Aplicação da teoria da cegueira deliberada no crime de tráfico de drogas

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Para a teoria da Cegueira Deliberada entende-se conveniente responsabilizar aquele que finge não enxergar a procedência ilícita de seus atos, como se não soubesse estar cometendo um crime para escusar-se da persecução penal.

1 INTRODUÇÃO

A Teoria da Cegueira Deliberada é um instituto subjetivo que possui relevante papel no âmbito processual penal norte-americano, pois possibilita a responsabilidade pela prática de uma infração penal daquele que podia ou devia saber da ilicitude do fato.

Por esta teoria entende-se conveniente responsabilizar aquele que finge não enxergar a procedência ilícita de seus atos, como se não soubesse estar cometendo um crime para escusar-se da persecução penal.

Incorporando-a ao ordenamento jurídico pátrio vigente, tem-se a aplicação da cegueira deliberada respaldada no dolo eventual aos crimes que admitem este elemento subjetivo, sendo equiparados para fins de aplicabilidade da norma penal brasileira.

O dolo eventual, por seu turno, consiste na assunção de praticar um crime, mesmo quando não se quer diretamente cometê-lo. Isto ocorre quando o agente mesmo não querendo o resultado, assume o risco de produzi-lo. Nesses termos, os elementos da cegueira deliberada são os mesmos que constituem o dolo eventual, pois o sujeito que pratica a conduta, mesmo não querendo cometer o crime, assume o risco de praticá-lo ao ignorar propositalmente a sua ocorrência e prosseguir à sua consumação.

Visto isso, pondera-se a relevância de estudar a possibilidade da ocorrência da cegueira deliberada no crime de tráfico de drogas previsto na Lei nº 11.343/06 como medida repressiva para combater as artimanhas de criminosos quando da exploração indevida de substâncias entorpecentes capazes de causar dependência física e psíquica, e violar direitos alheios.

É nítido que o crime em estudo vem sendo numerosamente praticado atualmente, carecendo de estratégias repressivas para resistir à luta incessante de erradicação da mercancia ilícita de drogas.

O dolo eventual é um dos elementos subjetivos caracterizadores do crime de tráfico, e diante disso, sustenta-se a viabilidade da Teoria da Cegueira Deliberada constituir elemento subjetivo à configuração do delito em estudo.

Desse modo, utilizando-se da metodologia de pesquisa, serão elucidados os institutos da Teoria da Cegueira Deliberada e do dolo eventual e a compatibilidade destes, a classificação do crime de tráfico, bem como o posicionamento acadêmico quanto à possibilidade da aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no crime de tráfico de drogas.


2 DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA

2.1 Origem

A Teoria da Cegueira Deliberada fora instituída no ordenamento jurídico anglo-americano, tratando-se de um elemento subjetivo para atribuir imputabilidade diante da prática de infrações penais propositalmente ignoradas.

A instituição dessa teoria advém de países adotantes do sistema common law, isto é, um sistema jurídico onde o direito se baseia mais na jurisprudência e doutrina, que no texto legal.

A Teoria da Cegueira Deliberada ou Willful Blindness é também conhecida como a teoria da Instrução da Avestruz, isso porque, metaforicamente falando, o autor, da mesma forma que um avestruz, quando da prática da conduta suspeitamente criminosa enterra a cabeça em situações de perigo para que não veja ou escute más notícias.

A princípio, a teoria em comento tem sido utilizada pela Suprema Corte dos Estados Unidos, especificamente em ações de crimes de lavagem de dinheiro, ao punir aqueles que, tendo potencial para conhecer a ocorrência criminosa, optaram intencionalmente por não saber, para obter vantagem econômica.

Significa dizer, nesta esteira doutrinária, que o praticante do delito age implicitamente com a vontade e consciência ao cegar-se propositalmente diante da probabilidade do resultado, isto é, opera-se com dolo.

2.2 Conceito e aplicação

É por Rollemberg e Callegari (2015, p. 1) a conceituação desta teoria.

Em apertada síntese, a doutrina referida propõe a equiparação, atribuindo os mesmos efeitos da responsabilidade subjetiva, nos casos em que há o efetivo conhecimento dos elementos objetivos que configuram o tipo e aqueles em que há o desconhecimento intencional ou construído de tais elementares. Extrai-se tal conclusão da culpabilidade, que não pode ser em menor grau quando referente àquele que, podendo e devendo conhecer, opta pela ignorância.

No mesmo sentido, trata-se de uma teoria incorporada “em situações nas quais o agente finge não enxergar a ilicitude da procedência de bens, direito e valores com a intenção deliberada de auferir vantagens” (COSTA, 2014). Assim, enquadra-se o agente nessa modalidade subjetiva quando, defronte de uma infração penal, podendo, ou devendo saber, opta por rejeitá-la.

Um exemplo, traçando a linha doutrinária em questão, seria no caso de um deputado federal ter recebido e aplicado valor excessivo de recursos para sua campanha eleitoral sem antes apurar a origem do dinheiro. Após investigações acerca dos valores, descobre-se que o dinheiro é de origem espúria, e o político visando eximir-se da responsabilidade, afirma desconhecer a proveniência criminosa do montante recebido.

Nota-se que na exemplificação, as circunstâncias faziam presumir que o político tinha forte suspeita da procedência ilícita dos valores recebidos, e quando evitou estimá-los propositalmente para não obter o conhecimento pleno de sua origem, assumiu o risco de praticar o crime de lavagem de capitais.

Para reforçar o entendimento, “somente podemos falar em cegueira deliberada quando há a voluntariedade e intenção de se manter na ignorância, sendo possível apenas quando há a possibilidade de obter o conhecimento” (CALLEGARI; WEBER, 2014, p. 95). Pode-se afirmar, portanto, que a cegueira deliberada para ser configurada, deve as circunstâncias ilícitas à volta do infrator estar ao alcance de conhecimento deste, sem maiores obstáculos, fazendo com que o agente perceba ou suspeite da procedência ilícita da conduta por ele praticada. Ademais, para que se possa dizer que o caráter delitivo poderia ser percebido pelo agente, é preciso valer-se de elementos cognitivos que um homem médio deveria ter.

Todavia, é importante mencionar que a Suprema Corte americana (2000, apud CALLEGARI, WEBBER, 2014, p. 96), responsável pela instituição da cegueira deliberada, em seus julgamentos, traçou limites à sua aplicabilidade, salientando a necessidade da prévia verificação dos elementos que a integram para possibilitar a sua aplicação. Verifica-se:

Nós entendemos que estes requisitos dão à cegueira deliberada um campo apropriadamente delimitado que ultrapassa a imprudência e negligencia. Sob está formulação, o réu “deliberadamente cego” é aquele que deliberadamente desenvolve ações para evitar a confirmação de uma alta probabilidade de existência de conduta criminosa, sobre quem poder-se-á afirmar que possuía o conhecimento atual dos fatos críticos.

Da decisão, observa-se que o maior desafio da cegueira deliberada como sendo conduta dolosa é, em todos os casos, contornar os elementos da conduta culposa, pois a abstenção intencional do conhecimento pode confundir-se com um ingênuo desconhecimento.

Por isso, deve-se buscar distingui-las no caso concreto, de maneira a evitar a imputação equivocada do elemento subjetivo. 

Não obstante isso nota-se que a referida teoria tem importantíssimo papel no âmbito criminal internacional, de modo a atribuir a responsabilidade subjetiva pela prática de crimes que lesem bens jurídicos penalmente tutelados.

2.3 Do elemento subjetivo e equiparação no direito penal brasileiro

Os fatores da cegueira deliberada que levam à probabilidade do resultado são os mesmos que se fazem presentes no dolo eventual aplicado no direito penal brasileiro, tornando-os assemelhados.

O dolo eventual está contemplado no artigo 18, inciso I, do Código Penal e a adequação das circunstâncias subjetivas da cegueira a este instituto é certamente conveniente, como será analisado oportunamente.

Ainda, importante preceder que embora sejam institutos semelhantes, não impedem a semelhança com outros institutos, que também abarcam o elemento subjetivo, nos quais, também serão estudados e dissociados.

2.3.1 Do dolo eventual

Toda e qualquer conduta para integrar o tipo penal, além de estar previamente tipificada em lei, exige-se a demonstração do elemento subjetivo, ou seja, a consciente representação do resultado típico objetivo pelo agente ao praticar determinado delito.

 A cegueira deliberada, como já discorrida acima, equipara-se, na versão jurídica brasileira, ao dolo eventual, sendo assim assimilados tanto no componente subjetivo, quanto nos efeitos jurídicos provocados pela exteriorização do dolo, de haver a responsabilização criminal.

O direito penal brasileiro no tocante ao dolo adotou a teoria da vontade e do assentimento, interpretada no artigo 18, inciso I, do Código penal (BRASIL, 1940), dizendo ser o crime “doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”. O dolo eventual, por sua vez, encontra-se conceituado na última parte do inciso I e é explicado pela teoria do assentimento.

Em estudo, diz ser o dolo eventual “quando o agente, embora não querendo diretamente praticar a infração penal, não se abstém de agir e, com isso, assume o risco de produzir o resultado que por ele já havia sido previsto e aceito” (GRECO, 2010, p. 184). Complementando seu conceito, o dolo eventual “é a conduta daquele que diz a si mesmo “que aguente”, “que se incomode”, “se acontecer, azar”, “não me importo” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p. 498). Observa-se que no explanado não há um querer direto do resultado objetivo, mas sim, uma assunção do risco daquele, que foi previsto e aceito.

Pedro Jorge Costa (2015, p. 223), por sua vez, finaliza a definição do dolo eventual:

Então, o conceito de dolo eventual se trata, como se viu, de uma teoria de probabilidade. À primeira vista, uma teoria da probabilidade seria incompatível com a assunção do risco prevista no art. 18 do Código Penal para o dolo eventual. Porém, assim não é. Quem sem mais, age mesmo tendo posição privilegiada para a previsão de lesão ou perigo ao bem jurídico, a juízo de um observador externo, assume o risco de sua causação. Seu comportamento vem nesse sentido.

A partir daí, eis que surge a adequação da cegueira deliberada ao dolo eventual, que se colocados na mesma planilha jurídica, possuem os mesmos elementos subjetivos para a objetiva imputação penal. A diferença entre eles é, então, meramente nominal.

Sobre tal equiparação, Ramón Ragués i Vallés (2007, apud CALLEGARI; WEBER, 2014, p. 95) adverte que a cegueira “somente é equiparada ao dolo eventual nos casos de criação consciente e voluntária de barreiras que evitem o conhecimento de indícios sobre a proveniência ilícita de bens, nos quais o agente represente a possibilidade da evitação”.

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Assim sendo, assimilando-se tais institutos, o risco do resultado infracional penal é aceito pelo sujeito, que estando diante da probabilidade do resultado e deliberando propositalmente o desconhecimento deste, atraiu para si, a responsabilidade penal.

2.3.2 Da culpa consciente

Como mencionado alhures, na aplicação da teoria da cegueira deliberada como dolo eventual, deve-se ater para não condenar uma conduta culposa, em dolosa, visto que, no nosso sistema penal, contemplam-se diversas espécies de responsabilidade subjetiva, o que pode tornar arriscada a sua utilização.

A diferença existente entre o dolo e a culpa está na previsibilidade do resultado. Porém, há um instituto culposo que pode confundir-se com o dolo, qual seja, a culpa consciente, e importante se faz a sua distinção com a figura dolosa.

Prevê o artigo 18, inciso II, do Código Penal (BRASIL, 1940) ser o crime “culposo, quando o agente deu causa ao resultado, por imprudência, negligência ou imperícia”. Extrai-se da redação dentre outras modalidades culposas, a culpa consciente, tendo que diante da prática infracional, não houve a previsibilidade do resultado.

Fala-se em culpa consciente “aquela em que o agente, embora prevendo o resultado, não deixa de praticar a conduta, acreditando, sinceramente, que este resultado não venha a ocorrer” (GRECO, 2010, p. 199). Percebe-se que nesta modalidade, embora seja previsto o resultado, que o risco não é querido, tampouco assumido pelo agente, por acreditar firmemente na sua inocorrência, dando, desta forma, causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. Assim, “a culpa consciente supõe comportamentos ou outros fatos que tornem menor a probabilidade da lesão ou perigo e não um mero elemento interno ao agente” (COSTA, 2015, p. 223).

São tais elementos que fazem distinguir-se a culpa consciente da cegueira deliberada como o dolo em questão, e por isso “é importante destacar que ignorância deliberada não se confunde com negligência, havendo aqui a mesma fronteira tênue, pelo menos do ponto de vista probatório, entre o dolo eventual e a culpa consciente” (MORO, 2010, p. 45).

Nesse diapasão, pode-se concluir que na cegueira há a intenção no que se refere à manutenção da ignorância e a assunção do risco perante o resultado, enquanto que na culpa consciente, o querer e a previsão ficam implícitos diante da equívoca certeza da não ocorrência do resultado. 

2.3.3 Do erro de tipo

Se a vontade no dolo pressupõe a consciência, não há de que se falar em erro quanto à procedência ilícita da conduta. Contudo, o desconhecimento irracional sobre a ilicitude do fato recai sobre as elementares do tipo penal e configura erro de tipo (essencial), no qual, isenta o agente de pena.

Em outras palavras, o erro de tipo nada mais é que “uma falsa percepção do fato, pois o autor acredita veementemente que está agindo corretamente, de uma forma não proibida pela lei” (DORIGON, 2017, p. 123). Assim, não se pode desejar o que se desconhece ou sequer representa.

 Dessa maneira, “se o erro sobre o elemento do tipo exclui o dolo, a contrario sensu, a representação é necessária para sua configuração” (COSTA, 2015, p. 13). Segundo Callegari, Weber (2015, p. 99) sendo o dolo excluído, não há de se dizer que a teoria da cegueira seja sua modalidade, pois nesta o desconhecimento do agente é intencional e existe a consciência da probabilidade do crime, ao passo que no erro de tipo, há uma falsa representação do elemento típico do delito, que exclui o dolo. E, portanto, são institutos que devem ser diferidos para que não haja a equivocada aplicação.

Nos mesmos parâmetros, incide a figura das descriminantes putativas, que derivam do erro de tipo e também excluem o dolo. Descriminante putativa “é a causa de excludente da ilicitude erroneamente imaginada pelo agente” (CAPEZ, 2012, p. 244). Em breve síntese, significa dizer que o agente acredita estar acobertado por uma das causas justificáveis do crime previstas no artigo 23 do CP, que excluem a ilicitude, o que também não é o caso da cegueira deliberada, pois a conduta intencionalmente ignorada não está sob qualquer justificativa de ilicitude.                

2.4 Da incidência em crimes nos países de direito continental

Em que pese a Teoria da Cegueira Deliberada pertencer a um sistema de lei comum, note-se a sua integração nos países de direito continental, cuja tradição é o texto legal.

A referida teoria, embora incorporada apenas em jurisprudência, está cada vez mais presente em decisões criminais de países que possuem como principal fonte do direito, a lei. Um dos mentores dessa aplicação doutrinária é o Supremo Tribunal Espanhol, que a tem utilizado em crimes de receptação, tráfico de drogas e lavagem de dinheiro, neste último como no “leading case STS 4.934/2012, julgado em 9 de julho de 2012.” (CALLEGARI, WEBER, 2014, p. 93).

No direito penal brasileiro, pode-se dizer que a cegueira deliberada não é tão novel a ponto de não conhecê-la, pois seu emprego se deu em condenações pela Suprema Corte em um dos maiores escândalos de corrupção da história, qual seja, na ação penal nº 470 – Mensalão.

Atualmente, em tempos de Operação Lava-Jato, a aplicação de tal teoria é sucessiva, visto que a equiparação da cegueira deliberada ao dolo eventual fundou-se na admissibilidade deste para a configuração dos crimes de lavagem de dinheiro. E nestes delitos, a aplicação da cegueira deliberada destaca-se com o juiz da operação Lava-Jato, Sergio Fernando Moro, que robustece sua utilização ao proferir decisões penais condenatórias. Veja-se:

Em síntese, aquele que realiza condutas típicas à lavagem, de ocultação ou dissimulação, não elide o agir doloso e a sua responsabilidade criminal se escolhe deliberadamente permanecer ignorante quanto à natureza dos bens, direitos ou valores envolvidos na transação, quando tinha condições de aprofundar o seu conhecimento sobre os fatos. (PARANÁ, 2017)

Ainda na esfera jurídica brasileira, o Egrégio Tribunal Regional Federal da 4º Região, em suas decisões hodiernas, já se utilizou do conceito desta teoria para crimes de uso de documento falso, contrabando e descaminho, além do referido crime de tráfico de drogas. Confere-se:

DIREITO PENAL. CONTRABANDO. DESCLASSIFICAÇÃO PARA DESCAMINHO. IMPOSSIBILIDADE. CIGARROS. DESCAMINHO. MERCADORIAS DESCAMINHADAS. VALOR ELEVADO DE IMPOSTOS ILUDIDOS. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIFICÂNCIA. CRIME ÚNICO. CONCURSO FORMAL. AFASTADO EX OFFICIO. CRIME CONTRA AS TELECOMUNICAÇÕES. ART. 70 DA LEI Nº 4.177/62. CONCURSO MATERIAL. ERRO DE TIPO. INOCORRÊNCIA. TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA.1. O Supremo Tribunal Federal tem decidido repetidamente que, em se tratando de cigarro a mercadoria importada com elisão de impostos, não há apenas uma lesão ao erário e à atividade arrecadatória do Estado, mas também a outros interesses públicos como a saúde e a atividade industrial internas, configurando-se contrabando, e não descaminho. 2. Esta Corte, ao revisar o critério da aplicabilidade do princípio da insignificância, em face do posicionamento firmado no Supremo Tribunal Federal, firmou entendimento no sentido de ser inaplicável o princípio da insignificância nos casos em que dentre as mercadorias importadas incluem-se cigarros, porquanto afora a falta de registro no órgão nacional de controle (ANVISA), a atividade ilícita em questão também atinge o erário, a indústria, a saúde, bem como o disposto no art. 3º, §§ 2º e 3º, da Lei 9.294/96 merecendo assim gradação elevada de reprovabilidade. 3. Consoante entendimento do Supremo Tribunal Federal - adotado por esta Corte -, aplica-se o princípio da insignificância no crime de descaminho quanto o total dos tributos iludidos (IPI e II), não supera o valor legalmente instituído na esfera administrativa como limite mínimo para fins de execução fiscal que, atualmente, encontra-se no patamar de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), conforme a Portaria nº 75/2012 do Ministério da Fazenda. 4. Segundo a teoria da cegueira deliberada - por vezes também denominada de 'doutrina do ato de ignorância consciente' ou 'teoria das instruções de avestruz' -, o agente finge não enxergar a possibilidade de ilicitude da procedência de bens, com o intuito de auferir vantagens. O dolo configurado, nesse caso, é o dolo eventual: o agente, sabendo ou suspeitando fortemente que ele está envolvido em negócios escusos ou ilícitos, e, portanto, prevendo o resultado lesivo de sua conduta, toma medidas para se certificar que ele não vai adquirir o pleno conhecimento ou a exata natureza das transações realizadas para um intuito criminoso, não se importando com o resultado. 5. Esta Corte tem entendido que descabe a aplicação do concurso formal entre contrabando e descaminho para os delitos anteriores a mudança legislativa, visto que se trata de delito único, com uma conduta na qual o agente transporta mercadorias proibidas de ingressar no país, enquanto outras, não proibidas, ingressam no território nacional com ilusão de tributos. (RIO GRANDE DO SUL, 2017).

Tal decisão, dentre outras, demonstram a concretização da teoria da cegueira deliberada no ordenamento jurídico de sistema civil law, e sua aplicação segue cada vez mais explícita diante da incessante prática de infrações penais.

2.4.1 Da transferência da common law para civil law e sua problematização

A discussão que se coloca no campo jurídico é da compatibilidade da utilização de uma teoria oriunda de um sistema jurídico diverso do adotado pelos países de direito continental.

Cumprindo discrepar tais institutos, o termo common law, como já abordado alhures, significa lei comum, que se refere a um sistema jurídico herdado da Inglaterra, cuja aplicação do direito está centrada mais em decisões das tribunas do que dos atos legislativos e executivos. A expressão civil law, por sua vez, significa lei civil, tratando-se de um sistema jurídico romano-germânico, em que a aplicação do direito se baseia nos textos legais positivados.

Alguns sustentam que por serem sistemas diversos há limitações da aplicação da cegueira deliberada, de modo que afastaria a sua incidência, haja vista que no sistema common law, capta-se com mais detalhe os elementos que integram a subjetividade do agente, e que leva à literalidade de sua aplicação.

Sobre o assunto, já tem abordado Pedro Jorge Costa (2015, p. 264):

As figuras se enquadram em sistemas jurídicos bastante distintos no que se refere à imputação subjetiva. No direito continental, a distinção se resume a dolo ou imprudência, com subdivisões dentro dessas modalidades. Nos sistemas de common law, há mais modalidades explicitamente reconhecidas e independentes umas das outras de mens res, tipo subjetivo. [...] Por isso, o sistema anglo-americano consegue captar com mais precisão os estados mentais do agente do que nos sistemas continentais. Todavia, sendo mais amplos os conceitos dos sistemas continentais, nele não ocorrem algumas lacunas de punibilidade do sistema de common law.

Da mesma forma, Francis Rafael Beck (2001, apud CALLEGARI, WEBER, 2014, p. 95-96) refere que para a aplicabilidade da cegueira deliberada é preciso analisá-la pormenorizadamente antes de qualquer transferência para o nosso ordenamento jurídico, pois não se pode tolerar a sua aplicação sem antes compreender o que ela realmente representa.

Tal como refere os entendimentos, é de se concordar no tocante à diferença dos sistemas nos modos de classificarem a subjetividade do agente, bem como na necessária apuração da íntegra dos elementos subjetivos que estarão em discussão sobre o crime praticado, para que não sejam confundidos.

Entretanto, observa-se que na aplicação de sistemas civil law a teoria que é oriunda da common law é equiparada ao dolo eventual, que por razão está previsto no nosso diploma legal. O agente não é condenado diretamente pela teoria da cegueira deliberada, mas sim pelo dolo eventual, o que afastaria a ilegalidade de tal. Ou seja, não se pune a conduta de uma nova modalidade subjetiva contrária à lei, mas sim circunstâncias subjetivas que se assimilam a um elemento subjetivo legalmente previsível.

Nessa lógica, em recente decisão penal condenatória, Moro decidiu que:

Esclareça-se que não se trata de dolo sem representação. O agente representa a elevada probabilidade de que os valores envolvidos constituem produto de crime e que, se persistir na conduta de ocultação ou dissimulação, corre o risco de lavar produto de crime. O agente não é punido pela ignorância deliberada, ou seja, por sua escolha em não aprofundar o seu conhecimento. Esse elemento serve apenas como prova da representação da probabilidade da origem criminosa dos valores, ou seja, ele escolhe não aprofundar o seu conhecimento, pois de antemão tem presente o risco do resultado delitivo e tem a intenção de realizar a conduta, aceitando o resultado delitivo como probabilidade. (PARANÁ, 2017)

Do mesmo pensamento e não menos importante, Moro (2010, p. 43) em sua obra leciona que a cegueira deliberada e o dolo eventual são similares e igualmente culpáveis, pois na cegueira deliberada, o proposital desconhecimento infere na cognição do ilícito e incide na previsão do resultado.

Como se vê, apesar de não estar tão pacificada a aplicabilidade da doutrina da cegueira deliberada no sistema de direito continental, é de se concordar que a adequação desta ao dolo eventual já encontra revestimento de decisões penais condenatórias do direito pátrio.

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Sobre os autores
Alessandro Dorigon

Mestre em direito pela UNIPAR. Especialista em direito e processo penal pela UEL. Especialista em docência e gestão do ensino superior pela UNIPAR. Especialista em direito militar pela Escola Mineira de Direito. Graduado em direito pela UNIPAR. Professor de direito e processo penal na UNIPAR. Advogado criminalista.

Mariana Previatti Dias

Graduada em direito pela UNIPAR

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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