Conclusão - atuação médica segura
A verdade tem um poder libertador quando devidamente aplicada. Por meio dela, Voltaire obteve a reabilitação da memória de Jean Calas e a absolvição de sua família. Mas essa mesma verdade teria, contrário à conclusão de Voltaire, ‘detido a excitação dos espíritos’ e libertado Jean Calas da condenação e da morte se tão somente fosse aplicada antes de se dar margem à criação de lendas. Assim, a História ensina, até mesmo por tristes relatos, como evitarmos a repetição de erros causados pela desinformação e pelo preconceito, os quais podem condenar certos grupos a um tratamento diverso daquele conferido a todo e qualquer cidadão.
Feitos tais esclarecimentos, a prestação de uma assistência médica segura envolverá conhecer e utilizar uma abordagem terapêutica ou cirúrgica atualizada sem sangue e documentar a decisão do paciente, bem como todas as etapas do tratamento.
Quanto à segurança jurídica-documental, o CFM apresenta na Recomendação 1/2016[19] um guia para a preparação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), cujo objetivo é registrar o protocolo médico adotado entre o profissional e o paciente, contendo a sua descrição, consequências, riscos e alternativas[20]. Quando o paciente registra sua recusa de transfusão e seu consentimento para outro tratamento no TCLE, “tem sua vontade e autonomia expressa neste documento e o médico sua responsabilidade delimitada”[21].
Outros documentos são igualmente importantes. O prontuário também poderá conter as decisões do paciente e a evolução do tratamento escolhido a fim de comprovar que a atuação foi norteada pela decisão autônoma do paciente[22]. Documentos de “diretivas antecipadas” também são admitidos como expressão válida dos desejos do paciente, já regulados pelo CFM (Resolução CFM 1.995/12).
Sabemos que nem todas as afirmações acima são realmente aquilo que alguns médicos gostariam de ler. Mas podemos afirmar com sinceridade, de forma confiante e positiva, que respeitar a dignidade de cada ser humano competente e juridicamente capaz, reconhecendo seu direito sagrado de tomar as decisões finais que dizem respeito à sua própria vida e assumir de modo livre e esclarecido suas consequências, é sempre o caminho melhor e mais seguro a ser trilhado pelos médicos.
As Testemunhas de Jeová são parte de um crescente movimento global, hoje presente em mais de 230 terras, que divulga sua mensagem em mais de 986 idiomas através de suas publicações e do seu site institucional.[23] O paciente Testemunha de Jeová não é um inimigo do médico. É apenas um paciente que possui uma identidade religiosa forte e que deseja receber tratamento médico de qualidade de acordo com seu consentimento informado.
Dessa forma, as informações trazidas nesta matéria têm por objetivo demonstrar que tanto do ponto de vista legal como constitucional, os médicos podem sentir-se seguros no tratamento dos pacientes Testemunhas de Jeová.
Notas
[1] VOLTAIRE. Tratado da Tolerância: a propósito da morte de Jean Calas. Tradução de Paulo Neves. Martins Fontes. 1993, p. 6.
[2] VOLTAIRE. Ob. Cit., p.6.
[3] O presente artigo não discorrerá sobre as razões religiosas que levam o paciente Testemunha de Jeová a recusar transfusão de sangue. Limitar-se-á ao direito compreendido, não importando a questão motivadora.
[4] Takaschima, Augusto Key Karazawa, et al.. Dever ético e legal do anestesiologista frente ao paciente testemunha de Jeová: protocolo de atendimento. Revista Brasileira de Anestesiologia. (http://dx.doi.org/10.1016/j.bjan.2015.03.008)
[5] STJ - Agravo Regimental no REsp n.º 354.510-MG.
[6] Parecer disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2014/12
[7] Não se vislumbra indícios de infração ética quando o médico deixa de instituir procedimentos diagnósticos ou terapêuticos necessários ao tratamento do seu paciente, quando impedido por recusa consciente do paciente e de seus familiares, decorrente de motivos de ordem religiosa.
[8] A médica deixou de fazer transfusão de sangue a uma paciente em obediência à sua vontade expressa previamente. Como não se deve desrespeitar a autonomia da paciente, foi absolvida.
[9] Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/Recomendacoes/1_2016.pdf
[10] A Portaria de Consolidação n.º 5/2017, anexo IV, prevê, em procedimentos cirúrgicos, o uso de duas técnicas que envolvem o manejo do sangue do próprio paciente que podem evitar uma transfusão: a hemodiluição normovolêmica aguda e a recuperação intraoperatória de células (arts. 221 e 222). Determina, também, a presença de médico responsável pelo programa de transfusão autóloga pré-operatória e de recuperação intraoperatória (art. 224).
[11] Nesta lista estão incluídos itens como acetato de desmopressina, ácido fólico, ácido tranexâmico, albumina humana, alfaepoetina, complexo protombínico humano, danazol, fatores IX, VII e XII de coagulação, sulfato ferroso, micronutrientes, solução ringer + lactato, selante de fibrina, bem como o coagulador de argônio, que visam o ótimo gerenciamento e aproveitamento do sangue do próprio paciente, estando disponíveis na rede de saúde pública.
[12] “ (…) to establish or strengthen systems for the safe an rational use of blood products and to provide training for all staff in clinical transfusion, to implement potential solutions in order to minimize transfusion errors and promote patient safety, to promote the availability of transfusions alternatives including, where appropriate, autologous transfusion and patient blood management” – Sixty Third World Health Assembly. (World Health Organization - http://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/wha63-rec1/wha63_rec1-en.pdf)
[13] Art. 135 – “Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena – detenção de um a seis meses, ou multa. (...)”
[14] Neste sentido, o escólio de Nelson Nery Júnior em parecer específico sobre o tema, segundo o qual “a sujeição do médico à vontade do paciente não pode caracterizar omissão de socorro, tipificado no CP 135. Se é certo que o paciente tem o direito de escolher não se submeter a determinado tratamento, o médico tem o dever de respeitar a decisão do paciente”. Acrescenta ainda: “Desse modo, o médico que recomenda a transfusão de sangue, ao contrário do que exige o tipo, tem a intenção de tratar o paciente. Se este a recusa, não há que se falar em omissão de socorro por parte do médico, sendo atípica a conduta, porque falta a ela o elemento subjetivo do tipo, ou seja, o dolo de submeter o sujeito passivo à situação de perigo iminente ou eventual”. (NERY JUNIOR, Nelson. Direito de Liberdade e a recusa de tratamento por motive religioso. Parecer Jurídico. Revista de Direito Privado, n.º 41, Jan/Mar de 2010, Ed. Revista dos Tribunais, pp. 259)
[15] OMISSÃO DE SOCORRO – Agentes que não permitem a transfusão de sangue em vítima menor – Socorro ministrado sob diferente forma terapêutica – Inteligência do art. 135 do CP – Ausência de justa causa para ação penal – Ordem concedida para seu trancamento – Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, Habeas Corpus nº 184.642/5, 9ª Câmara, 30.8.89.
[16] NUCCI, Guilherme de Souza – Código Penal Comentado – Revista dos Tribunais, p. 702, 2013.
[17] Art. 146 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa. (...) § 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo: I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida; (...)
[18] De acordo com Nelson Nery Junior em citado parecer: “inexiste o constrangimento ilegal quando o médico, por motivo de iminente perigo de vida, realiza intervenção cirúrgica sem o consentimento do paciente. Isto não quer significar, todavia, que o médico possa realizar a intervenção contra o consentimento do paciente. É dizer, se o praticante da religião Testemunhas de Jeová tiver emitido declaração de vontade válida e prévia à situação de iminente perigo, expressando sua recusa em receber transfusão de sangue, não poderá o médico sob a alegação de que o paciente corria risco de vida, constrangê-lo a receber a transfusão contra a sua vontade.” (Ob. Cit., p. 260)
[19] Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/Recomendacoes/1_2016.pdf
[20] Segundo definido pelo STJ, no citado Recurso Especial n.º 1.540.580/DF: “Haverá efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especificamente ao caso do paciente, não se mostrando suficiente a informação genérica. Da mesma forma, para validar a informação prestada, não pode o consentimento do paciente ser genérico (blanket consent), necessitando ser claramente individualizado.”
[21] MINOSSI, José Guilherme e SILVA, Alcino Lazaro. “Medicina defensiva: uma prática necessária?” Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões [periódico na Internet] 2013;40(6).
[22] VALADARES, Leandro. A Questão Jurídica no Atendimento Médico de Pacientes Testemunhas de Jeová. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-jun-10/opiniao-questao-juridica-atendimento-testemunhas-jeova
[23] https://www.jw.org/pt/
Referências Bibliográficas
CFM. Parecer CFM 12/2014. Assunto: Resolução CFM 1021/80, que trata sobre a recusa pelos adeptos da Testemunha de Jeová em permitir a transfusão sanguínea. Rel. Carlos Vital Corrêa Lima. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2014/12
CFM. Recomendação 1/2016. Assunto: Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/recomendacoes/BR/2016/1
CFM. Resolução CFM 1995/12. Assunto: Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2012/1995
MINOSSI, José Guilherme e SILVA, Alcino Lazaro. Medicina defensiva: uma prática necessária? Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões [periódico na Internet] 2013;40(6). Disponível em URL: http://www.scielo.br/rcbc
NERY JUNIOR, Nelson. Direito de Liberdade e a recusa de tratamento por motive religioso. Parecer Jurídico. Revista de Direito Privado, n.º 41, Jan/Mar de 2010, Ed. Revista dos Tribunais, pp. 223/292
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado – Revista dos Tribunais, 2013.
STJ. AGRAVO REGIMENTAL no Recurso Especial n.º 354.510-MG. Relatora: Denise Arruda. DJ 24/05/2004 p. 156. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200101280290&dt_publicacao=24/05/2004
STJ. HABEAS CORPUS n.º 268.459/SP. Relatora: Ministra Maria Thereza de Assis Moura. DJe 02/03/2015. Disponível em:
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201301061165&dt_publicacao=02/03/2015
STJ. RECURSO ESPECIAL n.º 1.540.580/DF. Relator: Lázaro Guimarães. DJe 04/09/2018. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201501551749&dt_publicacao=04/09/2018
Takaschima, Augusto Key Karazawa, et al.. Dever ético e legal do anestesiologista frente ao paciente testemunha de Jeová: protocolo de atendimento. Revista Brasileira de Anestesiologia. (http://dx.doi.org/10.1016/j.bjan.2015.03.008)
VALADARES, Leandro S. A Questão Jurídica no Atendimento Médico de Pacientes Testemunhas de Jeová. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-jun-10/opiniao-questao-juridica-atendimento-testemunhas-jeova
VOLTAIRE. Tratado da Tolerância: a propósito da morte de Jean Calas. Tradução de Paulo Neves. Martins Fontes. 1993, p. 6.