender a aplicar as normas originárias dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, o operador do Direito deve aprender a aplicar efetivamente a Constituição Federal do Brasil, atribuindo às cláusulas definidoras de direitos e garantias individuais e coletivas com a máxima eficácia.

O Poder Judiciário e todos os operadores do Direito, bem como a sociedade como um tudo, devem não só se sensibilizar, mas ter a coragem de atribuir a máxima eficácia aos dispositivos constitucionais da carta magna de 1988 para adaptá-la à prática jurídica da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos no plano interno deve ser entendida como automática, de acordo com o que dispõe o art. 5º, § 1º da Constituição Federal, que preceitua: "As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.". Dessa forma, observa-se que os Tratados de Direitos Humanos apresentam caráter especial e buscam a salvaguarda da pessoa humana até mesmo em função do próprio Estado.

Também é interessante ressaltar que os Tratados de Direitos Humanos não possuem hierarquia normativa em função da Constituição Federal, ou seja, ocupam uma posição de igualdade se comparados à Constituição. É o que se pode afirmar a partir da análise do art. 5º, § 2º da CF: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte."

A violência contra a mulher é um problema complexo que não se resolverá de forma simples. Encontrar soluções representa um enorme desafio para as mulheres em geral e para os demais segmentos da sociedade. Neste assunto, as políticas preventivas são fundamentais.

O combate à violência contra a mulher exige ações integradas em diversos níveis, áreas e instâncias. Não se pode combater a violência sem exigir o fim da impunidade.

Também é necessário conquistar a estabilidade dos órgãos de apoio, para garantir a continuidade das políticas públicas. Na educação faz-se fundamental as discussões sobre a igualdade de gênero e o combate às discriminações.

Enfim, a luta não pode cessar. As mulheres precisam seguir em frente contra os preconceitos, esteriótipos e tabus que a colocam numa condição de inferioridade e, dessa forma legitimam a violência.

É interessante neste estudo a transcrição de ementários de jurisprudências consideradas imprescindíveis neste processo de diminuição de desigualdade e de eliminação da discriminação.

a) Princípio da igualdade e Proibição da Discriminação.

Igualdade. Princípio. Discriminação. Proibição.

O princípio da isonomia, que se reveste de auto-aplicabilidade, não é – enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica – suscetível de regulamentação ou de complementação normativa. Esse princípio – cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público – deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA 55/114), sob duplo aspecto: (a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei – que opera numa fase de generalidade puramente abstrata – constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva de inconstitucionalidade. (STF – MI n. 58- DF – Pleno – m.v. – 14.12.90 – rel. p/ acórdão Min. Celso de Mello) DJU, de 19.4.91, p. 4.580.

b) Violência Sexual contra Menina

Bem analisada a prova dos autos, concluo que as razões que levaram a meritíssima Juíza a absolver o réu são de ordem cultural, numa sociedade que assimilou como natural e desculpável, apenas uma questão moral de foro familiar, a violência perpetrada na intimidade dos lares contra mulheres e crianças. Tal postura é inaceitável em face dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, como a Convenção Interamericana para Punir, Prevenir e Erradicar a Violência contra a Mulher, da Organização dos Estados Americanos (OEA), "Convenção de Belém do Pará", incorporada ao direito pátrio por força do disposto no § 2º do inciso LXXVII do artigo 5º da Constituição Federal, bem como em face do disposto no § 8º, do artigo 226, artigo 227, caput e § 4º do CP. (TJ?MT – Apelação Criminal n. 2.514/97 – rel. Dês. Shelma Lombardi de Kato).

c) Violência contra a Mulher e Legítima Defesa da Honra

Mulher. Violência. Adultério. Legítima defesa da honra. Inexistência.

Recurso Especial. Tribunal do Júri. Duplo homicídio praticado pelo marido que surpreende sua esposa em flagrante adultério. Hipótese em que não se configura legítima defesa da honra.

Decisão que se anula por manifesta contrariedade à prova dos autos (art. 593, parágrafo 3º, do CPP). Não há ofensa à honra do marido pelo adultério da esposa, desde que não existe essa honra conjugal. Ela é pessoal, própria de cada um dos cônjuges. O marido, que mata sua mulher para conservar um falso crédito, na verdade, age em momento de transtorno mental transitório, de acordo com a lição de Himénez de Asuá (El criminalista, Buenos Aires: Zavalia, 1960, v. 4, p. 34), desde que não se comprove ato de delibada vingança.

O adultério não coloca o marido ofendido em estado de legítima defesa, pela sua incompatibilidade com os requisitos do artigo 25, do Código Penal.

A prova dos autos conduz à autoria e à materialidade do duplo homicídio (mulher e amante), não à pretendida legitimidade da ação delituosa do marido. A lei civil aponta os caminhos da separação e do divórcio. Nada justifica matar a mulher que, ao adulterar, não preservou a sua própria honra.

Nesta fase do processo, não se há de falar em ofensa à soberania do Júri, desde que os seus veredictos só se tornam invioláveis, quando não há mais possibilidade de apelação. Não é o caso dos autos, submetidos, ainda, à regra do artigo 593, parágrafo 3º, do CPP.

Recurso provido para cessar a decisão do Júri e o acórdão recorrido, para sujeitar o réu a novo julgamento. (STF – REsp. n. 1.517 – PR – 6ª T. – m.v. – 11.3.91 – rel. Min. José Cândido) DJU, de 15.4.91, p. 4.309.


Conclusões

É desnecessário um aprofundamento nas pesquisas para se constatar que a igualdade de gênero adotada por nossa Constituição Federal e por pactos internacionais aos quais o Brasil é signatário ainda têm pela frente um árduo caminho de lutas e transformações culturais para tornar-se realidade.

Como visto, são incontáveis os casos de violência praticada contra a mulher no Brasil, que é um país marcado por uma ideologia sexista que estigmatiza o gênero feminino.

Os efeitos perversos dessa tradição discriminatória se refletem nas mais variadas formas de violação dos direitos humanos da mulher: estupros, espancamentos domésticos, prostituição forçada, violência física e psicológica, etc, constituindo assim, numa forma de retrocesso às conquistas no âmbito dos direitos humanos.

Nesse contexto, o presente trabalho teve por objetivo estudar a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, único instrumento regional de proteção aos direitos da mulher atualmente em vigor no Brasil. A respectiva Convenção encontra-se em perfeita harmonia com a sistemática traçada pela Constituição de 1988.

O que falta para uma diminuição da desigualdade de gênero e da violência contra a mulher é uma maior efetividade para tais previsões legais, ou seja, que sejam cumpridas a despeito da cultura patriarcal ainda dominante em nosso país.

Mulheres vítimas de violência não podem se calar. Devem recorrer ao Poder Judiciário, a fim de que este aplique e execute dispositivos de direitos humanos, tanto aqueles contemplados diretamente pela legislação nacional, como outros resultantes da adesão do Brasil a tratados internacionais, em especial a Convenção da ONU sobre a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.


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Notas

1. BARROSO, 2001, p. 04.

2. PIOVESAN, 2002, p. 192-193

3. Dados obtidos nas aulas da Professora Dra. Flávia Piovesan, ministradas no curso de Pós-Graduação stricto-sensu da PUC SP.

4. PIOVESAN, 2002, p. 229.

5. PIOVESAN, Flávia, 1998, p. 148-149.

6. ARAÚJO, N. , MONTEBELLO, M, 2002, p. 707.

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Sobre a autora
Carla Fernanda de Marco

advogada em São José do Rio Preto (SP), mestranda em Direito das Relações Internacionais pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARCO, Carla Fernanda. A desigualdade de gênero e a violência contra a mulher à luz da Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3452. Acesso em: 16 abr. 2024.

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