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Influência do marketing ostensivo no superendividamento do consumidor

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2 SUPERENDIVIDAMENTO: FENÔMENO JURÍDICO, SOCIAL E ECONÔMICO

2.1 ANÁLISE ECONÔMICA E PSICOLÓGICA DO COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR NA BUSCA PELA SUA DIGNIDADE ENQUANTO SER HUMANO

A modernização liberal quebra os valores sociais antes vigentes que proporcionavam coesão social, fazendo com que o indivíduo se sentisse inserido. A partir do liberalismo econômico o individualismo passa a ter prioridade com relação aos interesses sociais, como enfatiza Slater (2002, p.67), “[...] O consumismo representa sobretudo o triunfo do valor econômico sobre todos os outros tipos e fontes de valor social. Tudo pode ser comprado e vendido. Tudo tem o seu preço”.

Diante desta nova mentalidade, o estudo do comportamento do consumidor, antes analisado a partir do paradigma do positivismo[18], o qual considera que as ações humanas são pautadas na razão, tem sido substituído pelo paradigma emergente interpretativo.

Este último, considera que o comportamento humano é demasiado complexo para ter por base apenas a razão, sendo fruto também da influência de elementos externos. Assim:

O paradigma interpretativista inclui abordagens subjetivista, naturalista, qualitativa e humanista. Enfatiza a importância da experiência simbólica e subjetiva. Parte da ideia de que os objetos não têm razão e significados próprios, mas que os significados das coisas estão na mente dos indivíduos. Assim, parte-se do ponto de vista que o mundo externo não tem um sentido em si, uma vez que os seres humanos é que atribuem sentido ao mundo. (LIMEIRA, 2008, p. 16, grifo do autor)

Desta forma, Limeira (2008, p.16) pondera que o estudo do comportamento do consumidor não se dá mais no âmbito idealizado do “dever ser”, e passa a concatenar elementos diversos com o intuito de compreender o real comportamento deste.

Ademais, o ato de consumir representa a reprodução de uma cultura de consumo característica do ocidente moderno, porém, não exclusiva, o que nos remete a compreensão de que se trata de uma mescla de fatores que levam a determinado comportamento:

O consumo é sempre e em todo lugar um processo cultural, mas “cultura de consumo” é singular e específica: é o modo dominante de reprodução cultural desenvolvido no Ocidente durante a modernidade. A cultura do consumo é, em aspectos importantes, a cultura do Ocidente moderno – crucial, certamente, para a prática significativa da vida cotidiana no mundo moderno; e, num sentido mais genérico está ligada a valores, práticas e instituições fundamentais que definem o modernismo ocidental, como a opção, o individualismo e as relações de mercado. (SLATER, 2002, p. 17)

Tal cultura de consumo está intimamente ligada ao modernismo e à liberdade, tida como livre-arbítrio, conforme enfatiza mais a frente Slater (2002, p.18) com “pretensões e alcance globais”.[19]

A cultura de consumo nestes moldes persiste até os dias atuais, onde a partir da década de 80, o consumidor passa a ser visto como mola propulsora da economia enquanto cidadão moderno, e o consumismo superficial “[...] enfatiza o imediatismo e o individualismo radical[...]” (SLATER, 2002, p. 19) 

No âmbito da ciência econômica, a microeconomia – área de conhecimento voltada para o estudo das unidades econômicas individuais – tenta da mesma forma compreender como o consumidor toma suas decisões de compra e investimento.

A primeira teoria econômica surgiu em meio ao contexto da Revolução Industrial Inglesa no século XVIII, a qual provocou diversas transformações na sociedade. Os economistas clássicos foram os primeiros a tentar desvendar o comportamento do consumidor, tendo-se como exemplo maior Adam Smith (1723-1790) e sua teoria da escolha individual pautada na:

[...] ideia de que o bem-estar da sociedade é resultado da convergência entre os interesses individuais do comprador e do vendedor, por meio da troca voluntária e competitiva. Essa teoria engloba quatro princípios, a saber: as pessoas buscam experiências que valham a pena; a escolha individual determina o que vale a pena; por meio da troca livre e competitiva, os objetivos individuais serão realizados; as pessoas são responsáveis pelas suas ações e escolhem o que é melhor para elas. (LIMEIRA, 2008, p.91)

Já no final do século XIX, os neoclássicos apresentam outra abordagem acerca do comportamento do consumidor. Seu principal representante, Alfred Marshall (1842-1924), apresenta a teoria econômica do consumidor, que compreende o comportamento deste como resultado da racionalidade e da maximização da utilidade – quanto maior a utilidade maior a satisfação. (LIMEIRA, 2008).

Apesar da relevância do estudo das teorias econômicas para a análise do comportamento deste personagem econômico, somente estas não são suficientes, pois estão presas ao “dever ser” do consumidor. Assim, a psicologia se apresenta como mais um aliado para a compreensão do comportamento do consumidor ao estudar a subjetividade, compreendida como “[...] a maneira de sentir, pensar, imaginar, sonhar e fazer de cada indivíduo” (LIMEIRA, 2008, p. 97)

 Para tanto, a psicologia possui três principais escolas: behaviorismo (toda ação humana é uma resposta a estímulos externos); gestalt (construtivista, entre o estímulo e a resposta há a percepção, que nos faz dar significado às coisas a partir de influências internas e externas); e a psicanálise[20]. (LAMEIRA, 2008)

Entretanto, especificamente no que se refere ao comportamento do consumidor, a psicologia entende que este, na sua maneira de interagir com o meio, é influenciado por fatores psicológicos, tais como: motivação, envolvimento, percepção, aprendizado, atitudes e personalidade.

A motivação constitui a primeira etapa da psique que justifica o comportamento do indivíduo, em suma:

[...] Quando a pessoa se conscientiza da existência de uma necessidade, ocorre uma discrepância entre o estado atual e o almejado, provocando uma tensão. A pessoa procura, então, eliminar essa tensão, satisfazendo a necessidade (LIMEIRA, 2008, p.103)

Após a motivação, o indivíduo, através de sua percepção, atribui sentido às sensações provenientes dos estímulos do meio. Ao atribuir sentido o indivíduo desenvolve a aprendizagem que tem por consequência o conhecimento[21], o qual terá forte influência em sua tomada de decisão. (LIMEIRA, 2008)

A partir da aprendizagem e do conhecimento adquirido é que o consumidor irá avaliar os acontecimentos, objetos e símbolos e efetivamente tomará atitudes que irão, por fim, orientar seu comportamento, este, ainda influenciado pela sua personalidade, esta compreendida como “[...] unidade integrativa da pessoa, com todas as características diferenciais permanentes (inteligência, caráter, temperamento, constituição entre outras) e suas modalidades únicas de comportamento. [...]” (LIMEIRA, 2008, p. 113)

Ademais, relevante destacar que o ato de consumir é prazeroso para o ser humano, causando sensação de felicidade, tendo sido a busca por tal sentimento recentemente reconhecida enquanto princípio constitucional[22], em julgado do STF referente à União Civil entre pessoas do mesmo sexo.

Na decisão acima mencionada, o STF entendeu que o princípio da busca à felicidade seria de fato um desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana. Sendo que este novo princípio somente é alcançado a partir do pleno gozo dos demais direitos tidos como fundamentais pelo ordenamento pátrio; devendo sempre permear todas as relações jurídicas, inclusive as privadas, priorizando assim, a realização existencial e não patrimonial do indivíduo.

Neste contexto, o princípio da dignidade da pessoa humana, presente no art. 1º inciso III da Constituição Federal da República Brasileira em vigor, é a base do ordenamento jurídico brasileiro[23], posto que tanto o Estado quanto o Direito em si tem por razão de ser a valorização da pessoa humana, primando por garantir ao indivíduo, pelo simples fato de este existir, a liberdade de gerir sua vida frente ao meio social em que vive da maneira que lhe convier, isto dentro dos limites legais. Logo, inviabilizada sua liberdade de se autodeterminar, estaria infringido o supracitado princípio[24].  (FERNANDES, 2010).

Assim, o consumidor em estado de superendividamento encontra-se fragilizado sem poder gerir, da maneira que entender melhor, sua vida financeira e social. Sem condições de sustentar-se, visto que o crédito no momento do superendividamento passa a funcionar como fator de exclusão social limitando seu poder de compra e sua vida social, sua dignidade enquanto ser humano é afetada desencadeando diversas problemáticas.

[...] o cidadão superendividado, que teve reduzidas suas economias a patamares negativos, que tem seu nome inserido em cadastros restritivos ao crédito, que sofre corte de serviços essenciais, que está submetido à autoridade do gerente bancário, que não tem mais qualquer autonomia para gerir as próprias prioridades, vive uma cidadania de baixa ou nenhuma densidade, reduzida sua dignidade a de um escravo da pós-modernidade. (GAULIA, 2010, p. 148)

Ainda enfatiza Fernandes:

É patente, portanto, que a situação de superendividamento afeta a dignidade humana em vários aspectos, sejam eles materiais em virtude da perda de capacidade de consumo de bens básicos como alimentação e medicamento, chegando a ter alcance e comprometimento moral, social e médico/psicológico. (FERNANDES, 2010, p. 2)

Os efeitos materiais do superendividamento do consumidor, como a negativação em órgãos de proteção ao crédito, são consequências imediatas e de fácil percepção. Entretanto, não se pode desconsiderar as consequências morais, sociais e psicológicas; as quais afetam não só a dignidade do consumidor assim compreendido, mas também do núcleo familiar ao qual este pertence, tendo-se por principais reflexos elencados pela doutrina: a angústia, a culpa, a vergonha, a dor, o sofrimento, o isolamento social, a sensação de fracasso, e a degradação da autoestima[25]. (FERNANDES, 2010)

Em meio às observações já expostas deve ser lembrado que o princípio da dignidade da pessoa humana não tem por finalidade única garantir a liberdade do indivíduo de gerir sua vida no meio social no qual está inserido, mas também, garantir o seu mínimo existencial, sendo tal definido por Torres (1989 apud FERNANDES, 2010, p.3) como “[...] um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas.”

Por analogia ao artigo 8º do Decreto 6.386/2008[26] e ao artigo 1º da Lei 10.820/2003[27], tem-se compreendido, a depender da análise das particularidades inerentes a cada caso específico, que o comprometimento acima de 30% (trinta por cento) da renda do consumidor feriria sua dignidade enquanto ser humano[28]. (FERNANDES, 2010, p.4)

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Como se pode observar a decisão de compra é extremamente complexa, influenciada por fatores internos e externos, de cunho econômico, psicológico, ou até mesmo cultural, estando muitas das vezes o consumo associado a felicidade do indivíduo na realidade social atual.

Assim, a problemática do superendividamento não pode ser observada a partir de um olhar eivado de pré-julgamentos, afinal, a influência dos fatores externos, é decisiva no comportamento e na tomada de decisão do consumidor, principalmente ao que diz respeito a publicidade ostensiva, tema do presente trabalho, devendo sempre o operador do direito e demais esferas do conhecimento primar por assegurar a dignidade deste ser humano.

2.2 A INFLUÊNCIA DO MARKETING SOBRE O COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR E O PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA DA RELAÇÃO CONTRATUAL: DEVER DE INFORMAR, ACONSELHAR E ADVERTIR

O ato de consumir faz parte do cotidiano da sociedade, pois somente através deste é possível adquirir bens e serviços necessários para a sobrevivência do homem moderno. Então, o consumo se caracteriza “[...] como ato ou efeito de consumir, ou seja, o comportamento de escolha, compra, uso e descarte de produtos e serviços para a satisfação de necessidades e desejos humanos. [...]”. (LIMEIRA, 2008, p. 7)

Consumo é igualdade. Hoje, ser cidadão econômico ativo é aproveitar das benesses do mercado liberal e globalizado como agente ativo e consumidor. Consumo é inclusão na sociedade, nos desejos e benesses do mercado atual. Em outras palavras, consumo é, para as pessoas físicas, a realização plena de sua liberdade e dignidade, no que podemos chamar de verdadeira “cidadania econômico-social”. (MARQUES, 2010, p. 25, grifo do autor)

Assim, o consumo se apresenta não só como fator econômico, mas também, como fator de inclusão social, forma de expressão da personalidade de cada indivíduo, e ainda, como fator preponderante na busca pela felicidade do homem.

Desta forma, o comportamento do consumidor representa “[...] um conjunto de respostas provocadas por estímulos do meio ambiente.” (LIMEIRA, 2008, p.87). Tais fatores de influência podem ser pessoais (fisiológicos e psicológicos), ambientais (contexto sócio, econômico e cultural), situacionais (situações momentâneas), ou estímulos de marketing.

Especificamente com relação ao marketing, este tem influência direta na tomada de decisão do consumidor, ao fasciná-lo através da publicidade vinculada nos meios de comunicação, que segundo Limeira (2008), têm por objetivo principal estimular desejos e não criar necessidades. Nesse diapasão, o ramo do marketing diferencia desejo de necessidade:

Diferentemente da necessidade, o desejo é um estado psicológico direcionado à obtenção de uma satisfação por si mesma (saborear uma pizza, por exemplo), sem que seja preciso haver uma carência (fome) que justifique o sentimento e a ação decorrentes. Mas o desejo e a necessidade estão relacionados, isto é, o desejo de saborear uma pizza alia-se à necessidade de eliminar a fome. (LIMEIRA, 2008, p.5)

Assim, para o marketing, a necessidade caracteriza-se pela carência de algo essencial ao indivíduo, podendo apresentar-se em duas formas: inata (inerente a natureza humana, como as necessidades fisiológicas); e adquirida (proveniente das do contexto cultural e social que cada indivíduo está inserido). (LIMEIRA, 2008)

De fato, necessidade e desejo, são conceitos divergentes. Porém, o que se percebe é que a publicidade ostensiva vai além, não só influencia o simples desejo do consumidor, mas também cria necessidades neste[29]. Tanto é verdade que o próprio Direito, frente à hipossuficiência do consumidor dentro desta relação, apesar de em linhas gerais, preocupou-se em tentar estabelecer limites à publicidade por meio do CDC, como forma de garantir o direito de informação, e, uma real autonomia da vontade.

Neste contexto, o crédito se apresenta como principal meio financeiro para satisfazer as necessidades do homem contemporâneo, independente de ser inata ou adquirida. Portanto, acaba por ser um reflexo da sociedade de consumo atual, a qual é definida por Limeira (2008) pela presença de quatro condições:

1) a maior parte da população consome acima de suas necessidades básicas; 2) a maior parte das necessidades é satisfeita pelo mercado e não pela produção doméstica, pela dádiva ou pelo escambo; 3) as práticas de comprar e consumir são socialmente aprovadas e aceitas como fonte de satisfação e prazer; 4) as identidades de indivíduos e grupos se constroem cada vez mais baseados nos estilos de vida definidos pelo consumo diferencial de certos bens e serviços (LIMEIRA, 2008, p. 10) 

Logo, a publicidade é compreendida como uma comunicação persuasiva que tem por objetivo promover mudanças comportamentais, desta feita, é evidente a conclusão de que a publicidade não só influencia a decisão do indivíduo, mas também ao provocar a mudança de atitude/comportamento, acaba por gerar novas necessidades neste, persuadindo-o a consumir cada vez mais.

Além disso, esta também tem por objetivo desviar, chamar a atenção do consumidor para a marca, entendida como símbolo, fazendo com que este a perceba, criando cria um sentido e um significado à marca que será difundido através de sua vinculação nos meios de comunicação, e nesse emaranhado mais uma vez associa-se o consumo ao individualismo e à integração social:

[...] os produtos de consumo são símbolos, porque são meios de auto-expressão (expressar para os outros quem eu sou, o que penso e o que desejo), distinção pessoal (construir identidade, estabelecendo diferenças em relação a outras pessoas) e integração social (ser igual à comunidade, fazer parte do grupo de referência).

Como consumidores, as pessoas utilizam-se da imagem da marca ou do produto para expressar seu autoconceito e sua identidade[...] (LIMEIRA, 2008, p. 123-124, grifo do autor)

O marketing ao utilizar-se da comunicação imprime diversas necessidades aparentes, por meio da transmissão de informação que nem sempre representa a transparência necessária à formação do contrato de consumo. Sendo assim, o papel do profissional do marketing nesse contexto vai além, pois almeja entender o consumidor[30], compreender as características de seu comportamento, e qual a sua motivação para efetuar a compra. Munido destas informações, este profissional poderá, através de estratégias de marketing adequadas, atender às necessidades do consumidor e influenciar diretamente na sua tomada de decisão. (LARENTIS, 2009, p. 15)

Diante deste contexto mais que evidente a necessidade da aplicação da nova concepção de relação contratual defendida pelo CDC, a qual relativiza a força obrigatória dos contratos e limita o princípio da autonomia da vontade das partes. Afinal, a força obrigatória, dentro da concepção clássica, provém da ideia de que o contrato se origina da vontade entre as partes. Porém, infere-se, conforme conclui Bertoncello (2011), que a existência de uma autonomia da vontade das partes contratantes, seria resultante da igualdade entre de força e liberdade para discutir as cláusulas contratuais, o que não ocorre em verdade nas relações de consumo, onde em geral, o fornecedor dita as regras contratuais reduzindo quase a zero a autonomia da vontade do consumidor.

Assim, o Estado deve considerar os efeitos sociais do contrato, e, como consequência, intervir de forma a promover o equilíbrio contratual entre as partes limitando e ao mesmo tempo legitimando a autonomia destas dentro da relação de consumo, valorizando a boa-fé, a confiança e as expectativas depositadas na relação contratual. Esta relativização da concepção de contrato e de seu principal princípio perfaz-se para que o contrato possa alcançar sua função social[31]. (MARQUES, 2004, p. 175-176)

Ainda com relação à tentativa de mitigar a desigualdade entre fornecedor e consumidor, vale destacar que o conhecimento técnico do fornecedor aliado às técnicas de publicidade a acentuam.

Esse desequilíbrio, devido à desigualdade no conhecimento técnico, tem reflexos no processo de decisão dos consumidores e dos profissionais de crédito. A generalização da produção e a distribuição dos produtos deu nascimento a técnicas de publicidade, visando tocar o consumidor em seu inconsciente, gerando a degeneração de sua vontade, quase desaparecimento do mecanismo volitivo, visado pelos autores do Código Civil, ao passo que os profissionais, além de dominar o direito do crédito, possuem uma técnica de decisão. (BERTONCELLO, 2011, p. 40)

Assim, a relativização da força obrigatória dos contratos é relevante para a limitação da autonomia da vontade das partes, principalmente com relação aos contratos de consumo, pois há de se considerar, conforme destaca Giancoli (2008) a existência do fator estrutural-social da pressão, este presente desde a formação do contrato, sendo inclusive inerente ao próprio objeto da relação jurídica. Tal pressão, oriunda principalmente da publicidade e das necessidades internas do consumidor, escraviza o consumidor, em especial quando se trata de produto ou serviço essencial ou urgente, interferindo na sua autonomia de escolha.

Nesse diapasão, se tratando especificamente do consumidor em estado de superendividamento, o fator estrutural-social da pressão interfere muito mais na autonomia da vontade deste consumidor do que na daquele que não se encontra alienado e abandonado pelo próprio mercado de consumo. (GIANCOLI, 2008)

A relativização de tais princípios é uma medida empregada pela doutrina jurídica a partir da qual não mais se presume a racionalidade das partes contratantes, entretanto, esta passa a ser obrigatória dentro do contexto da relação jurídica estabelecida, principalmente dentro da relação de consumo, onde a fragilidade do consumidor é notória. (BERTONDELLO, 2011)

Diante dos fatos, importante frisar a diferença entre publicidade e propaganda, conceitos por vezes utilizados como sinônimos, porém, a publicidade, em verdade, representa uma espécie do gênero propaganda.

O termo publicidade refere-se exclusivamente à propaganda de cunho comercial; é uma comunicação de caráter persuasivo que visa a defender os interesses econômicos de uma indústria ou empresa. Já a propaganda tem um significado mais amplo, pois refere-se a qualquer tipo de comunicação tendenciosa (as campanhas eleitorais são um exemplo, no campo dos interesses políticos). Assim, o âmbito da propaganda envolve e contém a publicidade. Em suma, publicidade é um esforço de persuasão, evidentemente com a finalidade de vendas, às vezes com arte e às vezes nem tanto, mas sempre visando, desde a causa até o efeito, uma venda imediata e/ou mediata.(AMARAL, 2010, p. 171-172)

Em função disto, o CDC se preocupa em limitar a atuação da publicidade, tanto que lhe dedica uma seção inteira. Isto devido ao fato de a publicidade estar relacionada com o direito à informação, o qual se constitui como direito subjetivo de terceira geração, fundamental e com caráter tanto individual quanto coletivo[32], sendo amplamente defendido pela Constituição vigente (artigo 5º, XIV) devido ao fenômeno da constitucionalização do direito privado, à teoria do diálogo entre as fontes, e a defesa do pleno exercício da cidadania, posto que “[...] somente um indivíduo bem informado é capaz de exercer os diversos papéis que lhe são reservados na convivência social [...]”. (BARBOSA, 2008, p. 42-43)

Considerando que consumidor e fornecedor estão inseridos dentro do mesmo sistema, para que sobrevivam aos diversos altos e baixos, possibilitando ao fornecedor o ganho econômico e ao consumidor sua permanência no mercado como economicamente ativo, é necessário que exista nas relações estabelecidas entre estes personagens da economia o princípio da cooperação no consumo.

Tal princípio é compreendido, segundo Giancoli (2008), como uma variação específica do princípio da solidariedade, entretanto, este além do objetivo construtivista e valorativo, possui eficácia absoluta, com aplicação concreta e imediata.

Assim, o legislador ao colocar o consumidor como titular do direito de informação previsto no inciso III do artigo 6º do CDC, teve por intuito não só protegê-lo contra a publicidade enganosa e/ou abusiva, mas também de vincular e responsabilizar o fornecedor pela informação que divulga[33].

Logo, devido ao caráter de cooperação existente entre estes, é que o fornecedor passa, com base no princípio da transparência contratual, a ter o dever de informar, aconselhar e advertir, tornando mais abrangente o direito à informação (COSTA, 2002).

Afinal, necessário impor-se responsabilidade ao fornecedor pela publicidade ostensiva, indiscriminada, e por vezes, enganosa, para vender o crédito, principalmente quando este não tem uma atitude seletiva para averiguar o poder de compra do consumidor, o que gera um defeito na prestação do serviço:

Logo, o serviço de crédito fornecido pelos fornecedores pode ser considerado defeituoso à medida que não se obtém a segurança que legitimamente dele se espera. Ao se conceder o crédito sem a seletividade é prestado um serviço inseguro, restando, portanto, delineada a responsabilidade dos fornecedores do crédito diante do superendividamento. (FERNANDES, 2010, p.1)

Conclui ainda Bertoncello:

A necessidade e desejos dos consumidores bem explorados, aliados à generalização do crédito a todos os tipos de bens, assim como a facilidade e rapidez das condições de acesso, podem transformar a vontade do consumidor em um automatismo, um ato resultante simplesmente de um desejo, cujo o comando se dá mais pelo prazer do que pela razão, o que revela a inadequação do conceito tradicional e absoluto de autonomia da vontade. ( BERTONCELLO, 2010, p. 43-44)

Neste sentido, a comunicação representa o processo de transmissão e interpretação de uma informação, a qual de maneira geral é vista como a mensagem que o transmissor (fornecedor) deseja que o receptor (consumidor) absorva daquela comunicação, devendo-se sempre considerar os elementos conceituais pré-existentes no receptor, os elementos conceituais novos, a atuação dos sujeitos, o código escolhido, bem como o contexto no qual tal informação é transmitida (BARBOSA, 2008).

Ademais, o fato de se considerar o direito à informação como direito fundamental representa o reconhecimento do direito de escolha do consumidor, este defendido pelo princípio da autonomia da vontade consciente. Afinal o acesso à informação é fundamental para que o consumidor não corra o risco de ver-se em estado de superendividamento, posto que, consciente da dimensão de seu comprometimento serão menores as chances deste ser induzido ao erro.

Estar bem informado é essencial, principalmente na fase de formação do contrato de consumo, devendo a informação também se caracterizar enquanto uma espécie de aconselhamento por parte do fornecedor[34]. Apesar disto, o dever de informar do fornecedor, proveniente dos princípios da transparência e da boa-fé objetiva previstos no CDC, não está presente somente na fase de formação do contrato, mas sim, durante toda a relação contratual.

Deve ainda a transmissão de informação ser feita de modo adequado, ou seja, que o consumidor ao ter acesso a informação do produto ou serviço consiga compreende-la, através de um mínimo necessário de informações e os dados essenciais do contrato de consumo para, desta forma, contratar consciente dos riscos e benefícios. (BERTONCELLO, 2010)

A transparência é imprescindível principalmente nos contratos de adesão, onde persistem diversas práticas abusivas por parte dos fornecedores. Sendo assim, no intuito de coibir algumas destas é que o CDC no § 3º do art. 54 determina que tais contratos sejam escritos em termos claros, legíveis e com caracteres ostensivos cujo tamanho da fonte não será inferior ao corpo 12.

A transparência imposta pela lei depende também da localização das cláusulas no documento contratual, pois a clandestinidade opõe-se a clareza. Por isso, as estipulações mais importantes para o consumidor, como as que implicarem limitações a seus direitos, deverão ser redigidas com destaque, permitindo a sua imediata e fácil compreensão, exatamente como dispõe o artigo 54, § 4º, do CDC.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul vem aplicando exemplarmente o mandamento legal, ao decidir reiteradamente que qualquer cláusula restritiva de direito deve ser obrigatoriamente estabelecida de forma clara e expressa com pleno conhecimento do consumidor, sob pena de não lhe ser oponível. (BERTONCELLO, 2010, p. 65-66)

Este é um exemplo do dever de advertência, o qual diferentemente do dever de aconselhar, obriga o fornecedor a informar/advertir o consumidor sobre os riscos provenientes de uma determinada operação. Na maioria dos casos, o consumidor não possui capacidade suficiente para compreender as obrigações que lhe são impostas em função de um contrato específico, devido a isto, o fornecedor deverá insistir na advertência, sendo que esta deverá ser acompanhada do aconselhamento “[...] ou seja, da opinião do profissional sobre a oportunidade de incorrer no risco ou de renunciar a operação, após um estudo da situação financeira do consumidor. [...]”. (BERTONCELLO, 2010, p. 85) 

Além da necessidade da adequação da informação, Barbosa (2008) acrescenta outras características necessárias para que esta cumpra seu papel de forma eficaz, quais sejam: clareza, precisão, completude, veracidade, compreensibilidade, necessidade e ostensividade. Portanto, a informação deverá ser clara, legível, objetiva e de fácil acesso e compreensão. Deve o fornecedor prestar informação indispensável ao uso correto do produto ou serviço, e ainda, que o represente integralmente e corresponda à sua realidade objetiva.

No que diz respeito ao requisito da precisão/objetividade é importante frisar que pelo fato de toda a informação prestada pelo fornecedor influenciar diretamente na tomada de decisão do consumidor, a objetividade auxilia para que a informação seja imparcial, caracterizando-a como uma espécie de conselho do fornecedor, deixando a tomada de decisão a cargo do consumidor.[35]        

Com relação aos contratos de crédito, os mais preocupantes para o trato do superendividamento, ressalta Bertoncello (2010) que a proteção do direito de informação do consumidor deverá ser realizada tanto de forma positiva, através da exigência de informações, quanto negativa, por meio da proibição de informações errôneas ou abusivas.

Afinal, o contrato de crédito ao consumo é mais complexo se comparado aos demais contratos de consumo estabelecidos no dia-a-dia. Devido a isto, a preocupação com a informação prestada com relação a estes contratos mereceria uma atenção maior pelo ordenamento jurídico, como critica Bertoncello:

No sistema do CDC, não há nenhuma norma específica sobre a publicidade do crédito ao consumo, que fica submetida às regras gerais (arts. 35 a 38 do CDC) sobre publicidade enganosa ou abusiva. Deveria o legislador brasileiro exigir um conteúdo mínimo de informações obrigatórias para a publicidade, na estreita das legislações européias, pois a decisão de contratar a crédito é muito mais complexa, implica uma projeção sobre o futuro, não podendo ser tomada às pressas e sem todas as informações necessárias. Dessa forma, a publicidade do crédito seria suficientemente clara e precisa e, por conseguinte, também estaria incluída na regra do art. 30 do CDC, que obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar, além de integrar o contrato que vier a ser celebrado. (BERTONCELLO, 2010, p. 57)

No geral, concernente aos contratos de consumo ao crédito o CDC limita-se em seu art. 52 a obrigar o fornecedor apenas a prestar as informações referentes ao custo do crédito, não fazendo nenhum tipo de menção específica com relação à publicidade do crédito no mercado de consumo. Assim, como na prática é corriqueiro que o consumidor não tenha garantido o direito previsto no artigo mencionado, devido à ausência de trato específico, ainda se vê sujeito à publicidade que anuncia o crédito como a solução dos problemas financeiros, ou então, como uma maneira rápida e fácil de realizar sonhos. (BERTONCELLO, 2010)

Logo, a informação, com suas nuances de aconselhar e advertir, representa o melhor instrumento de prevenção do superendividamento, principalmente no momento da aquisição do crédito, o maior vilão do consumidor que se encontra em tal estado. Assim, a observância do supramencionado direito fundamental manteria o consumidor informado sobre as cláusulas do contrato e as características do produto ou serviço, podendo ainda o fornecedor adverti-lo e aconselhá-lo quanto ao melhor contrato de crédito para o seu perfil. (CARPENA, 2007)

Ademais, nas relações de consumo tais medidas acabam por prevenir o superendividamento do consumidor, ao passo que buscam difundir um consumo consciente e racional, muito embora no Brasil não se tenha uma educação para o consumo apesar de constituir um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumi previsto no artigo 4º, IV do CDC:

[...] a busca de uma autonomia da vontade educada não deve cessar até o dia em que essa vontade autônoma fizer parte da psicologia cotidiana do consumidor no momento da decisão de contratar a crédito. Esta tarefa depende de um longo trabalho de educação dos consumidores, sejam crianças, jovens ou adultos, sobre a gestão do orçamento pessoal e familiar e sobre a prevenção do endividamento excessivo. (BERTONCELLO, 2011, p. 46)

Mais à frente o autor conclui:

Podemos afirmar, com segurança, que nos encontramos no estágio da autonomia da vontade exigida, uma vez que o consumidor de crédito, particularmente vulnerável em razão das pressões da sociedade de consumo, economicamente fraco, ignorante juridicamente e sociologicamente dependente, necessita de uma forte proteção do Estado, pois não é capaz de extrair sozinho as informações importantes de um contrato, compreendê-las e valorá-las a ponto de prevenirem-se de um endividamento excessivo. É por isso que os ordenamentos protetivos exigem transparência e informação nas relações de consumo, como forma de garantir ao consumidor a expressão de uma vontade verdadeiramente livre. (BERTONCELLO, 2011, p. 47, grifo nosso)

Na ânsia por compreender a fundo o consumidor e utilizar a melhor técnica para influenciar seu comportamento, empresas de marketing como a Acxiom, se especializaram na coleta e análise de dados disponíveis na internet, vendidos a grandes empresas como HSBC, Toyota e Ford para que estas possam traçar estratégias de marketing personalizadas. Estes dados são obtidos a partir de registros do governo; postagens feitas pelos próprios consumidores através, principalmente, de sites de relacionamento como o Facebook; e ainda, através de práticas como a da Google que por meio do Sreenwise Data Panel paga a seus usuários de US$ 5 à US$ 20 de crédito para realizar compras virtuais para que estes instalem em seu computador pessoal plug ins que monitoram sua atividade virtual. (RODRIGUES, 2012, p.58 ss)

O Facebook tem um arsenal de dados capaz de revelar as tendências não apenas de consumo, mas de transformação em nossa sociedade. E Mark Zuckerberg já se tocou disso. Não à toa colocou o sociólogo com doutorado pelo MIT Cameron Marlow para comandar uma equipe interna de 12 acadêmicos – entre estatísticos, antropólogos, matemáticos e psicólogos. O trabalho deles é analisar os milhões de dados coletados pelos algaritmos que rastreiam tudo o que é postado na rede social e traçar tendências de consumo. (RODRIGUES, 2012, p. 62)

Neste contexto, a tecnologia se apresenta como aliada do marketing, porém, em consequência ocorre uma intensa invasão de privacidade devido à ausência de regulamentação para tal prática. A invasão de privacidade é tamanha que no mesmo artigo da revista Galileu faz-se alusão a um aplicativo para celular em fase de testes:

Nos EUA, câmeras de segurança estão indo além: filmam o rosto do cliente que entra e enviam a imagem para um computador, que faz o reconhecimento facial e acessa o perfil da pessoa no Facebook. Ao rastrear fotos e posts escritos, envia à pessoa, na hora, ofertas personalizadas via SMS. (RODRIGUES, 2012, p.64)

Percebe-se, portanto, que a influência do marketing é decisiva na tomada de decisão do consumidor, até mesmo porque, atualmente os profissionais da área têm cada vez mais se especializado em trabalhar na busca pela compreensão da personalidade de cada indivíduo definindo necessidades e estabelecendo padrões de consumo através da campanha publicitária. Por certo que tal prática influencia no superendividamento do consumidor, posto que, mesmo este não tendo condições econômicas, fascinado pelo mundo do consumo divulgado nos diversos meios de comunicação, se vê na necessidade de estar inserido, de fazer parte deste mundo.

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Sobre a autora
Aline de Fátima Lima Gomes de Miranda

Graduada em Direito pela Universidade da Amazônia -UNAMA. Pós-graduada em Direito Constitucional pela Faculdade Damásio, e, com MBA em Direito Civil e Processual Civil pela Fundação Getúlio Vargas- FGV.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Aline Fátima Lima Gomes. Influência do marketing ostensivo no superendividamento do consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5704, 12 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70879. Acesso em: 25 abr. 2024.

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