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A teoria da cegueira deliberada e sua aplicação nos crimes de lavagem de dinheiro no Brasil

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19/12/2018 às 13:00
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4 CONCLUSÃO

Demonstrou-se, no presente trabalho, a aplicabilidade da Teoria da cegueira deliberada nos crimes de “lavagem de dinheiro” no Brasil. Tais crimes foram introduzidos no direito pátrio através da Lei n° 9.613/1998, alterada pela Lei nº 12.683/2012, cuja alteração permitiu a aplicação do dolo eventual, caracterizado na atitude de indiferença do agente operador dos ativos em perscrutar a origem e a licitude dos bens, direitos e valores que movimenta.

Nesse contexto, a aplicação do dolo eventual mostrou-se relevante para a repressão desses delitos, especialmente na percepção da complexidade dessas operações, que, na maioria das vezes o “lavador” do dinheiro encontra-se desvinculado do crime antecedente, mas agente das operações de ocultação e dissimulação de ativos.

Demonstrou-se, contudo, que, a despeito da aplicação do dolo eventual nos “crimes de lavagem”, não pode ser aplicado em todos os crimes tipificados na Lei nº 9.613/98, especificamente no que concerne à conduta delitiva prevista no art. 1º, § 2º, inciso II, posto que, segundo redação do tipo penal, há necessidade de se ter o conhecimento pleno, caracterizando assim a necessidade de dolo direto por parte do agente.

No direito comparado, em especial no norte-americano e espanhol, identificou-se o uso da Teoria da cegueira deliberada no combate aos crimes de narcotráfico e de “lavagem de dinheiro”.  

No direito brasileiro, a construção jurisprudencial dessa teoria ainda é incipiente e caminha rumo a uma possível incorporação do dolo eventual em situações em que o agente não conheça os elementos típicos por expressa deliberação, mas preenchidos os requisitos mínimos ope juris do dolo eventual conjugados às circunstâncias do fato, revela-se o conhecimento da origem e ilicitude dos ativos por parte de quem os opera.  

Para a doutrina e a jurisprudência que defende a não aplicação dessa teoria, de que o dolo eventual é incompatível no crime de “lavagem de dinheiro” (art. 1º da Lei 9.613/98), por falta de disposição expressa, não cabe interpretação extensiva, comportando, apenas, o dolo direto, que se traduz no conhecimento pleno e vontade de fazê-lo.

Para os defensores dessa teoria, o crime previsto no art. 1º da Lei 9.613/98, por força do art. 18, inciso I do Código Penal e do item 40 da exposição de motivos 692/96, da Lei 9.613/98, comporta, para sua configuração, tanto o dolo direto quanto o eventual.

Verificou-se, portanto, que a Teoria da cegueira deliberada é aplicável nos crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, objetivando minorar o índice de impunidade e garantir a eficácia da lei penal.


REFERÊNCIAS

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BARROS, Marco Antônio de; SILVA, Thiago Minetti Apostólico. Lavagem de ativos: dolo direto e a inaplicabilidade da teoria da cegueira deliberada. Revista dos Tribunais. vol. 957. ano 104. p. 203-256. São Paulo: Ed. RT, jul. 2015.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. Vol. I. 22. ed. rev., ampl e atual. São Paulo: Saraiva, 2016.

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_________. Tribunal Regional Federal 5ª Região, 2ª Turma, ACR 5520/CE. Relator: Rogério Fialho Moreira. Recife, 9 set. 2008. Disponível em: <https://trf-5.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/8249976/apelacao-criminal-acr-5520-ce-0014586-4020054058100/inteiro-teor-15197855> Acesso em: 30 mar. 2017.

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LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único. 4. Ed. Ver., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2016.

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MORO, Sérgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. ver. digital. São Paulo: Saraiva, 2010.

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: volume 1: parte geral. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.


NOTAS

[1] Convenção de Viena de 20 de dezembro de 1988, Decreto nº 154, de 26 de junho de 1991.

[2] Após a alteração foram abolidos da redação o rol taxativo de crimes antecedentes, fazendo com que qualquer crime ou contravenção, ou seja, qualquer infração penal, que seja capaz de gerar ativos de origem ilícita, sirva como antecedente para que exista a lavagem de dinheiro.

[3] Art.1º, caput, da Lei nº 9.613/98, com redação dada pela Lei nº 12.683/12.

[4] Art.1º, §§ 1º e 2º e seus incisos, da Lei nº 9.613/98, com redação dada pela Lei nº 12.683/12.

[5] Art. 339 do CP: “Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente”.

[6] Art. 180 do CP: “Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte”.

[7] ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Turner v. United States, 396 U.S. 398. 15 out. 1969. Disponível em: <http://supreme.justia.com/cases/federal/us/396/398/>. Acesso em: 28 mar. 2017.

[8] ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. United States, vs. Jewell, 532 F.2d 697 (9th Cir. 1976). 27 fev. 1976. Disponível em: <http://law.justia.com/cases/federal/appellate-courts/F2/532/697/99156/>. Acesso em: 28 mar. 2017.

[9] ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. United States vs. Campbell, 977 F.2d 854 (4th Cir. 1992). 28 set. 1992. Disponível em: <https://law.resource.org/pub/us/case/reporter/F2/977/977.F2d.854.91-5695.html>. Acesso em: 30 mar. 2017.

[10] ESPANHA. Consejo General del Poder Judicial. Nº de recurso: 1.417/2011 nº de resolución: 557/2012. Ponente: Jose Ramon Soriano. Madri, 9 jul. 2012. Disponível em: <http://www.poderjudicial.es/search/doAction?action=contentpdf&databasematch=TS&reference=6448948&links=ignorancia%20y%20deliberada%20y%20blanqueo&optimize=20120723&publicinterface=true>. Acesso em: 30 mar. 2017.

[11] Entende-se que o sujeito age com dolo eventual quando ‘considerou seriamente e aceitou como altamente provável que o dinheiro tinha a sua origem de um delito’. Dentro do dolo eventual, se incluirá, normalmente, aqueles comportamentos de ‘ignorância deliberada’ aos que se refere a apelação e sobre o que este Tribunal já se pronunciou em diversas ocasiões (entre outras SSTS 1637/99 de 10 de janeiro-2000 ;946/2002 de 22 de maio ; 236/2003 de 17 de fevereiro; 420/2003 de 20 de maio; 628/2003 de 30 de abril; 785/2003 de 29 de maio; 16/2009 de 27 de janeiro etc.

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[12] ESPANHA. Consejo General del Poder Judicial. Nº de recurso: 1.043/2004 nº de resolución 1034/200. Ponente: Francisco Monterde Ferrer. Madri, set 2005. Disponível em: <http://www.poderjudicial.es/search/contenidos.action?action=contentpdf&databasematch=TS&reference=1194992&links=willful%20blindness&optimize=20051006&publicinterface=true>. Acesso em: 30 de mar. de 2017

[13] Nos tipos previstos em nosso Código incorre a responsabilidade, inclusive quem atua com ignorância deliberada (willful blindness), respondendo em alguns casos com o título de dolo eventual, e em outros com o título de culpa. E isto, se há representação, considerando o sujeito a possível origem criminosa dos bens, apesar de agir confiando que não se produzirá a atuação ou encobrimento da sua origem, como quando não há, não prevendo a possibilidade de que se produza um delito de lavagem, mas devendo levar em consideração a existência de indícios reveladores da origem ilegal do dinheiro. Existe um dever de conhecer que impede fechar os olhos ante às circunstâncias suspeitas.

[14] Para saber mais a respeito, HUERGO, María Victoria. Reflexiones en torno de la doctrina de la willful blindness y su posible recepción en Argentina. Disponível em: <http://www.ciipe.com.ar/area1/willful%20blindness%20Huergo.pdf>. Acesso em 30 mar. 2017.

[15] BRASIL. Tribunal Regional Federal 5ª Região, 2ª Turma. ACR 5520/CE. Relator: Rogério Fialho Moreira. Recife, 9 set. 2008, p. 8. Disponível em: <https://trf-5.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/8249976/apelacao-criminal-acr-5520-ce-0014586-4020054058100/inteiro-teor-15197855> Acesso em: 30 mar. 2017.

[16] Trecho do TRF/5ª, 2ª Turma. ACR 5520/CE. Relator: Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira, j. 09/09/2008, DJ 22/20/2008.

[17] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão da Ação Penal nº 470/MG. Relator: Joaquim Barbosa.  Disponível em: <ftp://ftp.stf.jus.br/ap470/InteiroTeor_AP470.pdf>. Acesso em: 30 de mar. 2017.

[18] Os fatos analisados na APN 470/MG foram sob a égide da antiga redação dos dispositivos da Lei nº 9.613/98, o qual atualmente encontram-se alterados pela Lei nº 12.683/12.

[19] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão da Ação Penal nº 470/MG. Relator: Joaquim Barbosa.  Disponível em: <ftp://ftp.stf.jus.br/ap470/InteiroTeor_AP470.pdf>. Acesso em: 30 de mar. 2017.

[20] Ibidem, p. 1.272 à 1.273.

[21] Ibidem, p. 5.374.

[22] Ação Penal nº 501340559.2016.4.04.7000/PR. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/moro-condena-joao-santana-cegueira.pdf> Acesso em: 16 de maio de 2017.

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BELARMINO, Montalban. A teoria da cegueira deliberada e sua aplicação nos crimes de lavagem de dinheiro no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5649, 19 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70775. Acesso em: 7 mai. 2024.

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