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O direito sucessório na união estável:

análise civil-constitucional acerca do direito sucessório do companheiro supérstite

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28/02/2019 às 17:10
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6 RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS 646.721 E 878.694 E A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1790 DO CÓDIGO CIVIL

 Para melhor elucidar a questão, seguem abaixo as ementas dos dois Recursos Extraordinários.

                       

RE 646.721, RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO

Ementa : DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. APLICAÇÃO DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL À SUCESSÃO EM UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. INCONSTITUCIONALIDADE DA DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS.

1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável, hetero ou homoafetivas. O STF já reconheceu a “inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico”, aplicando-se a união estável entre pessoas do mesmo sexo as mesmas regras e mesas consequências da união estável heteroafetiva (ADI 4277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05.05.2011)

2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso.

3. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública.

4. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/ 2002.

RE 878.694; RELATOR ROBERTO BARROSO

Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO REPERCUSSÃO GERAL. INCONSTITUCIONALIDADE DA DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS.

1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável.

2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988.

3. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente, e da vedação do retrocesso.

4. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. 5. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”.

Neste capítulo, serão apresentados os trechos mais pertinentes dos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, para, a posteriori, análise destes, o que permitirá a se chegar a uma conclusão sobre o tema e sobre o problema levantado neste trabalho.

Ambos os Recursos foram julgados firmando a tese de que é ilegítima a desequiparação entre os cônjuges e os companheiros, afirmando ser incompatível com a Constituição Federal a hierarquização entre entidades familiares, como o que era proposto pelo Código Civil ao reconhecer direitos e garantias aos cônjuges e não fazê-lo aos companheiros.

No caso do RE 878.694,

a recorrente vivia em união estável, em regime de comunhão parcial de bens, há cerca de 9 anos, até que seu companheiro veio a falecer, sem deixar testamento. O falecido não possuía descendentes nem ascendentes, mas apenas três irmãos. Diante desse contexto, o Tribunal de origem, com fundamento no art. 1.790, III, do CC/2002, limitou o direito sucessório da recorrente a um terço dos bens adquiridos onerosamente durante a união estável, excluindo-se os bens particulares do falecido, os quais seriam recebidos integralmente pelos irmãos. Porém, caso fosse casada com o falecido, a recorrente faria jus à totalidade da herança. (RE 878.694/MG)

Como se pode perceber, a distinção entre cônjuge e companheiros gerou prejuízo à parte recorrente, limitando sua cota da herança, sendo que, se casada fosse, esta receberia a totalidade da herança.

Neste sentido, o Ministro Relator Roberto Barroso, explica que no Brasil o regime sucessório é dotado de dois graus distintos de proteção: o forte e o fraco. O fraco diz respeito à parte disponível da herança, tendo o seu autor a faculdade de dispor  desta parte, respeitando-se os limites legais. Já o forte, impede a disposição da legítima, visando proteger os parentes de grau mais próximo.

Ainda nas palavras de Barroso, e possível afirmar que até o Código Civil de 2002, o direito sucessório dos companheiros vinha ganhando contorno através de algumas leis esparsas, o que, segundo o Ministro, foi interrompido pelo Código Civil ao diferenciar os direitos dos Cônjuges e Companheiros, como feito no art. 1790.

Barroso comunga da ideia de que o Código Civil não tenha previsto o Direito Real de Habitação ao companheiro, o fazendo para o Cônjuge, abrandando os requisitos da lei 9.278/96, nada dizendo sobre os companheiros.

Não pode ser deixado de lado a análise feita pelo Ministro no que tange a impossibilidade de hierarquização das entidades familiares:

Os quatro elementos tradicionais de interpretação jurídica – o gramatical, o teleológico, o histórico e o sistemático – podem auxiliar na solução desta matéria. Examina-se, em primeiro lugar, a interpretação semântica, também referida como gramatical, literal ou filológica. Trata-se do ponto de partida do intérprete, sempre que exista uma norma expressa acerca da questão que lhe caiba resolver. Embora, naturalmente, o espírito e os fins da norma sejam mais importantes que a sua literalidade, é fora de dúvida que os sentidos mínimo e máximo das palavras figuram como limites à atuação criativa do intérprete. Pois bem: a norma aqui analisada estabelece, de forma inequívoca, que a família tem especial proteção do Estado, sem fazer qualquer menção a um modelo familiar que seria mais ou menos merecedor desta proteção. Veja-se: o texto do art. 226, seja em seu caput, seja em seu § 3º, não traça qualquer diferenciação entre o casamento e a união estável para fins de proteção estatal. Se o texto constitucional não hierarquizou as famílias para tais objetivos, o legislador infraconstitucional não deve poder fazê- lo.

Em segundo lugar, a interpretação teleológica reforça a inexistência de hierarquia entre ambas as formas de constituição familiar. A interpretação teleológica tem como objetivo a realização dos fins previstos na norma, a concretização, no mundo dos fatos, do propósito abrigado na Constituição. Quais seriam, então, os fins visados pelo art. 226? Parece inequívoco que a finalidade da norma é garantir a proteção das famílias como instrumento para a própria tutela de seus membros. Como já se expôs, se o Estado tem como principal meta a promoção de uma vida digna a todos os indivíduos, e se, para tanto, a família desempenha um papel essencial, é natural concluir que o dever estatal de proteção não pode se limitar às famílias constituídas pelo casamento, estendendo-se a outras entidades familiares igualmente formadas pelo afeto e pelo desejo de comunhão de vida, e igualmente capazes de contribuir para o desenvolvimento de seus integrantes. Daí poder-se concluir que a Constituição impede a discriminação entre indivíduos unicamente como resultado do tipo de entidade familiar que formam. Todos os indivíduos, sejam eles cônjuges ou companheiros, têm direito a igual proteção legal.

Em terceiro lugar, a interpretação histórica do dispositivo constitucional aponta para o mesmo resultado. A partir dos anais da Constituinte de 1987/1988, percebe-se que a inspiração da norma do art. 226 da CF/1988 foi inclusiva, e não segregativa. Não se buscou dividir as famílias em classes de primeira e segunda ordem. Muito pelo contrário, o objetivo foi ampliar a proteção estatal às diversas configurações familiares (biológicas e afetivas) existentes de fato na sociedade, mas juridicamente desamparadas até então. Tudo isso com o objetivo de assegurar que todos possam ser igualmente respeitados e protegidos, independentemente da formalização de suas uniões pelo matrimônio. Nesse sentido, a defesa de uma hierarquia entre casamento e união estável vai de encontro à vontade originária do constituinte, em nítida interpretação involutiva.

Por fim, a interpretação sistemática traz uma importante contribuição para a análise do ponto. Como se sabe, o sistema constitucional, como qualquer outro, pressupõe unidade e harmonia. A interpretação sistemática situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo a conexão própria com outras normas, de modo a evitar contradições e antinomias. No caso em exame, cabe verificar as interações entre o caput e os parágrafos do art. 226, bem como de outros dispositivos constitucionais que tratam dos papeis da família.

Ainda segundo o Ministro Barroso, o art. 1790 do CC, além de inconstitucional por gerar uma indevida hierarquia entre entidades familiares, também o é por atentar contra os princípios da dignidade da pessoa humana, tanto na dimensão de valor intrínseco, quanto na dimensão da autonomia, o princípio da vedação ao retrocesso, e o princípio da proporcionalidade pela proteção deficiente conferida ao companheiro pelo Código Civil.

Por fim, o Ministro decidiu da seguinte forma:

Ante o exposto, dou provimento ao recurso para reconhecer de forma incidental a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002, por violar a igualdade entre as famílias, consagrada no art. 226 da CF/1988, bem como os princípios da dignidade da pessoa humana, da vedação ao retrocesso e da proteção deficiente. Como resultado, declaro o direito da recorrente a participar da herança de seu companheiro em conformidade com o regime jurídico estabelecido no art. 1.829 do Código Civil de 2002.

O Ministro Fachin votou com o Relator, o Ministro Barroso, afirmando:

Tal qual acutíssimamente posto no voto do Ministro Roberto Barroso, a hermenêutica constitucional conduz a uma equiparação, em prestígio ao princípio da isonomia (art. 5º, I, e art. 226, §3º, da Constituição da República), dos regimes sucessórios dos cônjuges e companheiros, de modo a reconhecer-se, incidentalmente, no presente recurso extraordinário, a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002.

Da mesma forma, o Ministro Teori Zavascki acompanhou o relator, afirmando:

Substancialmente, há aqui, parece-me, nessa discriminação, uma irrazoabilidade que não é compatível com a Constituição. Então, eu vou acompanhar o Relator, o Ministro Luís Roberto, inclusive quanto à formulação da tese e à modulação de efeitos.

A Ministra Rosa Weber acompanhou também o relator, e levantou estatística relevante relacionada a dados do IBGE de 2012. Ipsis litiris:

Oportuno destacar, aqui, dados do IBGE de 2012 (os recentes números igualam as uniões decorrentes de casamentos e/ou uniões estáveis), reveladores de que em dez anos o número percentual de pessoas em relações estáveis subiu de 28,6% para 36,4%, representando o equivalente a 1/3 do número de casamentos no país, enquanto reduzido o percentual de pessoas unidas através do casamento civil e religioso (49,4% para 42,9), do casamento apenas religioso (4,4% para 3,4%), e do casamento apenas civil (17,5% para 17,2%). Com relação às pessoas do mesmo sexo, em 2014, foram registradas 4.854 uniões, representando um aumento de 31% em relação aos números registrados no ano anterior, sendo 50,3% entre mulheres, e 49,7% entre homens. Relevantes, igualmente, os números relativos ao divórcio 5 e aos “recasamentos ” , que potencializam a união entre pessoas de qualquer sexo, uma vez que a tendência humana, como seres gregários, é a de se unirem em novas relações que precisam ser reguladas, considerando, ainda, a morte como elemento inafastável da vida.

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Na construção de seu voto, a Ministra relembra o quadro evolutivo dos direitos das mulheres no Brasil, ressaltando a grande influência do Direito Português, do Direito Romano e do Direito Germânico no desenvolvimento do Direito Civil brasileiro no Século XX. A Ministra ressaltou o árduo caminho percorrido pelo Direito das mulheres no que tange à igualdade entre elas e os homens.

No que tange ao art. 1790 do CC/02, a Ministra cita Sílvio de Salvo Venosa[7], afirmando que

o art. 1.790 do Código Civil transmite a impressão de que o legislador teve “rebuços” em classificar o companheiro ou companheira como herdeiros, no intuito de “evitar críticas sociais”, valendo-se de eufemismo para dizer que “o consorte da união estável ‘participará’ da sucessão, como se pudesse haver um meio termo entre herdeiro e ‘mero participante’ da herança. Que figura híbrida seria essa senão a de herdeiro!”

Ademais, a Ministra continua afirmando que

O dispositivo normativo previsto no art. 1.790 do Código Civil, além do vício da inconstitucionalidade, também padece de outras insuficiências, como aponta a doutrina, até por não prever uma situação corriqueira, qual seja, a existência tanto de filhos comuns quanto de filhos de um só dos companheiros. Em interpretação literal da norma, se o companheiro (a) supérstite concorrer na sucessão com filhos comuns do casal, ele (a) herdará por igual, tendo direito a uma cota equivalente à atribuída ao filho, mas, se por outro lado, houver concorrência com descendentes somente do (a) autor (a) da herança, exclusivos dele (a), terá direito apenas à metade do que couber a cada um deles. Já para a hipótese de hibridismo, quando há concorrência tanto de filhos comuns quanto de filhos de apenas um dos companheiros, o Código não apresenta solução.

A Ministra conclui seu voto com a seguinte observação:

A pergunta que precisa ser feita, a propósito, refere-se à razoabilidade da distinção que desiguala (e, portanto, inserida a discussão no campo do princípio da igualdade) a sucessão entre companheiros e cônjuges. De uma maneira relativamente singela, observo que ambas são entidades familiares, ainda que em um caso as formalidades sejam maiores, mas o que está em evidência é o fato de que ambas são consideradas família, segundo o art. 226 da Constituição.

A partir desta observação, não se encontra motivo razoável para tratar de maneira desigual tais entidades familiares, inocorrente permissão constitucional para privilegiar o casamento em confronto com a união estável. Anoto que a Constituição de 1988 é anterior ao Código Civil em vigor, datado de 2002, mas o núcleo central deste reside na década de 1969, data de nomeação de Miguel Reale para coordenar o projeto de modificação do código.

Seguindo, votou o Ministro Luiz Fux, que acompanhou integralmente o voto do Relator Barroso, e da mesma forma votou o Ministro Celso de Mello e a Ministra Carmem Lúcia.

Através de Voto-Vista, o Ministro Dias Toffoli entendeu ser Constitucional o art. 1790 do Código Civil. O Ministro entendeu não haver falta de igualdade entre cônjuge e companheiro, considerando que casamento é uma coisa e união estável é outra, o que autorizaria a diferença de regimes jurídicos. Neste sentido, o Ministro afirmou:

Há que se garantir, portanto, os direitos fundamentais à liberdade dos integrantes da entidade de formar sua família por meio do casamento ou da livre convivência, bem como o respeito à autonomia de vontade para que os efeitos jurídicos de sua escolha sejam efetivamente cumpridos.

Além disto, o Ministro afirmou existir sim justificativa para a distinção, citando a exposição de motivos do art. 1790, que diz:

as diretrizes imprimidas à elaboração do Projeto, fiéis nesse ponto às regras constitucionais e legais vigorantes, aconselham ou, melhor dizendo, impõe um tratamento diversificado, no plano sucessório, das figuras do cônjuge supérstite e do companheiro sobrevivo, notadamente se ocorrer qualquer superposição ou confusão de direitos à sucessão aberta.

Ademais, o Ministro ainda afirmou que

Certo é que a norma civil apontada como inconstitucional não hierarquizou o casamento em relação à união estável, mas acentuou serem eles formas diversas de entidades familiares, nos exatos termos da exegese do art. 226, § 3º, da Constituição Federal.

E concluiu afirmando:

Havendo, no futuro, efetivas e reais razões fáticas e políticas para a alteração dessa norma, o espaço democrático para esses debates há de ser respeitado, qual seja, o Congresso Nacional, onde deverão ser discutidas as alternativas para a modificação da norma e seus respectivos impactos no ordenamento social.

O Ministro Marco Aurélio, relator do RE 646.721, também votou pelo não provimento do Recurso Extraordinário, acompanhando o voto do Ministro Dias Toffoli. O Ministro, assim como Toffoli, entende que em momento algum a Constituição equipara os dois Institutos, sendo que o único ponto comum entre os dois é o fato de serem entidades familiares. O Ministro ainda afirma que:

Presentes as balizas constitucionais, o Código Civil, bem ou mal, disciplinou tratamentos jurídicos correspondentes, não cabendo ao intérprete substituir a opção do legislador para igualá-los, onde a Carta da República não o fez. Conforme consignado pelo ministro Dias Toffoli, em voto-vista proferido no exame do extraordinário de nº 878.694, relator o ministro Luís Roberto Barroso, em 30 de março de 2017, a questão foi objeto de debates pelo legislador quando da tramitação do projeto.

O Ministro se pauta, assim como Toffoli, na exposição de motivos dos legisladores ao elaborarem o Código Civil, que optaram por diferenciar a União Estável do Casamento, afirmando que o número de matrimônios é maior que o número de uniões estáveis existentes, atribuindo aos dispositivos do Código Civil que tratam da união estável um caráter tutelar, protegendo o que consideram ser uma Institucionalização de um costume.

Ademais, Aurélio continua, afirmando que:

A sucessão do companheiro, destarte, não pode ser considerada menos ou mais vantajosa, por exemplo, pelo fato de que ele herda dos bens adquiridos a título oneroso durante a convivência, ao passo que o cônjuge herda dos bens particulares do falecido. Tudo dependerá do modo como o patrimônio foi conquistado. O legislador, ao regulamentar a sucessão na união estável, adotou um critério diferente do utilizado para o casamento: neste, o propósito foi não deixar o cônjuge desamparado, quando não tivesse direito à meação, naquela, foi permitir que o companheiro herdasse apenas do patrimônio para cuja aquisição tenha contribuído. São critérios diversos, sem dúvida, mas não necessariamente melhores ou piores entre si. Talvez não tenham sido a escolha mais adequada que o legislador poderia ter tomado (e com certeza não são critérios perfeitos), mas também não podem ser considerados, por este único motivo, inconstitucionais.

O Ministro encerra seu voto firmando ser Constitucional o art. 1790 do CC, pautando-se também no princípio da autonomia da vontade, afirmando que a equiparação dos institutos seria violação a este princípio.

Vencidos os Ministros Dias Toffoli e Marco Aurélio, o STF deu provimento ao RE, fixando a seguinte tese: “É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002.”

Antes da análise do voto dos Ministros, cumpre mencionar como votaram no RE 646.721, no qual firmou-se tese idêntica ao julgamento do RE 878.694.

O RE 646.721, teve como relator o Ministro Marco Aurélio, que cuidou de transferir seu entendimento deste para o RE 878.694, que votou pelo não provimento do recurso pelos motivos expostos acima. O Ministro Barroso levantou divergência, votando pelo provimento do recurso, sendo acompanhado pelo Ministro Luiz Fux, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber, e pela Ministra Carmem Lúcia.

O Ministro Ricardo Levandowski acompanhou o voto do Ministro Marco Aurélio, afirmando que no caso deveria ser dada interpretação segundo o princípio do in dubio pro legislatore, afirmando que o legislador diferenciou os dois Institutos ao afirmar no parágrafo 3º do art. 226 da Constituição que a conversão da união estável em casamento deveria ser facilitada.

Por fim, foi provido o recurso, firmando a tese de que: “É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002”, tese idêntica à firmada quando do julgamento do RE 878.694.

6.1 Análise Constitucional dos Votos e Participação do Instituto Brasileiro do Direito de Família e da Associação de Direito de Família e das Sucessões

 Para que seja feita uma análise constitucional dos votos, é imprescindível a análise do que afirmam o IBDFAM e a ADFS quando participaram como amicus curiae nos Recursos em análise, e é o que passará a ser apresentado, para posteriormente ser possível a referida análise.

O IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, presidido pelo doutrinador Rodrigo da Cunha Pereira, na oportunidade, representado pelos procuradores Maria Berenice Dias e Ronner Botelho Soares, pleitearam seu ingresso como amicus curiae em ambos os Recursos, aqui objeto de análise, firmam entendimento no sentido de que a diferenciação entre os regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros é inconstitucional uma vez que haveria hierarquia entre cônjuges e companheiros firmada pelo Código Civil, pelo que é inconstitucional o art. 1.790 do CC.

A ADFS – Associação do Direito de Família e das Sucessões, representada por sua presidente Regina Beatriz Tavares da Silva também requereu seu ingresso como amicus curiae em ambos os REs, de modo diverso, entende ser constitucional o art. 1790 do CC, tendo em vista que a Constituição Federal não vedou a referida diferenciação no que tange a diversidade de direitos sucessórios, entendendo que o princípio da liberdade e autonomia da vontadade deve ser observado, afirmando, ainda, que em muitos casos a união estável funciona como uma preparação para o casamento.

Como já debatido muitas vezes ao longo deste trabalho, a hierarquização das entidades familiares é violação fatal à Constituição Federal que busca eliminar a hierarquização havida antes de sua promulgação, como a que se dava entre o casamento e a própria união estável ao longo da evolução do Direito de Família. E é nessa ideia que se pauta o Ministro Barroso defender que a distinção no âmbito do Direito Sucessório seria uma afronta ao art. 226, afirmando em seu voto que “parece inequívoco que a finalidade da norma é garantir a proteção das famílias como instrumento para a própria tutela de seus membros.“

O Ministro Barroso afirmou que além de atentar contra a proteção a família, tal distinção atentaria contra a própria dignidade da pessoa humana, e além disto, nas palavras do Ministro Fachin, a distinção entre cônjuge e companheiro firmada pelo Código Civil de 2002 atentaria contra o princípio da isonomia.

A Ministra Rosa Weber, em seu voto, demonstrou, pautada em estatísticas do IBGE que o número de uniões Estáveis vem aumentando consideravelmente, com a consequente queda do número de casamentos.

Analisando a estatística do IBGE, Censo de 2010[8], demonstra também um aumento no número de divorciados, passando de 1,7% para 3,1%, representando quase o dobro.

Ademais, observando-se as Estatísticas do Registro Civil de 2016, levantadas pelo órgão, em 2016 foram registrados 1.095.535 (um milhão, noventa e cinco mil e quinhentos e trinta e cinco) casamentos, representando uma queda de 3,7% quando comparado com 2015, sendo que em 20 das 27 Unidades da Federação houve redução no número de registros de casamentos. (https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/135/rc_2016_v43_informativo.pdf)

Esta queda demonstra que o casamento, que antes era a principal fonte de constituição de família vem perdendo força ao longo dos tempos, e como podemos perceber pelo voto da Ministra, o número de uniões estáveis vem aumentando, representando, quando do estudo, 1/3 do número de casamentos existentes.

Se o número de Uniões Estáveis vem aumentando e o de casamentos diminuindo, o argumento da ADFS, no sentido de que a União Estável representaria uma preparação para o casamento, não merece prosperar. O que percebe-se através da própria pesquisa do IBGE é que, se considerado proporcionalmente, as pessoas tem preferido manter Uniões Estáveis a casamentos.

A Ministra Weber retoma a ideia defendida pela doutrina estudada no sentido de que o Código Civil de 2002 tem bases em 1969, o que teria feito com que ele já nascesse com ideias ultrapassadas, pelo que apontou a irrazoabilidade da distinção entre cônjuges e companheiros no que tange ao regime sucessório.

Os Ministros Dias Toffoli, Marco Aurélio e Lewandowski votaram, em ambos os recursos extraordinários, pela constitucionalidade do dispositivo legal. Os Ministro se pautam basicamente no princípio da liberdade, da autonomia da vontade entre os pares e no argumento de que em momento algum a Constituição Federal equiparou os dois Institutos, e por isso é plenamente possível a distinção gerada.

Um dos argumentos do Ministro Marco Aurélio é o de que o número de casamentos é superior ao de uniões Estáveis. Realmente, o número é maior, mas como já dito, enquanto o casamento vem perdendo forças, as uniões Estáveis vêm ganhando força, já equivalendo a 1/3 do número de casamentos, além de o crescimento proporcional ser bem superior, considerando que enquanto as uniões aumentam, os casamentos diminuem de número.

Diante dos votos narrados, podemos perceber que enquanto os Ministros que votaram pela Inconstitucionalidade do art. 1790 do CC defendem que a distinção violaria o princípio da dignidade da pessoa humana uma vez que violaria a proteção à família, desprotegendo o companheiro para proteger o Cônjuge, os que votaram pela Constitucionalidade do referido dispositivo afirmam que igualar companheiros e cônjuges atentaria contra o princípio da autonomia da vontade. Se assim o fosse, estaríamos diante de uma colisão entre dois princípios: de um lado o princípio da dignidade da pessoa humana; do outro, o da autonomia da vontade, e isso seria impossível, considerando que o princípio da autonomia da vontade decorre do princípio da dignidade da pessoa humana, assim como o princípio da proteção à família. Como assevera Celso Antônio Bandeira Mello (2013, p. 54),

Princípio (...) é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.

Álvaro Villaça Azevedo, sobre o princípio da autonomia e da liberdade expõe:

Esta concepção demonstra que a autonomia e a liberdade integram a dignidade. Assim, cada direito fundamental contém uma expressão da dignidade, isto é, de autonomia e de liberdade. O direito à vida garantido constitucionalmente no art. 5º, caput, CF/88, por conseguinte, pressupõe não apenas o direito de existir biologicamente. Se o direito à vida é um direito fundamental alicerçado na dignidade humana, a vida assegurada pela Constituição é a vida com autonomia e liberdade. (2010, p. 13)

No Direito de Família, o Princípio do respeito da dignidade da pessoa humana representa-se como mecanismo de manutenção e proteção à família e proteção à integridade dos membros desse grupo, a partir da condição de respeito e da manutenção dos direitos de personalidade (VILAS-BÔAS, 2010).

Então, se o princípio da dignidade da pessoa humana deve servir como proteção à família, não se pode, com base nos princípios da autonomia da vontade e/ou o princípio da liberdade promover uma distinção que vá prejudicar de alguma forma uma entidade familiar em detrimento da outra. Aí seria como o legislador afirmar: já que você escolheu, e o fez por que o quis, se você for prejudicado por isso o problema é seu, já que existe outra forma melhor de constituir família. Se assim o for, há sim uma hierarquia entre as entidades familiares, o que torna acertada a decisão do STF quanto a igualar os efeitos do direito sucessório à cônjuges e companheiros a fim de evitar prejuízos no âmbito da proteção à família, que é considerada pela Constituição Federal a base da sociedade.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARRASCO, Erick Gonçalves. O direito sucessório na união estável:: análise civil-constitucional acerca do direito sucessório do companheiro supérstite. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5720, 28 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71209. Acesso em: 18 mai. 2024.

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