A investigação criminal foi atribuída pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 à Polícia Judiciária, que, assim como o Poder Judiciário, não é parte na relação persecutória penal, e por isso atua com imparcialidade.
A investigação levada a efeito pela Polícia Judiciária nos crimes de médio e de maior potencial ofensivo é formalizada no inquérito policial, cuja conceituação difundida pela doutrina tradicional é de que se trata de procedimento administrativo, inquisitorial, sigiloso, preparatório, destinado à formação da opinio delicti do titular da ação penal.
Diz ainda a doutrina recorrente que o inquérito policial é mera peça informativa, dispensável, que não pode sustentar uma sentença penal condenatória sem que as provas sejam repetidas em Juízo.
Todavia, essa visão retrógrada, simplificadora e reducionista da importância do inquérito policial não se coaduna com o pensamento complexo, que reclama seja o procedimento policial visto em sua multidisciplinaridade, enquanto procedimento híbrido, que embora imbricado no direito administrativo, produz efeitos no processo penal.
Ademais, não é mera peça informativa, revelando-se no principal instrumento de salvaguarda da história do crime, formando o arcabouço probatório, com muitas provas, aliás, irrepetíveis, e mesmo as repetíveis, via de regra, são apenas corroboradas em Juízo, muito tempo depois da ocorrência da infração penal, sem nada inovar.
Outro ponto que merece reparo da doutrina é a ideia do inquérito policial como unidirecional, destinado ao titular da ação penal, pois tal entendimento está ultrapassado e desconforme ao sistema acusatório e aos valores constitucionais.
A conceituação do inquérito policial, no contexto atual, merece uma releitura, já que, inegavelmente, tornou-se instrumento de garantia de direitos fundamentais e de proteção contra acusações infundadas.
Não se presta o inquérito policial somente para produzir provas destinadas à acusação, serve também para embasar a defesa, haja vista sua dupla finalidade, de apontar autoria, materialidade e circunstâncias de um crime, e de proteger inocentes contra juízos apressados e imputações indevidas.
A presidência do inquérito policial cabe ao Delegado de Polícia, que é o dirigente da Polícia Judiciária e exerce funções de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.[2]
Nesse contexto, o Delegado de Polícia tem um único compromisso, que é com a verdade dos fatos, e sua atuação é regida pelo princípio da juridicidade, que não se confunde com jurisdição – própria do Judiciário.
Pelo princípio da juridicidade, o Delegado de Polícia deve agir não apenas conforme a Lei, mas conforme a Lei e o Direito, estando vinculado até mesmo na formalização, desenvolvimento e conclusão do inquérito policial, em especial nos atos decisórios.
Nesse passo, na investigação criminal a juridicidade imprime a condução das atividades investigativas com imparcialidade e com isenção, de acordo com os móveis técnico-jurídicos representados pelo dever de atuação não somente em harmonia com a lei, mas também em consonância com o Direito, entendido como ciência jurídico-dogmática.[3]
Daí a compreensão de que a função exercida pelo Delegado de Polícia na condução das investigações desfruta de autonomia como um imperativo decorrente de princípios constitucionais da maior envergadura.[4]
Dentro do inquérito policial, não com discricionariedade, como alguns apontam, mas sempre em busca do ato ótimo, o Delegado de Polícia pratica atos administrativos, administrativo-processuais e processuais.
Pratica ato puramente administrativo quando emite simples despachos de andamento do inquérito policial, como no caso em que determina ao escrivão a intimação de determinada pessoa, ou quando emana ordem de missão policial aos seus agentes para que sejam realizadas diligências.
Formaliza atos processuais quando decide pela prisão em flagrante delito de pessoa conduzida, quando decide pelo arbitramento de fiança, ou quando representa, por exemplo, por prisão preventiva.
Por outro lado, também pratica atos híbridos, bifrontes, administrativo-processuais, que embora nascidos no direito administrativo, produzem reflexos processuais, como são a portaria de instauração do inquérito policial, a decisão de indiciamento e o relatório final.
Desses atos decisionais, o que interessa ao estudo é o indiciamento, que pode ser conceituado como um ato administrativo com efeitos processuais, vinculado, declaratório, fundamental e privativo do delegado de polícia enquanto autoridade policial.[5]
O indiciamento consiste na indicação oficial,com base em elementos fáticos e jurídicos, que determinada pessoa é provável autora do crime, implicando mudança no status do sujeito investigado, que passa de suspeito a provável autor, representando não um juízo de mera possibilidade, mas de probabilidade.
Entende-se que, em prestígio aos princípios do contraditório e da ampla defesa, aplicáveis de forma mitigada ou limitada ao inquérito policial, o indiciamento deve ser comunicado ao indiciado, evitando-se o ato surpresa, que inviabiliza o direito de se defender ainda na fase policial da persecução penal.[6]
Além disso, por imperativo legal, o ato formal de indiciamento deve se dar por uma decisão fundamentada do delegado de polícia, mediante análise técnico-jurídica do fato, com indicação da autoria, materialidade e circunstâncias.
Aliás, há quem defenda que mesmo o não indiciamento deve ser fundamento, cabendo ao delegado de polícia revelar em despacho e no relatório final os motivos que o levaram a tomar tal decisão, sob o aspecto jurídico, indicando, por exemplo, falta de comprovação da tipicidade, causas excludentes de ilicitude ou culpabilidade.[7]
Como ato privativo do Delegado de Polícia, o indiciamento não pode ser requisitado pelo Ministério Público nem pelo Judiciário, pois como explicitou o Ministro Luís Roberto Barroso em sua decisão no inquérito 4621, o indiciamento, a denúncia e a sentença representam, respectivamente, atos de competência privativa do Delegado de Polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário, sendo vedada a interferência recíproca nas atribuições alheias, sob pena de subversão do modelo acusatório, baseado na separação entre as funções de investigar, acusar e julgar.
Por ser ato produtor de efeitos jurídicos, o indiciamento arbitrário é passível de habeas corpus ao juiz ou tribunal competente que, considerando o ato ilegal, pode fazer cessar a coação por meio do trancamento da investigação.[8]
Portanto, o indiciamento é um ato administrativo-processual, no bojo do inquérito policial, que produz efeitos jurídicos, pelo qual o Delegado de Polícia, e somente ele, decide fundamentadamente, emitindo juízo de valor (princípio da juridicidade), atribuir ao investigado a condição de provável autora da infração penal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Lei 12.830 de 20 de junho de 2013. Dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCiVil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12830.htm. Acesso em 23 set. 2018.
DEZAN, Sandro Lúcio. A legalidade e a juridicidade da atuação da administração pública na função de polícia judiciária e na realização da investigação criminal. Irrelevância jurídico-sistemática do veto ao § 3.º, do art. 2.º, da Lei 12.830/2013. Disponível em: http://ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13417. Acesso em 23 set. 2018.
GOMES, Luiz Flávio e SCLIAR, Fábio. Breves considerações a respeito do Estatuto do Idoso. Disponível em http://www.lfg.com.br. Acesso em 31 out. 2018.
ANSELMO, Márcio Adriano; BARBOSA, Ruchester Marreiros; GOMES, Rodrigo Carneiro; HOFFMANN, Henrique; MACHADO, Leonardo Marcondes. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2016.
MACHADO, Leonardo Marcondes. O indiciamento policial não pode ser ato surpresa! Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-abr-03/academia-policia-indiciamento-policial-nao-ato-surpresa. Acesso em 02 nov. 2018.
LUPO, Fernando Pascoal. O não indiciamento deve ser fundamentado.Disponível em:http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_criminal/Artigos/O%20N%C3%83O%20INDICIAMENTO%20DEVE%20SER%20FUNDAMENTADO%20I.pdf. Acesso em 02 nov. 2018.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 11. Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014.
Notas
[2] BRASIL. Lei 12.830 de 20 de junho de 2013. Dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCiVil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12830.htm. Acesso em 23 set. 2018.
[3] DEZAN. Sandro Lúcio. A legalidade e a juridicidade da atuação da administração pública na função de polícia judiciária e na realização da investigação criminal. Irrelevância jurídico-sistemática do veto ao § 3.º, do art. 2.º, da Lei 12.830/2013. Disponível em: http://ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13417. Acesso em 23 set. 2018.
[4] GOMES, Luiz Flávio e SCLIAR, Fábio. Breves considerações a respeito do Estatuto do Idoso. Disponível em http://www.lfg.com.br. Acesso em 31 out. 2018.
[5] ANSELMO, Márcio Adriano; BARBOSA, Ruchester Marreiros; GOMES, Rodrigo Carneiro; HOFFMANN, Henrique; MACHADO, Leonardo Marcondes. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2016.
[6] MACHADO, Leonardo Marcondes. O indiciamento policial não pode ser ato surpresa! Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-abr-03/academia-policia-indiciamento-policial-nao-ato-surpresa. Acesso em 02 nov. 2018.
[7] LUPO, Fernando Pascoal. O não indiciamento deve ser fundamentado.Disponível em:http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_criminal/Artigos/O%20N%C3%83O%20INDICIAMENTO%20DEVE%20SER%20FUNDAMENTADO%20I.pdf. Acesso em 02 nov. 2018.
[8] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 11. Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014.