3 OS LIMITES LEGAIS DO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO
Conforme restou demonstrado nos tópicos anteriores, a elisão e a elusão fiscal decorrem da prática de atos lícitos, anteriores à ocorrência do fato gerador e do dever de recolher o tributo. Já a evasão corresponde à realização de atos ilícitos, de forma simultânea ou posterior ao fato gerador.
Apesar de essas regras serem claras e pacíficas na doutrina, os limites da conduta lícita e ilícita no campo da economia tributária são controvertidos. A estruturação de negócios jurídicos com fulcro de arcar com o menor ônus tributário possível, através do uso de formas não vedadas pelo Ordenamento Jurídico, é prática rotineira de pessoas jurídicas e físicas.Nesse diapasão, é imperioso trazer uma discussão mais aprofundada dos limites legais para o planejamento tributário, e para isso analisaremos acerca do estudo realizado por Marco Aurélio Greco (2008, p. 126-135), que divide em três fases:
1) liberdade salvo simulação;
2) liberdade salvo patologias dos negócios jurídicos;
3) liberdade com capacidade contributiva;
Vejamos cada uma delas detalhadamente, segundo as lições deste autor. A primeira fase do debate — liberdade salvo simulação — se caracteriza, segundo Greco (2008) pela defesa de uma ampla liberdade do contribuinte de poder organizar seus negócios da maneira que bem entender. Nesta fase, têm-se os requisitos clássicos da elisão — anterioridade em relação ao fato gerador, realização de atos lícitos e sem simulação.Greco afirma que as características da forma de pensar desta primeira fase decorrem de uma visão particular de relacionamento entre cidadão e Estado. Segundo ele, “o tema central é o significado da tributação para o contribuinte e como ela deve se comportar perante ela” (Greco, 2008, p. 127). A visão aqui é, portanto, de que o tributo é uma invasão ao patrimônio privado e individual e em face desta invasão o contribuinte teria ampla liberdade de se defender da maneira que bem entendesse, sendo a elisão uma das maneiras de defesa possível. A máxima desta primeira fase é “tudo o que não é proibido é permitido”, ou seja, tudo o que não está expressamente previsto de maneira proibitiva pela lei, pode ser feito pelo contribuinte no sentido de escapar da incidência da norma tributária. Marco Aurélio Greco expressa neste sentido a visão desta primeira fase:
[...] se o Fisco só pode cobrar mediante tipicidade fechada e legalidade estrita, então tudo aquilo que não estiver a elas submetido será uma área não alcançada pela lei tributária, portanto de lacuna. Assim, quando o contribuinte se conduzir dentro de uma área de lacuna poderá agir tranquilo, pois o Fisco nada poderá objetar” (Greco, 2008, p. 131).
A segunda fase - liberdade salvo patologias dos negócios jurídicos - se inicia com a ampliação dos limites ao planejamento tributário, ao se considerar outras figuras como o abuso de direito e a fraude à lei como elementos que tornariam o planejamento tributário não oponível perante o fisco.
Greco (2008) defende que a consideração de outras limitações ao planejamento tributário é reflexo de uma nova concepção de relação entre cidadão Estado, consequência principalmente de novos valores de ordem social trazidos pela Constituição Federal de 1988. Se até então os valores que prevaleciam neste campo eram o do individualismo, direito à propriedade, liberdade de organização dos negócios e segurança jurídica; a CF/88 trouxe ao ordenamento jurídico valores como o da igualdade (artigo 5º, caput), solidariedade (artigo 3º, I) e justiça social (artigo 3º, I). Assim, o tema do planejamento tributário passa a ser analisado “não apenas sob a ótica das formas jurídicas admissíveis, mas também sob o ângulo da sua utilização concreta, do seu funcionamento e dos resultados que geram à luz dos valores básicos da igualdade, solidariedade social e justiça” (Greco, 2008, p.194).
O primeiro destes limites é a figura do abuso de direito. O abuso de direito encontra-se previsto no art. 187 do Código Civil de 2002, nos seguintes termos: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
Destarte, além do abuso do direito, a segunda fase de discussão sobre o planejamento tributário também apontou para a importância da figura da fraude à lei, prevista no art. 166, VI do Código Civil: “É nulo o negócio jurídico quando: VI — tiver por objetivo fraudar lei imperativa; é o abuso de formas.” Trata-se da utilização abusiva de formas jurídicas lícitas com a finalidade de se obter redução do imposto a ser pago. A terceira fase - liberdade com capacidade contributiva - se insere dentro de uma transição de modelos e de nova concepção de Estado, trazidas principalmente pela CF/88, ao trazer expressamente em seu texto valores como da solidariedade, capacidade contributiva e igualdade/isonomia. Greco (2008) sublinha que, ao contrário da primeira fase do debate, o tributo passa a ser visto não mais como uma agressão do Estado ao patrimônio individual, mas como uma contribuição de cada um nas despesas públicas. Passa-se, assim, de um formalismo fiscal, em que se dá maior relevância às formas lícitas dos negócios jurídicos, a um realismo fiscal, em que se procura levantar o conteúdo, motivo e finalidade destes.
A essência desta terceira fase se encontra no princípio da capacidade contributiva, que seria um limite às operações de planejamento tributário. Assim, da perspectiva da capacidade contributiva, a lógica passa a ser a de que mesmo que os atos praticados sejam lícitos e não padeçam de nenhuma patologia ou invalidade — nem assim contribuinte pode agir da maneira que bem entender (Greco, 2008). O princípio da capacidade contributiva está previsto no art. Art. 145, § 1° da CF nos seguintes termos: Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
Considerar o planejamento tributário sob a ótica da capacidade contributiva, tal como encampado nesta terceira fase, significa dizer que todos que apresentarem mesma capacidade contributiva devem ser tributados da mesma maneira, independentemente de terem realizados atos e negócios lícitos ou sem defeitos. Assim, a possibilidade de planejamento tributário passa a ser muito restrita, na medida que não importará se o negócio “alternativo” foi realizado licitamente, sem abuso de direito, de forma ou fraude à lei. O que importará é o fato de denotar ou não capacidade contributiva de quem o realizou. Neste caso, em nome no princípio da isonomia e da capacidade contributiva, o indivíduo deverá ser tributado.
3.1 A Lei ANTIELISÃO (LC 104/2001)
Em 10 janeiro de 2001, foi publicada a Lei Complementar nº 104, alterando o Código Tributário Nacional em vários dispositivos, dentre eles o artigo 116, criando a chamada norma antielisiva geral, assim disposta:
Artigo 116 [...] Parágrafo único - A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária (grifou-se).
A intenção do legislador com essa norma não é atacar a conduta do sujeito passivo (contribuinte) da obrigação tributária, mas a vontade do sujeito no momento da ocorrência do fato gerador, ou seja, coibir a vontade daqueles que tentam encontrar uma forma de economizar o pagamento de tributos antes da ocorrência do fato gerador (elisão).
Para tentarmos desvendar o escopo desta norma, cumpre inicialmente verificarmos o projeto de Lei Complementar n. 77/1999, apresentado pelo Ministério da Fazenda e que deu origem à Lei Complementar n. 104, trazia a seguinte justificativa com relação à inserção do parágrafo único do artigo 116 do CTN:
A inclusão do parágrafo único do artigo 116 faz-se necessária para estabelecer, no âmbito da legislação brasileira, norma que permita à autoridade tributária desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com finalidade de elisão, constituindo-se, dessa forma, em instrumento eficaz para o combate aos procedimentos de planejamento tributário praticados com abuso de forma ou de direito.
A propósito da natureza do parágrafo único do artigo 116 do CTN, há muita discussão na doutrina, existem três correntes de pensamento defendidas que consistem no que segue. A primeira corrente atribui à lei antielisão (parágrafo único do artigo 116 do CTN) nenhum efeito, por entender que este dispositivo não inovou na "Ordem Tributária". Para esta corrente se a interpretação da expressão “dissimulação” é o mesmo que “simulação”, o que equivale a fraude, não haveria razão para a edição da LC 104, já que a hipótese de simulação tem previsão expressa no artigo 149, inciso VII, do CTN. Note-se:
Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos:
[...]
VII - quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação;
Isto é, o artigo 116, parágrafo único, do CTN possuiria mera função de reforçar aquilo que a administração tributária já há muito efetuava na prática da fiscalização, sendo assim, a nova norma não alcançou o fim a que se destinava (proibir a elisão). Através dessa corrente doutrinária, o que se observa é que o legislador não é jurista e, às vezes, ao editar as leis, ficam essas brechas de interpretação.
A segunda corrente, defendida por Ives Gandra da Silva Martins (2001, p.126) entende que a norma antielisão é incompatível com o sistema constitucional brasileiro porque:
[...] nenhum contribuinte terá qualquer garantia, em qualquer operação que fizer, pois, mesmo que siga rigorosamente a lei, sempre poderá o agente fiscal, à luz do despótico dispositivo, entender que aquela lei não vale e que o contribuinte pretendeu valer-se de uma "brecha legal" para pagar menos tributo, razão pela qual, mais do que a lei, a sua opinião prevalecerá. Se não vier a ser suspensa a eficácia dessa norma pelo S.T.F., em eventual exercício de controle concentrado, o direito tributário brasileiro não mais se regerá pelo princípio da legalidade, mas pelo princípio do "palpite fiscal".
Alberto Xavier (2001, p. 157) também é defensor dessa corrente e alega que uma norma geral antielisiva em tais moldes não seria possível no ordenamento jurídico brasileiro, por diversas razões. As principais seriam que a norma geral antielisiva feriria o direito à propriedade e à liberdade econômica constitucionalmente previstos, vez que não permitiriam ao indivíduo disporem de seus negócios da maneira que mais lhes convém. Tais princípios são a base de outros como o da legalidade estrita, previsto pelo art. 150, I da CF e o da tipicidade fechada. Todos estes princípios, segundo Xavier (2001), devem ser considerados cláusulas pétreas da Constituição, tendo em vista se referirem à direitos fundamentais dos contribuintes e, por este motivo, só poderiam sofrer eventuais limitações pelo próprio texto constitucional. Além disso, a cláusula geral antielisiva traria ao ordenamento uma possibilidade de tributação por analogia, não permitida pelo artigo 108, §1° do CTN. Por fim, norma desta natureza estaria ferindo princípios como da certeza e segurança jurídica.
Esta corrente considera uma violação ao princípio da legalidade estrita[8], instaurando-se uma completa insegurança nos negócios praticados pelos contribuintes. Preconiza a tese de que se esta norma for considerada constitucional, ela estaria autorizando a interpretação econômica no direito brasileiro, deferindo ao fisco o dever de tributar duas situações jurídicas distintas, reveladoras de mesmo conteúdo econômico e de igual capacidade contributiva.
A terceira linha de pensamento adota posições menos radicais e mais ponderadas, embora a maioria dos doutrinadores não admita uma cláusula geral antielisão no ordenamento jurídico brasileiro, essa corrente não vê qualquer falha de inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 116 do CTN, pois vislumbra nesse dispositivo apenas mais uma cláusula anti-simulação, ou seja, antievasão, e que complementa a disciplina já existente sobre a matéria no artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional.
MARINS (2002, p. 57) assevera que o artigo 116, parágrafo único do Código Tributário Nacional, ao cuidar da dissimulação, “(...) restringiu seu plexo de incidência à conceituação material e à disciplina formal da simulação, simulação relativa, conhecida pela doutrina como dissimulação”. De igual sentir é a opinião de Cesar A. Guimarães Pereira (apud BOGO, 2005, p. 236-237), para quem a disciplina do artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, nada trouxe de novo em relação à interpretação que já era possível extrair do disposto no artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional. A alteração trazida pela Lei Complementar ao artigo 116, portanto, atinge apenas os atos ou negócios simulados, disciplinando, assim, a “elisão tributária ineficaz”. Este posicionamento ainda aponta para dois regimes de antielisão: o primeiro consiste na previsão de norma antielisiva geral disposta no CTN associada à legislação ordinária meramente procedimental dos membros da Federação. E o segundo regime dispõe a norma antielisiva de forma genérica no CTN e deixa ao legislador de cada ente federativo a elaboração da norma antielisiva específica que contenha a lista dos negócios imponíveis ao Fisco.
O primeiro regime, considera a norma antielisiva geral constitucional desde que cumulada com os seguintes critérios: a) o intérprete faça uso da técnica de ponderação de interesses na solução do conflito; b) a justificativa para a intervenção do fisco seja bem clara e definida, usando de critérios objetivos, à luz da transparência que deve existir nas relações fisco e contribuinte; c) obedeça à lei ordinária de cada ente federativo exigida em seu texto (lei meramente procedimental); d) exista uma ampla defesa, contraditório e controle do ato de desconsideração, sob pena de se atribuir um poder sem sua contrapartida (checks and balance).
No segundo regime, só será considerada constitucional desde que a lei ordinária exigida de cada ente federativo contenha a lista de situações antielisivas (lei contendo norma antielisiva específica), acrescentando-se, ainda, as condições de letras 'a', 'b' e 'd' acima citadas. Presumida a constitucionalidade da norma antielisiva geral, o fisco poderá desconsiderar os efeitos do negócio praticado pelo contribuinte, dentro dos estreitos limites elencados pela terceira corrente.
Sobre a natureza e alcance do parágrafo único do artigo 116, fica evidenciado que, cada uma das correntes doutrinárias comporta ampla análise, desde a busca do significado do termo utilizado (por exemplo, saber se ‘dissimular’, no contexto de um lei brasileira, equivale ou não a ‘simular’), até o exame funcional do dispositivo em sua aplicação prática. Além do mais, o parágrafo único do art. 116 do CTN atribuiu um enorme poder à autoridade administrativa, mas, para que a autoridade administrativa possa agir, faz-se necessário que lei ordinária posterior defina claramente o modo e as condições a serem seguidas pela autoridade fiscal.
Destarte, o dispositivo deu um instrumento para que a autoridade fazendária exigisse o pagamento de impostos mesmo nos casos em que ele foi evitado pelo planejamento tributário com a chamada elisão fiscal, mas não basta apenas a inclusão do parágrafo único do artigo 116, como o próprio artigo traz: “observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”, isto quer dizer que, a norma ainda precisa ser regulamentada por lei para ter eficácia plena e aplicabilidade imediata e com esta regulamentação, ficará claro as distinções entre elisão, evasão e elusão fiscal.