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O estado de coisas inconstitucional na segurança pública brasileira

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A solução para superar a falta de segurança pública não vai surgir de forma repentina, por meio de atos isolados, mas sim através de uma ação conjunta e harmoniosa. É imperioso que todos os Poderes se conscientizem da necessidade de um trabalho conjunto e contínuo.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. O Estado de Coisas Inconstitucional; 3. Precedentes da Corte Constitucional Colombiana; 4. O Caso Brasileiro – A ADPF 347; 5. A Violência e a Violação Massiva de Direitos Fundamentais; 6. A Segurança Pública e a Omissão Estrutural; 7. O Papel do Ministério Público; 8. Conclusão; 9. Referências

RESUMO: O quadro fático da segurança pública no Brasil revela verdadeiro Estado de Coisas Inconstitucional. A persistente omissão estrutural, atribuída a representantes dos 03 (três) Poderes da República, provoca uma massiva violação de direitos fundamentais, com mais de 60 mil mortes violentas anuais registradas no país nos últimos anos. O presente artigo detalha as falhas na promoção do direito fundamental à segurança pública, desde o atraso na tramitação de leis e emendas constitucionais, até a falta de investimento na área. O cenário é similar ao do Estado de Coisas Inconstitucional, formatado, inicialmente, na Corte Constitucional da Colômbia e reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347 em relação ao Sistema Penitenciário.

PALAVRAS-CHAVE: Segurança Pública; Estado de Coisas Inconstitucional; Omissão Estrutural; Violação de Direitos Fundamentais; Ministério Público


1. Introdução

De acordo com o levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública[1], no ano de 2017 houve 63.880 (sessenta e três mil oitocentos e oitenta) mortes violentas no país, maior número anual já registrado pela mencionada organização não governamental. De acordo com tais dados, são 175 (cento e setenta e cinco) mortes violentas por dia.

Os dados referentes aos crimes contra o patrimônio também são alarmantes. A cada minuto, um carro é roubado ou furtado no Brasil. Além disso, foram registrados 2.460 (dois mil quatrocentos e sessenta) casos de latrocínio.

O estudo ainda aponta que 367 (trezentos e sessenta e sete) policiais e 5.144 (cinco mil cento e quarenta e quatro) civis foram mortos em intervenções policiais.

Há algo errado! Isso é perceptível por qualquer cidadão. Os números acima apenas corroboram o medo, quotidianamente, sentido pelo cidadão brasileiro ao sair às ruas; habituado a desviar os caminhos para evitar vias perigosas; jogando-se ao chão quando é surpreendido por uma troca de tiros; diariamente deparando-se com notícias sobre a violência urbana.

A segurança pública está em colapso e, infelizmente, essa frase já nos soa como um lugar-comum. Em contrapartida, nota-se uma leniência do Estado na promoção desse importante direito fundamental.

A omissão estatal inicia-se com uma total carência legislativa sobre o tema. A Constituição Federal de 1988 pouco se dedica à Segurança Pública. No âmbito infraconstitucional, muito embora tenha sido publicada a lei que regulamenta o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), o tema ainda carece de maior regulamentação, principalmente em relação às responsabilidades e às atribuições dos entes federativos.

O colapso também pode ser imputado ao Poder Executivo. A falta de investimentos acarreta o sucateamento das forças policiais, que sofrem com a falta de efetivo, com a precariedade de estruturas físicas e carência de equipamentos.

No início do ano de 2017, vários Estados registraram paralisações dos organismos policiais. O Espírito Santo, por exemplo, enfrentou uma grave crise na segurança pública, após a paralisação da Polícia Militar, cujos profissionais reivindicavam melhores condições de trabalho e reajuste salarial.

Atualmente, observa-se o crescimento de mais um sintoma da insegurança: o apoio a soluções autoritárias. Diante da inércia do Estado, parcela da população – já cansada do caos – passou a apoiar o autoritarismo das forças de segurança. Em recente pesquisa realizada pelo Fórum de Segurança Pública, verificou-se um elevado índice de propensão ao apoio de soluções autoritárias.[2]

O quadro apontado é similar ao delineado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao julgar a Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347, que decretou o Estado de Coisas Inconstitucional do Sistema Penitenciário Brasileiro.

Sendo assim, com base no que decidiu o Tribunal Constitucional naquela oportunidade, pode-se dizer que o atual contexto fático da Segurança Pública no Brasil é um Estado de Coisas Inconstitucional, que - tal como a crise do Sistema Penitenciário -, necessita de uma intervenção planejada e articulada dos três Poderes.


2. O Estado de Coisas Inconstitucional

Em apertada síntese, o Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) pode ser definido como uma situação fática, proveniente de reiterada omissão inconstitucional, responsável por uma violação massiva de direitos fundamentais.

É, pois, uma situação fática, vislumbrada a partir de um caso concreto, daí a dificuldade em formatar um conceito abstrato do instituto.

Carlos Alexandre de Azevedo CAMPOS[3], em excelente obra sobre o tema, apresenta 04 (quatro) pressupostos para que seja reconhecido o ECI. Primeiramente, constata-se uma violação massiva e contínua de diferentes direitos fundamentais, proveniente de um grave problema social. O segundo pressuposto é a omissão reiterada e persistente das autoridades públicas, com absoluta ausência de medidas legislativas, administrativas e orçamentárias, representando verdadeira falha estrutural. Como terceiro pressuposto, está a necessidade de uma confluência de esforços para a superação da situação. O quarto pressuposto é a potencialidade de um número elevado de afetados transformarem a violação de direitos em demandas judiciais, que se somariam às já existentes, podendo causar uma sobrecarga do Judiciário.

Para CAMPOS (2016), a doutrina do Estado de Coisas Inconstitucional encontra raízes filosóficas no liberalismo igualitário de John Rawls, precisamente na noção de mínimo social, porquanto as condições sociais mínimas são pressupostos para que os indivíduos possam exercer liberdades e direitos básicos. Ausentes tais condições, cabe a intervenção das cortes constitucionais para garantir o exercício desses direitos.

Importante registrar que no ECI é prolatada uma sentença estrutural:

“Trata-se de decisão que busca conduzir o Estado a observar a dignidade da pessoa humana e as garantias dos direitos fundamentais uma vez que esteja em curso graves violações a esses direitos por omissão dos poderes públicos. O juiz constitucional depara-se com uma realidade social necessitada de transformação urgente e, ao mesmo tempo, com falhas estruturais e impasses políticos que implicam, além do estado inconstitucional em si mesmo, a improbabilidade de o governo superar esse estágio de coisas contrário ao sistema de direitos fundamentais, sem que o seja a partir de uma forte e ampla intervenção judicial”[4].

Pode-se dizer que o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional é um ponto de partida, a partir do qual a Corte traça metas e agendas positivas com o intuito de superar o quadro fático inconstitucional constatado. O Tribunal Constitucional assume o seu papel de harmonizar os demais Poderes e, assim agindo, pretende estruturar a situação com o fito de superar a omissão inconstitucional.

Muito embora o instituto tenha sido construído no âmbito das cortes constitucionais, conferindo protagonismo ao Poder Judiciário, nada impede que a construção de um pacto de metas e de uma agenda positiva em prol da superação do quadro fático seja promovida por outra instituição, como o Ministério Público, assegurando-se – por óbvio – a participação ativa da população.

Inclusive, o Ministério Público, pelo arquétipo constitucional que lhe foi conferido pelo legislador constituinte de 1988, possui legitimidade para engendrar tal agenda positiva com metas estruturais, por meio de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), sem olvidar da necessidade de participação popular, o que poderá ser feito por meio de audiências públicas, participação em conselhos de segurança pública, reuniões públicas etc.


3. Precedentes da Corte Constitucional Colombiana

O primeiro Tribunal Constitucional a utilizar a técnica de decisão do ECI foi a Corte Constitucional Colombiana. Ao se analisar os precedentes colombianos, percebe-se que a citada corte latina, ao longo do tempo, evoluiu na maneira de usar a técnica de decisão do ECI. Isso porque as primeiras decisões, embora representassem valoroso efeito teórico e moral, tiveram pouca efetividade. Posteriormente, porém, houve um aprimoramento, com a implementação das sentenças estruturais.

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Sobre o primeiro precedente - acerca sistema carcerário colombiano -, assim dispõe Carlos Alexandre Azevedo CAMPOS:

“A Corte Constitucional, em uma de suas decisões mais notórias, todavia, mais decepcionantes, declarou o ECI relativo ao quadro de superlotação das penitenciárias do país. A demanda, julgada na Sentencia T – 153, de 1998, envolvia o problema da superlotação carcerária e das condições desumanas das Penitenciárias Nacionais de Bogotá e de Bellavista de Medellín. A Corte, apoiada em dados e estudos empíricos, constatou que a situação de violação de direitos era generalizada na Colômbia, estando presente nas demais instituições carcerárias do país.”[5]

Após reconhecer o quadro fático do ECI, a Corte prolatou decisão com ordens dirigidas a várias instituições, representativas de todos os Poderes.

Apesar do esforço da suprema corte colombiana, o reconhecimento do ECI não surtiu o efeito esperado, sendo que a própria Corte reconheceu ineficácia da decisão, porquanto persistiu a violação de direitos fundamentais no sistema penitenciário colombiano.

Como bem pontua CAMPOS (2016), embora emblemática, a decisão que reconheceu o ECI no Sistema Prisional Colombiano foi ineficaz, uma vez que não foi implementado um sistema eficaz de monitoramento das ordens emanadas.

O caso mais emblemático – e de maior sucesso – foi o ECI em relação ao deslocamento forçado de pessoas (Sentença T-025, de 2004). Em tal caso, o Tribunal afirmou que havia mais de três milhões de pessoas deslocadas pela violência e, em razão de falhas estruturais, havia uma violação massiva dos direitos fundamentais de tais pessoas.

Havia uma incapacidade institucional em resolver o problema. Tal incapacidade decorria de três fatores: o desenho e a regulamentação equivocadas das políticas públicas voltadas a defender a população deslocada; falhas da implementação da política e supervisão e avaliação insuficientes. Havia, portanto, falhas em diferentes fases ou ciclos das políticas públicas: na definição da agenda, na formulação, na implementação e na avaliação. [6]

Sendo assim, houve uma intervenção estrutural do Tribunal Constitucional da Colômbia a fim de corrigir as apontadas falhas. Várias medidas foram ordenados pela Corte. Agora, no entanto, com a implementação do devido monitoramento das medidas.

“(…) a principal marca dessa sentença talvez não seja o seu conteúdo propriamente dito, e sim a forma como a corte cuidou de sua implementação. Preocupada com a eficácia de sua decisão e tendo em conta as falhas passadas de efetividade, principalmente, no caso do sistema carcerário, a Corte monitorou as providências adotadas pelo Governo: em dez anos (até abril de 2014), realizou vinte audiências públicas com a presença das autoridades envolvidas e dos setores interessados da sociedade civil, nas quais deliberou sobre a adequação, o andamento e o aperfeiçoamento das políticas públicas formuladas. Para além da justificação e formulação das ordens estruturais, a Corte preocupou-se com a ‘sentença em movimento’ [7].

Além disso, a Corte implementou o mecanismo de “decisões de sequência” destinadas a monitorar o cumprimento das ordens emanadas. Tais decisões tinham o fito de solicitar informações e ações concretas de atores específicos, fixar datas das audiências públicas e avaliar o progresso da realização dos direitos das pessoas.

Percebe-se, pois, que, para garantir a eficácia da decisão, a sentença estrutural prolatada no ECI deve vir acompanhada de um sistema de monitoramento das ordens emanadas, fomentando a participação popular por meio das audiências públicas, como foi feito pela Corte colombiana no caso do deslocamento forçado de pessoas.

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Sobre os autores
Robledo Moraes Peres de Almeida

Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Piauí. Foi Oficial da Polícia Militar do Espírito Santo (PMES) por 15 anos, ocupando atualmente o Posto de Capitão PM da Reserva Não Remunerada. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Graduado pela Escola de Formação de Oficiais da PMES. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera Uniderp/Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (LFG). Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Anhanguera Uniderp/Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (LFG). Pós-graduado em Gestão, Educação e Segurança de Trânsito pela Faculdade Cândido Mendes. Membro Titular da Associação Colombiana de Direito Processual Constitucional. Finalista da categoria Obra Técnica do X Prêmio Denatran de Educação no Trânsito, promovido pelo Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN) no ano 2010. Aprovado no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Aprovado nos concursos públicos para os cargos de: a) Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Piauí; b) Promotor de Justiça do Ministério Público do Tocantins; c) Defensor Público da Defensoria Pública do Espírito Santo; d) Oficial de Justiça Avaliador Federal do Tribunal Regional Federal da Segunda Região (TRF-2)

Felipe Lyra da Cunha

Capitão da Polícia Militar do Estado do Espírito Santo (PMES). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Estado do Espírito Santo. Graduado em Segurança Pública pela Escola de Formação Oficiais da PMES. Já atuou em diversas áreas da segurança pública, como a área de inteligência e na área operacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Robledo Moraes Peres ; CUNHA, Felipe Lyra. O estado de coisas inconstitucional na segurança pública brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5719, 27 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71184. Acesso em: 22 dez. 2024.

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