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União estável e contratos de namoro no Código Civil de 2002

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02/08/2005 às 00:00
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4. A questão terminológica e o novo Código Civil

O próximo ponto a examinar diz respeito à denominação recebida pela união de duas pessoas de sexos diferentes à margem do casamento ao longo do tempo e confrontá-la com o tratamento recebido pelo legislador de 2002.

O Direito se faz através da linguagem. Os signos expressam os significados e os significantes e a questão terminológica é relevante para o tecnicismo científico do Direito.

Antes do advento da Constituição Federal de 1988 e das Leis 8.971/94 e 9.278/96, havia uma multiplicidade de denominações aplicadas à relação afetiva desenvolvida fora dos liames do matrimônio civil.

Ao referir-se à pessoa que com outra vivia sem ser casada, falava-se em concubina, convivente, companheira, amásia, namorada, amante, etc.

Para designar o instituto, as expressões concubinato, companheirato, companheirança, amasiamento, dentre outras.(17)

A expressão "concubina", largamente utilizada por milênios, passou a ser evitada, pela carga negativa que encerrava. Concubina era a mulher que se deitava com um homem para fins carnais. A conotação era sempre sexual e de ordem quase sempre ilícita.

A CF/88 trouxe uma nova definição jurídica para a família constituída à margem do casamento e referiu-se a essa espécie de relação afetiva duradoura, notória e continuada, com objetivo de constituição de família usando o termo "união estável".

A Lei 8.971/94, disciplinando os alimentos e o regime de bens, denominou de companheiros os componentes da relação afetiva.

A Lei 9.278/96, definiu os contornos do conceito de união estável e denominou-os de conviventes, passando a ser chamada de "Lei dos Conviventes".

Parecia estar resolvida a polêmica dissidência terminológica que tanto ocupou a doutrina. Seis anos decorreram, de 1996 a 2002, quando se fez publicar o novo Código Civil, O projeto que o originou apresentava-se recheado de problemas no Título que cuidou da união estável e trazia sério retrocesso legislativo, extremamente danoso à sociedade, mas foi corrigido a tempo, sanando-se a maior parte das imperfeições.

No que diz respeito à terminologia utilizada, entretanto, o legislador de 2002 fez retroceder o texto normativo, voltando a adotar a expressão "companheiros", para nominar os conviventes, restabelecendo expressão já abandonada pela lei especial.

Difícil precisar se tal retorno aos termos da lei ultrapassada se faz merecedor de críticas, pois ao que parece o legislador tentou resgatar uma expressão de cunho mais popular e difundido. Realmente parece soar melhor falar-se na companheira de um homem e no companheiro de uma mulher, do que na convivente de um homem e no convivente de uma mulher, a despeito de, em nossa obra, termos sugerido a criação de novo estado civil, com esta denominação (conviventes), o qual nos parece muito mais adequado para tal finalidade.(18)

Ocorre que o termo "companheiro", por sua natureza polissêmica, expressa muitos significados diferentes e já consolidados em nosso vernáculo. São companheiros o amigo, o colega de trabalho ou o simples acompanhante em jornada. Usa-se o termo companheiro para designar integrantes de um mesmo partido político, ou como simples vocativo para se dirigir a um desconhecido, dentre tantos outros exemplos que se poderia enumerar.

Não obstante, o Código Civil restabeleceu a nomenclatura da Lei 8.971/94 e a consolidou. São, portanto, companheiros, os que vivem em regime de união estável. O termo "conviventes" pode estar fadado ao desaparecimento. Ou, quem sabe, aguardará o momento propício para ressurgir, em nova legislação.


5. Contratos de namoro

Entre tantas designações aplicáveis aos que convivem sem casamento, há uma dúvida que tem sido levantada por alguns autores em sede de argumentação e que diz respeito a como devem ser denominadas as pessoas que preenchem apenas alguns dos itens necessários ao reconhecimento da união estável, no período que antecede a caracterização completa desse estado, especialmente quando o que falta para tal configuração é o decurso razoável do tempo para que se possa ter na relação o aspecto de "duradoura".

Tratam-se apenas de namorados? Podem ser chamados de companheiros a partir do momento em que passam a coabitar, ou haverá uma denominação intermediária que os designe? Até quando são namorados e quando deixam de sê-lo para tornarem-se companheiros? Qual o momento ou o fator especial que marca essa mudança e onde se transpõe essa linha limítrofe? E se um deles não possui em relação ao outro qualquer intenção de estabelecer união estável, mas sim de simples namoro prolongado? Poderá mesmo assim ser denominado companheiro? Poder-se-lhe-á impor o regime da união estável, mesmo contra sua vontade?

A propósito desse exemplo, o que se tem observado e já começa a ser objeto de análise pela doutrina e pela jurisprudência, é a prática da elaboração de "contratos de namoro", para assegurar-se a um ou ambos os namorados, que de sua relação afetiva não resultará reconhecimento da condição de companheiros e muito menos efeitos patrimoniais próprios da união estável.

Tal preocupação parece ter-se intensificado após o advento do novo Código Civil, encampando as legislações pretéritas que disciplinavam a união estável. A razão disso, aparentemente, foi a maior divulgação pela mídia das inovações do Código Civil. Muitas pessoas ainda desconheciam a existência das Leis 8.971/94 e 9.278/96. Outras, que delas já haviam ouvido falar, só passaram a emprestar maior importância às suas disposições quando souberam que essas previsões agora estavam "no Código", o que denota quão pouco se conhece de legislação em meio à grande massa da população brasileira.

Mas como ficam tais contratos? Possuem validade? A vontade das partes deve ser respeitada, entendendo-se como contratos de namoro, independentemente de estarem os contraentes, faticamente, vivendo em comunhão de vidas e interesses e preenchendo todos os requisitos exigidos para a caracterização da união estável?

E se houver o rompimento da relação, caberá algum direito à mulher, se na constância da mesma se adquiriu bens apenas em nome do namorado, com quem já vivia publicamente, dividindo o mesmo teto de forma duradoura? E como ficará a avença se do relacionamento advier um ou mais filhos?

A questão não se afigura de simples solução. Alguns dos questionamentos formulados são facilmente resolvidos à luz da própria lei, não possuindo tais contratos nenhum valor legal ante certas situações, por contrariarem preceitos de ordem pública. Outros exigem solução diversa, especialmente quando ausente alguma das condições exigidas para o reconhecimento pleno e inconteste da união estável.

É claro que a vontade manifestada pelas partes deve ser respeitada, mais porque, se ambos os contratantes insistirem na ausência de qualquer vínculo senão o de simples namoro, consoante pactuaram, tal conduta conduzirá a uma forma de desistência tácita dos direitos que poderiam advir a um ou outro de tal relação continuada.

Se a predisposição de ambos é estabelecer relacionamento afetivo sem qualquer vinculação, valerá o avençado, especialmente porque nenhum deles demandará contra o outro. Se essa predisposição for de apenas um, fatalmente poderá o outro questionar a validade do contrato de namoro, especialmente em face das transformações naturais operadas no relacionamento, que porventura tenha evoluído para um estado de nítida união estável, que antes não existia.

Aliás, nenhuma união nasce estável. Ela se torna estável. Nenhuma união nasce duradoura, mas torna-se tal, se persistir no tempo. Mesmo os namoros mais "moderninhos", que já começam íntimos, regidos pelo sexo, possuem grande possibilidade de desfazimento, só se tornando efetivos, estáveis e duradouros com a superação dos desencontros naturais da personalidade dos parceiros, ao longo do tempo.

Alguns fatores imprevistos, como o nascimento de filhos, que a rigor tenderiam a efetivar e estabilizar o relacionamento, nem sempre conduzem a tal desfecho, podendo ser até causa de separação.(19)

Mas não se pode perder de vista que tais acontecimentos, uma vez verificados, geram efeitos jurídicos independentemente da vontade das partes. Nascido um filho, nascem com ele a obrigação alimentar e os direitos sucessórios, dentre outros.

Da mesma maneira, em convivendo um casal, de forma pública e notória, continuada e estável, adquirindo patrimônio, operam-se direitos que podem vir a ser reconhecidos independentemente de disposição contrária em contrato escrito, que afirme tratar-se de simples namoro.

Assim, pode-se dizer que a validade do contrato de namoro é relativa, perdurando até que um dos companheiros sinta-se prejudicado e venha a questioná-la.

Tal problemática também é visualizada por Luiz Kignel, quando discorre: "Ao conferir à união estável direitos e obrigações que antes apenas poderiam ser exigidos dos formalmente casados, o legislador preocupou-se com acerto em conferir segurança àqueles que optaram em viver como companheiros. Mas existe uma diferença. Porque quando duas pessoas vão juntas ao Cartório Civil para celebrar seu casamento, está claramente configurada a vontade de estabelecimento de uma vida conjugal. Nas uniões estáveis, o trauma ocorre quando no mesmo casal uma parte acha que está vivendo como se casada fosse e a outra continua a imaginar estar apenas namorando. Isto porque a união estável não incorporou apenas o conceito de informalidade, mas o próprio estilo de vida dos companheiros".(20)

Nada incomum, portanto, que o viver sob o mesmo teto, dormir na mesma cama, compartilhar a convivência familiar, sejam para uma pessoa sinônimo de compromisso sério, próximo do estado de casado e, para outro, mero namoro, já que seu estilo de viver, sem hipocrisias e desfrutando da máxima liberdade, modela tal relacionamento como fruto de maturidade psicológica e não de comprometimento social.

Em coexistindo tal diversidade de interpretação, que se faz plenamente possível e até comum nos dias atuais, os conflitos serão inevitáveis. Talvez para garantir o entendimento claro das intenções e do modo de ser e pensar, é que tais contratos estejam sendo utilizados em maior escala.

Sob tal cotejo, não será de se estranhar se a jurisprudência vier a atestar a validade de tais contratos, como também não será surpresa se vier a desconsiderá-los, em função do cumprimento fático dos requisitos reveladores do estado de união estável, caso algum interesse maior esteja em jogo, suplantando o interesse dos parceiros.

Conceba-se a hipótese de terceiros, que de qualquer modo sintam-se prejudicados com tal espécie de contrato, que poderia vir a ser utilizado como forma de dissimulação da união estável, especialmente no que diz respeito ao patrimônio adquirido na constância dessa relação.

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Imagine-se a hipótese de um credor da mulher, que a julgava casada ou pelo menos convivendo maritalmente com o parceiro fixo, habitual, com o qual mantinha relação estável, notória e continuada, mas ante o inadimplemento desta, descobre que todo o farto patrimônio apresentado e ostentado no momento da concessão do crédito pertence tão-somente àquele, que agora se intitula mero "namorado" e exibe contrato escrito para comprovar tal estado.

Certamente caberia a postulação da ineficácia das disposições do contrato de namoro pelo credor, em face das obrigações contraídas pela devedora, buscando, na comunicação do patrimônio adquirido na constância da união, a satisfação de seu crédito. Observe-se que não se trataria de nulidade do avençado entre os companheiros, mas de ineficácia da avença em relação ao terceiro de boa-fé.

Vale dizer que de nada valerá exercitar toda a criatividade na elaboração de contratos tendentes a contradizer a lei. Melhor será, em havendo interesse na preservação do patrimônio, que os companheiros (ou até mesmo os namorados cujo relacionamento esteja evoluindo para a união estável) firmem contrato característico, prevendo o regime de bens que deverá ser observado, circunstância que a própria lei autoriza, já que em não o fazendo, prevalecerá o regime da comunhão parcial de bens, inovação trazida pelo novo Código Civil, em substituição às disposições genéricas sobre condomínio e partilha previstas na legislação pretérita.

Outra medida não menos interessante para o meio social, e sobre a qual temos insistido, seria a criação do estado civil de conviventes ou companheiros, com assento no Registro Civil, em livro próprio, o que viria em socorro de tais situações-problema.

Frente às novas disposições de lei, inseridas no Código Civil vigente, far-se-ia de bom alvitre, pelo menos, retomar as propostas legislativas que obrigam os companheiros a declarar seu estado de mútua convivência, no momento da assunção de qualquer obrigação, para resguardar os interesses de terceiros.


6. O renascer do concubinato

Quando, em 1996, optou o legislador pelo uso da expressão "conviventes", procurou criar um neologismo jurídico, uma expressão nova que resolvesse o problema crônico da multiplicidade de termos e, principalmente, da carga negativa da palavra concubinato. De concubinato, pois, já não mais haveria de falar-se. O termo, pela sua conotação pejorativa deveria dar lugar a uma nova concepção de família, que em 1988 recebera a chancela legitimatória pela Carta Magna, com o nome de "união estável".

Justamente quando se pensava estar sepultado em definitivo, pelo advento das Leis 8.971/94 e 9.278/96, eis que ressurge, como a mitológica fênix, de suas próprias cinzas, a figura do concubinato, desta vez impresso e conceituado no novo Código Civil, porém desprovido de regulamentação quantos aos efeitos, especialmente patrimoniais, que possa gerar.

Talvez se tenha perguntado o legislador: – como chamar, agora, aquelas relações que apresentam características de união estável, mas que não o configuram, por impedimento incontornável? Que espécie de figura jurídica estará em tela, quando se tratar da companheira de homem casado, que com ele conviveu anos a fio, teve filhos e adquiriu patrimônio, muitas vezes sem nem imaginar que o companheiro possuísse família legítima, hipótese esta tão comum e repetidamente trazida à apreciação judicial? Poderá haver união estável concomitante ao casamento? A própria lei objeta tal idéia e ao que parece, a única resposta que surgiu ao legislador foi a de estar perante a velha figura do concubinato, que muitos autores denominavam "concubinato impuro" para diferençá-lo da união estável propriamente dita, que a doutrina chamava de "concubinato puro".

O novo Código, então, ante a encruzilhada semântica, optou por dar formatação ao concubinato, já que a situação fática e jurídica que ele expressava, na verdade nunca desapareceu.

Assim, o novo Código ressuscitou o concubinato, dando-lhe, inclusive, definição legal.(21)

Não cuidou, porém, de dar tratamento jurídico aos efeitos dele decorrentes, razão pela qual deve o Poder Judiciário continuar proferindo decisões reguladoras para essa figura jurídica incômoda, mas sempre presente, cuja existência não pode ser ignorada.

Após o novo Código Civil, descabe falar-se em concubinato puro ou impuro, com ou sem impedimentos, adulterino, etc. Em não estando presentes os requisitos para a configuração da união estável, tratar-se-á de concubinato. Pura e simplesmente concubinato, sem qualquer qualificativo, sem qualquer complemento nominal.

A extensão dessa previsão legal de incerta utilidade, e que já figurava no Projeto de Lei nº 634/75, ainda não se apresenta muito clara, mas certamente vai desembocar em um amplo debate doutrinário, abrindo nova brecha na milenar hegemonia do casamento, já tão abalada com o reconhecimento da nova expressão da família, constituída nas modalidades união estável e monoparental.(22)

O certo é que, ante o novo regramento pelo Código Civil, permanece o problema patrimonial para os concubinos, sem que tenha sido apontada nenhuma diretriz a seguir.

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Sobre o autor
Helder Martinez Dal Col

Advogado e Professor no Paraná, Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ), Mestre em Direito Civil pela Universidade Estadual de Maringá (UEM/PR)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COL, Helder Martinez Dal. União estável e contratos de namoro no Código Civil de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 759, 2 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7100. Acesso em: 28 mar. 2024.

Mais informações

Artigo alterado e adaptado a partir de texto anteriormente publicado na Revista Brasileira de Direito de Família (IBDFAM), Porto Alegre, Síntese, IBDFAM, v. 6, n. 23, abr./mai. 2004.

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