O direito de resistência e desobediência civil como instrumento da cidadania

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20/01/2019 às 15:48
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Em que medida o direito de resistência e a desobediência civil podem ser qualificados como direito fundamental? Afinal, não é o povo o legítimo detentor do poder?

 Introdução

Desde os primórdios dos tempos o homem, através das primeiras formas de agrupamento, passou a ter certa organização e ele, por sua própria natureza, tende a aceitar algumas coisas e a rejeitar a outras. Baseados no direito natural e no senso comum de justiça as pessoas entendem que certas normas ou procedimentos não são adequados e assim resistem à implantação dos mesmos.

Gandhi, Luther King e Henry Thoreau, por exemplo, foram homens que reconheceram as prerrogativas da ordem estatal, desde que rejeitados os atos considerados abusivos, contra os quais caberia a resistência civil como instrumento de conquista de direitos. Eles, além da teoria, contribuíram com suas experiências práticas, dando a vida pela causa que defendiam. Necessário se faz ressaltar que, em muitos assuntos, há bons teóricos que nada têm a ver com o que pregam.

É muito comum encontrar-se homens que servem tão bem ao sistema e ao governo que chegam a receber reconhecimentos de medalhas e as exibem como se fossem as melhores gratificações existentes. Infelizes, esquecem que as medalhas, na verdade, nada valem, porque o reconhecimento verdadeiro não existe, ele apenas é usado para defender o interesse do sistema e os homenageados sentem-se honrados sem contribuir com nada para a sociedade, pelo contrário, na maioria das vezes, recebem esse “fingido reconhecimento” por trabalhos desastrosos para a sociedade.

Será levado em consideração o exemplo de homens que lutaram por seu povo e por suas convicções (Martin Luther King Jr., Mahatma Gandhi), bem como a obra de Henry Thoreau. Do Brasil, além de artigos e ensaios de pesquisadores, foram utilizadas para a pesquisa, sobretudo, as obras de Nelson Nery Costa, Machado Paupério e Maria Garcia.

Neste trabalho visa-se resolver ao seguinte problema: As manifestações e objetivos da desobediência civil, analisando-se os requisitos que a norteiam, podem ser aplicados à realidade brasileira, à luz da Constituição Federal de 1988? Caso possam, destinam-se de modo eficiente à busca pela cidadania como direito fundamental?

Esse artigo pretende demonstrar a relação direta existente entre a desobediência civil e a cidadania na influência do ordenamento jurídico brasileiro. Justifica-se a importância desse tema para a conservação do Estado Democrático de Direito que é fruto de uma duradoura conquista que ainda não se estagnou no espaço e tempo. Nesse sentido, o Estado deve conceder aos indivíduos, por ele governados, a participação política e o pleno exercício da cidadania, verdadeira condição para o exercício dos poderes sociais e políticos do cidadão frente ao Estado (Poder Público) devendo, para tanto, acatarem aos limites constitucionais estabelecidos como fundamento para o exercício do direito de desobediência civil. Verifica-se a importância da discussão, também em âmbito legislativo, visto que em nosso ordenamento não há lei expressa referente ao tema.

A metodologia utilizada desdobra-se teoricamente na técnica da pesquisa bibliográfica e no apoio de artigos científicos e sites especializados.


Direito de Resistência: Aspectos Históricos

PAUPÉRIO (1978, p. 11-13), fornece-nos o conhecimento histórico acerca do direito de resistência como resultado da insuficiência de sanções jurídicas direcionadas aos governantes que ultrapassassem os limites do poder, a eles outorgado pelos governados:

Frequentemente as sanções jurídicas organizadas contra o abuso do Poder não são suficientes para conter a injustiça da lei ou dos governantes, pois, estes, quando extravasados de seus naturais limites, muitas vezes não podem ser contidos por normas superiores que já não respeitam. Por isso, reconhece-se aos governados, em certas condições, a recusa da desobediência.

Ele identifica na recusa à obediência um tríplice aspecto: a oposição às leis injustas, a resistência à opressão e a revolução. Pela oposição às leis injustas, explica, concretiza-se a repulsa de um preceito determinado ou de um conjunto de prescrições em discordância com a lei moral – essa resistência é de iniciativa individual ou de um grupo limitado; pela resistência à opressão concretiza-se a revolta contra a violação, pelos governantes, da ideia de direito do qual o Poder procede, cujas prerrogativas exercem. Pela revolução, concretiza-se a vontade de estabelecer uma nova ordem em virtude da falta de ressonância da ordem vigente na sociedade.

Na primeira hipótese, está em jogo a relação entre duas regras; na resistência à opressão, é a atitude dos governantes por correlação com a ideia do direito que lhes legitima a autoridade e na última hipótese, a revolução, a oposição entre duas ideias de direito. Procurando localizar as raízes históricas do direito de resistência, Machado Paupério registra o Código de Hamurabi que previra a rebelião como castigo ao mau governante que não respeitasse aos mandamentos e as leis. Na Grécia fica o registro de Sófocles, na sua obra mais famosa, Antígona, de que há certas leis não escritas, superiores a todas as outras, mediante as quais se concede a possibilidade de desobedecer às demais, quando forem colidentes. Essa peça grega mostra-nos, no diálogo travado entre Ismene e Antígona, a revolta desta contra o decreto do rei Creonte que não deixara sepultar seu irmão Polinice. Em Roma, comenta, nenhuma doutrina se encontra a respeito, mas vem consignar, na Idade Média, um registro de nota. PAUPÉRIO (1978, p. 41):

Das conhecidas questões de Farinaccius (nº XII, 88-91) depreende-se, aliás, que já o direito romano não desconhecia inteiramente a legalidade da resistência. Caso o magistrado, faltando à justiça, já não se reputa magistrado e passa a não ser mais que um sujeito particular, do mesmo modo como nos é dado resistir à violência que qualquer particular nos faz, lícito semelhante nos será também resistir à injustiça do magistrado e seus oficiais, pois, obrando injustamente, não têm, repito mais autoridade que se meros particulares fossem.

Conclui PAUPÉRIO (1978, p.77), que a Idade Média reconhecera sempre que o dever de obediência dependia da legitimidade da ordem dada e o direito de resistência, ainda que pelas armas, seria válido quando a ordem vigente perdesse o reconhecimento (da sociedade) que lhe legitimava a autoridade, considerando-se meros atos de violência quaisquer injunções impostas através da força.

Já COSTA (1990), refere o direito de julgar as ações do governo, levando suas origens à teoria política Tomista, pela qual o homem, aristotelicamente considerado animal social e político, necessita de um governo, pois se: “entre os membros de um corpo, um é o principal, que a todos move como o coração, ou a cabeça, cumpre, por conseguinte, que em toda multidão haja um regitivo. Daí o dever de obediência ao soberano: esta ordem das coisas, todavia, podia ser considerada injusta. Neste caso, o súdito não poderia agir individualmente, já que não se devia “proceder contra a perversidade do tirano por iniciativa privada, mas sim pela autoridade pública” – ou seja, as medidas necessárias a se evitar um governo injusto “dependiam do próprio poder público: a institucionalização da hereditariedade, que garantia a unidade do território; a organização das cortes em seções especializadas e o Parlamento, que expressava as forças sociais dominantes.”

Conforme PAUPÉRIO (1978, p. 69-70), algumas análises na obra de Tomás de Aquino entendem que ele reconhecia o direito de resistência, partindo do pressuposto de que “o levante contra o tirano não chegava a constituir sedição, mas a resistência ou a repressão da repressão da sedição”.

Para LAFER (1998), a teoria Tomista potencializa um direito de resistência quando contempla uma reação, um direito de revolução contra um regime tirano que ultrapasse o terreno da reciprocidade existente entre governantes e governados, isto é, que desequilibre esta relação.

De maneira diversa entende COSTA apud. PAUPÉRIO (1997), ao afirmar que em Tomás de Aquino o dever de obediência deriva da necessidade de se criar um Estado organizado, capaz de empreender um governo que mantivesse os homens em paz. Assim, mesmo em situações injustas promovidas pelo tirano devia-se a ele o dever de obediência para evitar males maiores, como a anarquia, por exemplo. PAUPÉRIO (1997, p.55) define que, “se não for [...] excessiva a tirania, aconselha Santo Tomás a não investir contra ela, pois é preferível tolerá-la branda por algum tempo a expor-se a perigos mais graves que a própria tirania.” Em vez da resistência, defendeu mais diretamente “o direito de julgar as ações dos governos”. Somente se permite resistir quando for o melhor para o bem comum da sociedade; quando necessário para a proteção da ordem social conforme as exigências da natureza humana. A ideia da injustiça e justiça estaria vinculada à ideia de uma lei natural escrita por Deus na natureza física e social, a qual o homem poderia captar através da razão. Já a lei humana se apresenta como produto dos homens em sociedade, mas que por ter sua inspiração na lei natural deverá ser obedecida. Na visão Tomista o direito de resistência só seria legítimo quando a tirania fosse excessiva, e tal resistência contra o tirano não deveria consistir numa iniciativa particular, mas sempre pública (coletiva), desde que esgotados todos os outros meios.

Conforme (COSTA, 1990), há registros históricos do direito de resistência em dois institutos da idade média. O primeiro refere-se ao dever de fidelidade germânica, a commendatio que estabelecia os limites da relação entre os senhores e vassalos. Estes deveriam obedecer fielmente àqueles, mas havendo violações aos limites obrigacionais, por parte dos senhores, gerava-se o direito de resistir por parte dos vassalos. O segundo, beneficium, “determinava aos tiranos que se orientassem pelos fundamentos do cristianismo, estabelecidos pela igreja, sob pena de sofrerem uma desobediência justificada.”

Com o advento do iluminismo, a racionalidade invade o mundo moderno, em todas as suas manifestações. Nesse contexto é proposta uma teoria racional para o nascimento do Estado, denominada contratualismo, conforme BOBBIO, BOVERO (1996). De acordo a esse mito fundante, os homens viviam livres e iguais no estado de natureza, local onde possuíam direitos natos e imutáveis. No entanto, devido à precariedade, insuficiência ou guerra – a depender da abordagem – que os indivíduos se encontravam no estado de natureza, um estado negativo, levou-os a constituírem a sociedade política e o Estado através de um pacto, um contrato. Vista sob este ângulo, a sociedade se legitima no consenso.

A construção foi colocada por John Locke com máxima precisão. Para este, no momento da passagem para a sociedade civil, os indivíduos alienaram uma parcela de sua liberdade a um poder centralizado, que teria a função de protegê-los e garantir aos mesmos um tranquilo uso de seus direitos, sobretudo o uso da propriedade privada. Tem-se assim, que o consentimento dá legitimidade ao governo e gera um grau de reciprocidade entre este e o povo, resultando na relação civil entre governante e governados. Estes devem, ao primeiro, obediência enquanto aquele deverá respeitar os direitos essenciais dos governados, tais como a liberdade, propriedade e vida, sob pena de estar degenerando a sociedade civil. Segundo BOBBIO (1997), a falta de liberdade, a conquista, a usurpação, a tirania ou a dissolução do governo, proporcionaria uma crise da sociedade que tornaria possível um retorno ao estado de guerra. Ou seja, segundo NODARI (1999, p. 154):

A violação deliberada da propriedade (vida, liberdade, bens) e o uso contínuo da força [...] colocam o governo em estado de guerra contra a sociedade e os governantes em rebelião contra os governados, conferindo assim o legítimo direito ao povo de resistência à opressão...

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A importância de Locke na construção do instituto de resistência ganha enorme importância, haja vista o fato do mesmo ter sido um dos principais mentores da estrutura estatal-burguesa, enfatizando a liberdade e a propriedade como valores máximos a serem opostos contra o Estado protegidos de sua ingerência autoritária. John Locke afirma que no estado de natureza cada homem é juiz de suas próprias causas e, por serem os homens imparciais e buscarem seu próprio interesse, a lei natural não é suficiente para suprir essa necessidade jurisdicional. “O fim maior e principal para os homens unirem-se em sociedade e submeterem-se a um governo é, portanto, a conservação de sua propriedade” (LOCKE, 1998).

Conforme (BOBBIO, 1997, p. 239):

Como a sociedade civil nasce de uma crise no estado de natureza, a sua crise torna possível o retorno àquele estado. Locke admite, dessa forma, o direito de resistência em determinadas situações como quando o governo subverte as causas para as quais foi criado e se ofende a lei natural.

Em Hobbes BOBBIO, BOVERO (1996 p.81-82), devido ao caráter totalitário do Estado, apenas a vida não é alienada ao mesmo no momento do contrato. Segundo a visão absolutista de Hobbes, ainda que o Estado, na figura do soberano, não conseguisse garantir a paz e a vida de seus súditos, o mau governo acarretaria, não num fundamento à resistência dos súditos, mas no retorno da sociedade civil ao estado de natureza.

Aos poucos o jusnaturalismo moderno passa a depositar no indivíduo a razão de ser do Estado e do direito, construção que culmina na positivação constitucional do direito de resistência à opressão BOBBIO (1992). Em consequência disso, surgem declarações de direitos que asseguram direitos individuais como a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que, em seu artigo 2º prescreve: “A finalidade de toda associação é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem; esses direitos são a liberdade, a segurança e a resistência à opressão.” Apud. Nelson N. Costa, (1990, p. 20).


Direito à Desobediência Civil: Histórico

O direito de resistência ganhou reconhecimento, ao longo da história, como um mecanismo eficiente diante das condutas opressivas dos governantes. Todavia, sua possibilidade de atuação era limitada, pois exigia como principal requisito a expressão da vontade da maioria (COSTA, 1990, p.25).

Os Estados Unidos da primeira metade do século XIX estavam em guerra contra o México. Henry David Thoreau, crítico da guerra e da escravidão, encontrou uma forma peculiar de resistir e protestar: decidiu não pagar os impostos porque considerava não ser justa a utilização dos impostos para financiar a escravidão e a guerra injusta contra o México. Thoreau é autor do ensaio “Desobediência Civil”, em que faz uma defesa da desobediência civil individual como forma de oposição legítima frente a um Estado injusto. A recusa ao pagamento de impostos levou Thoreau à prisão, mas o seu protesto consciente de resistência política tinha por objetivo fazer valer o seu direito de cidadania e interferir no processo de tomadas de decisões pelo Estado com o fito de manter a coesão social interna e em relação ao México. Com ele, pode-se dizer que o direito de resistência evoluiu para a categoria de desobediência civil, pela qual a minoria tinha possibilidade, quando oprimida, de enfrentar o governo na busca de melhores condições. Assim, deu maleabilidade e dinamismo à resistência, transformando-a em verdadeiro instrumento de cidadania, de modo que reencontrou sua capacidade de oposição à opressão COSTA (1990, p.5). Segundo ele, o critério da maioria, no qual se assenta a democracia, deve ser refutado em razão de não necessariamente se identificar com o senso de justiça. O motivo porque se permite a maioria governar encontra-se justamente em sua maior força física.

Assim, para THOREAU (1999, p. 13):

A razão prática porque se permite que uma maioria governe, e continue a fazê-lo por um longo tempo, quando o poder finalmente se coloca nas mãos do povo, não é a de que esta maioria esteja provavelmente mais certa, nem a de que isto pareça mais justo para a minoria, mas sim a de que a maioria é fisicamente mais forte.

Para ele, o caráter opressivo da lei não é atenuado pela proveniência democrática, calcada nas regras da maioria. O respeito à lei deve se firmar na consciência do indivíduo, de modo que a desobediência à norma, quanto esta se colide às consciências individuais, configura um dever ético do cidadão. Isto porque “A lei jamais tornou os homens mais justos e, por meio de seu respeito por ela, mesmo os mais bem-intencionados transformaram-se diariamente em agentes da injustiça (THOREAU, 1999).

Deste modo, a obediência às leis e práticas do governo não impunha a concordância que decorre da imposição da maioria sobre uma minoria, mas sim de uma avaliação individual que deveria negar a autoridade do governo quando este tivesse caráter injusto, não importando que fosse a expressão da vontade da maioria, visto que esta nem sempre agia da melhor maneira. Enfim, a desobediência demonstra-se como a única saída a ser adotada pelos indivíduos quando “se depararem com legislação e práticas governamentais que não procurassem agir pelos critérios da justiça, ou contrariassem os princípios morais do indivíduo” THOREAU (1999, p. 32).

Thoreau se propõe a resolver a seguinte indagação: “Leis injustas existem, devemos conter-nos em obedecer a elas ou esforçar-nos em corrigi-las, obedecer-lhes até triunfarmos ou transgredi-las desde logo?” THOREAU (1999, p. 23).

Conclui pelo dever de desobedecer, mesmo que disso resultasse o aprisionamento, que deveria ser encarado como mérito pessoal. Isto é, quando os governos agem injustamente fazem da prisão o único lugar digo para um homem justo THOREAU (1999, p. 31).

A prisão, neste caso, serviria para mobilizar a opinião pública a adotar a mesma atitude e o próprio governo a mudar a sua postura ARAUJO (1994).

Segundo COSTA (1990, p.33), Thoreau deu uma nova dimensão à resistência proposta pelos liberais, pois insere desobediência civil na tarefa de efetivação de reivindicações específicas. Afirma que a desobediência civil é o único caminho para democratizar o Estado liberal, por meio de reformas capazes de vigorar de maneira efetiva, mediante realizações especializadas e periódicas.

Mahatma Gandhi inspirou-se nas ideias de Thoreau para liderar a reação pacífica contra a dominação inglesa da índia. Gandhi introduziu novas noções ao conceito de desobediência civil, pois, para ele, a desobediência civil era um instrumento adequado à defesa dos direitos de cidadania, em todos os níveis, notadamente em face dos abusos do Estado e do capitalismo inglês. Duas premissas teóricas fundaram a sua concepção de desobediência civil, segundo apontamentos de MONTEIRO (2003), quais sejam: a) a desobediência passiva, por meio de movimentos de reivindicação não violenta; b) política de não cooperação pelos boicotes a determinados produtos a fim de atingir os interesses dos produtos capitalistas e conquistar direitos sociais.

As construções de Thoreau influenciaram o principal responsável pela independência da Índia, defensor fervoroso da desobediência civil, Mohandas Karamachad Gandhi. (1869-1948).

Para Gandhi, a desobediência era um direito inalienável do homem, sendo o seu exercício um eficaz meio de convencer o poder estatal quanto às injustiças e desacertos de suas políticas sociais. A proposta adotada por Gandhi se diferenciava da de Thoreau, no que tange a prever a desobediência civil como um ato coletivo, que tende ao sucesso quando realizado por um número expressivo de pessoas. Para ele somente a ahimsa ou, não-violência, seria uma atuação política profícua na conquista das mudanças necessárias em um mundo moldado sob a cultura da intolerância e do arbítrio LAFER (1988, p. 188).

Para Gandhi, a desobediência às leis consiste num mecanismo da cidadania para modificar, de modo pacífico, a ordem governamental e jurídica COSTA (1990, p.35).

Segundo COSTA (1990, p.42), Gandhi pregava que a resistência civil “é o meio mais eficaz de expressão da alma e de maior eloquência para protestar contra a manutenção do poder de um Estado nocivo.” Para Gandhi, a “desobediência civil é o direito imprescritível de todo cidadão. Ele não saberá renunciá-lo sem deixar de ser homem” GANDHI, apud Nelson Costa (1990, p.34). Suas ideias estavam direcionadas a acabar com a legislação discriminatória contra o povo da Índia, que estava sob domínio do Império Britânico ARAUJO (1994 p.14-17). Acreditava que a Índia não estava suficientemente preparada para a satyâgraha, resistência pacífica realizada através de protestos não violentos. Através de campanhas de desobediência civil e de não cooperação (asahayoh; por exemplo, boicotava a compra do produto inglês) exigia a saída das forças do Império Britânico. Eis que em 1948 todo este processo culminou na independência da Índia.

Martin Luther King foi o líder da resistência civil negra contra o racismo nos Estados Unidos – racismo que negava os direitos civis e políticos aos negros. Luther King exercia o direito de desobediência civil também de forma pacífica, eis que era a forma viável de oposição e resistência à insurreição e à violência. O fez em favor dos direitos da população negra dos Estados Unidos nas décadas de 50 e 60, época de intensa segregação racial em hospitais, escolas e restaurantes. Apesar da Constituição, estabelecer a igualdade de todos perante a lei, a segregação continuou, até mesmo no campo jurídico, somente em 1954 foi declarada a sentença de inconstitucionalidade da segregação nas escolas. Para King o terreno do judiciário, exclusivamente, se fazia insuficiente. Era necessária a construção de uma organização civil. Encontrou em Thoreau e Gandhi a chave para montar um movimento de resistência não-violenta. Considerava que a desobediência civil não realizada em nossa correspondente ao mais alto nível de protesto não violento. “Ela deveria ser aberta, e, acima de tudo, ser levada a cabo por grandes massas e completamente sem violência.” COSTA (1990, p.31).

O líder negro de reação pacífica à antissegregação racial teorizava que a desobediência civil era o mais alto nível de protesto não violento COSTA (1990, p.42), e, segundo MONTEIRO (2003, p.68), a reação radical e opressora, pelo governo, à desobediência civil em massa, tornaria ainda mais evidente a opressão e a injustiça exercidas pelas autoridades estatais. Dessas manifestações práticas de desobediência civil é possível sintetizar, teoricamente, duas acepções: uma, a desobediência individual consciente; outra, a desobediência civil coletiva qualificada.

Na primeira experiência vivida e difundida por Thoreau, o exercício do direito de desobediência expressa à prerrogativa de um direito civil individual, que é o direito de protestar, de reagir, de resistir às leis injustas e aos governos não democráticos que violam direitos civis. A segunda, expressa um direito transindividual, difuso ou coletivo de resistir ou de desobedecer de forma igualmente pacífica leis injustas (no todo ou em parte), bem como de reagir às injustiças e desacertos das políticas antissociais. Mesmo na sua face contratualista, em que a desobediência civil era cara ao pensamento liberal clássico, ela podia ser concebida como essencial ás liberdades, portanto, um direito fundamental do homem de resistir à opressão.

Isso está presente, inclusive, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) – a primeira carta universalista que positiva o núcleo dos direitos fundamentais. Destaca o Artigo 2º da declaração que a finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos imprescritíveis do homem, que são a liberdade, a segurança e a resistência à opressão.

Por outras palavras, hodiernamente, o direito de resistência à opressão corresponde à nova denominação jurídica: direito de resistência e desobediência civil como um legítimo direito à preservação dos direitos de primeira, segunda e terceira geração, conforme a clássica divisão oferecida por John Rawls.

Pode-se afirmar diante do que se expôs, que o direito à desobediência civil não consiste em ato de negação à ordem jurídica, mas, ao revés, em exercício de direito que visa precipuamente defender os direitos fundamentais da cidadania que estão albergados na ordem jurídica.

Feitas as considerações teóricas iniciais e traçada, de modo sucinto, a evolução histórica do direito de resistência, hoje denominado desobediência civil, exige-se, por quesito metodológico, a definição conceitual como forma de compreensão do núcleo teórico desse tema em epígrafe.

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Sobre o autor
Elicio Nascimento

Sou bacharel em Direito e fui aprovado no XXVI exame da OAB. Em breve atuarei como advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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