O direito de resistência e desobediência civil como instrumento da cidadania

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20/01/2019 às 15:48

Resumo:


  • O direito à desobediência civil é um direito fundamental que permite ao cidadão opor-se a leis injustas ou atos governamentais abusivos de forma pacífica e pública, baseando-se em princípios como soberania popular, cidadania, dignidade da pessoa humana, liberdade e democracia.

  • Este direito não necessita estar explicitamente codificado para existir, pois decorre do regime e dos princípios adotados pela Constituição Federal, como expresso no artigo 5º, § 2º, que reconhece direitos não enumerados, mas implícitos no sistema constitucional.

  • A desobediência civil se caracteriza por ser uma ação organizada, pacífica, pública e coletiva, que visa a alteração ou restauração de normas em conformidade com a justiça e os direitos fundamentais, diferenciando-se da desobediência criminosa e da revolução.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A Desobediência Civil e o Direito de Resistência: Conceituações.

Machado Paupério faz distinção entre direito de resistência e direito de desobediência civil. Para ele, o direito de desobediência engloba o direito de resistência porque, na acepção, desobediência é gênero do qual a resistência à opressão é espécie. A mesma linha teórica é adotada por Maria Garcia (2004, p. 257), para quem a desobediência civil é gênero da espécie direito de resistência. A autora afirma que a desobediência civil pode ser conceituada como uma forma particular de direito de resistência.  Já para (COSTA, 1990, p. 47), a desobediência civil deve ser considerada como uma evolução teórica e prática do direito de resistência, sendo, por conseguinte, a desobediência civil uma espécie de direito de resistência, este, como gênero. Tal posição é a adotada por este trabalho.

Independentemente da falta de consenso entre os autores, seja quanto ao gênero ou quanto à espécie qualificadora, pode-se afirmar que, no sentido geral, a desobediência civil é uma forma de protesto a um poder político constituído, seja o Estado ou não, desde que seja notadamente considerado opressor pelos “desobedientes”. 


 Conceito de Desobediência Civil

É de (LAFER, 1988, p. 200-201) o conceito de desobediência civil como a ação que objetiva a inovação e a mudança da norma por meio da publicidade do ato de transgressão, visando demonstrar a injustiça da lei:

Esta transgressão à norma, na desobediência civil, completa - é vista como cumprimento de um dever ético do cidadão – dever que não pretende ter validez universal e absoluta, mas que se coloca como imperativo pessoal numa dada situação concreta e histórica.

(THOUREAU, 1999), afirma que o Estado deve reconhecer o indivíduo como um poder superior e independente, do qual derivam o poder e a autoridade do Estado. Thoreau justificava a desobediência como o único comportamento aceitável para os homens, quando se depararem com legislação e práticas governamentais que não procurem agir mediante critérios de justiça ou contrariem os princípios morais dos indivíduos.

Segundo (GARCIA, 1994), a desobediência civil pode ser classificada como um direito fundamental, pois está diretamente ligada à concretização da cidadania. Constrói a justificativa da desobediência baseada na ideia de que a cidadania requer instrumentalização ampla e efetiva; portanto, o seu exercício não se exime de direitos e garantias expressamente expostos na constituição. Reforça a classificação da desobediência civil como um direito fundamental, ao citar o art. 1º parágrafo único da C.F/88 onde diz: “Todo poder emana do povo”. Diante deste dispositivo constitucional, defende a ideia de que o cidadão detém a soberania popular e, portanto, o poder de elaborar a lei e de participar da tomada de decisão, a respeito de seu próprio destino. Avança ainda mais em sua tese ao dizer que o cidadão, por conta do dispositivo constitucional supracitado, tem a prerrogativa de deixar de cumprir a lei ou desobedecer a qualquer ato de autoridade, sempre que o referido ato se mostre conflitante à ordem constitucional, direitos ou garantias, constitucionalmente assegurados.


Manifestações Práticas da Desobediência Civil

A negação de Henry David Thoreau a cumprir suas obrigações tributárias é um bom exemplo de manifestação prática de desobediência civil. Ele desobedeceu à lei de seu Estado com o intuito de protestar contra a guerra empreendida no México, na época financiada com os impostos da população, e contra a escravidão. Para Thoreau era moralmente inaceitável colaborar com um governo escravocrata que empreendia a violência contra os seus vizinhos. Ele pregava que o Estado desvirtuava até o homem mais bem-intencionado que a ele se submetia, quando o obrigava a servir ao exército e a financiar guerras mediante o pagamento dos seus impostos. Com suas ideias, Thoreau valorizou o homem, colocando-o num patamar acima do Estado, destacando os homens como seres dotados de consciência e de moral e não como um súdito cego que deve obediência incondicional ao Estado. Ao ser preso, por sua desobediência, Thoreau registrou diversas reflexões acerca do Estado na sua obra “A Desobediência Civil”, (THOREAU, 2002, p. 30) ele refletia:

Não pude deixar de sorrir perante os cuidados com que fecharam a porta e imaginaram trancar as minhas reflexões [...]. De fato, o perigo estava contido nessas reflexões. Já que eu estava fora de seu alcance, resolveram punir o meu corpo. [...] Percebi que o Estado era um idiota, tímido como uma solteirona, às voltas com a sua prataria, incapaz de distinguir seus amigos dos inimigos. Todo respeito que tinha pelo Estado foi perdido e passei a considerá-lo apenas uma lamentável instituição.

Mohandas Karamchand Gandhi desenvolveu uma filosofia de luta não violenta denominada satyagraha. A expressão é oriunda do sânscrito e pode significar “ater-se á verdade”. Gandhi foi um político que primou pela ética e pelo espírito de conciliação construtiva, mas firme na decisão de libertar o seu país. Ele defendia o uso da não cooperação pacífica, por isso defendia o uso de protestos pacíficos, greves, jejuns e boicotes aos produtos ingleses. Defendia que ninguém devia comprar produtos ingleses e sim produzir em casa o que fosse para a sua necessidade. Os britânicos quase faliram com a perda de um mercado importante para seus produtos (MARQUES, 2009).

Após marchar por 480 quilômetros, tendo saído ao alvorecer de 12 de março de 1930, em Ahmedabad, que Gandhi chegou em 6 de abril a Dandi, na costa oriental da Índia. Por lá, de maneira ilegal, extraiu sal do mar e leiloou uma pedra por 1.600 rúpias. Tal ato foi ilegal porque Gandhi estava desafiando o monopólio do governo colonial britânico sobre a extração do sal e a odiada taxação que incidia sobre o seu comércio.

Na ida para Ahmedabad, Gandhi partiu com 79 seguidores e um caminhão carregado com roupas tecidas a mão para dar aos pobres no caminho. Além de extrair o sal, eles pretendiam tomar eventuais estoques existentes, se a polícia permitisse. Ao chegar, Gandhi entrou no mar para um banho de purificação. Foi quando pegou uma pedrinha de sal. Antes, a polícia havia destruído os depósitos de sal deixados pela maré e misturaram lama ao sal.

Ram Das, filho de Gandhi, foi preso nesse mesmo dia por vender sal ilegalmente. A desobediência civil acabou por levar 60 mil pessoas à cadeia, dentre elas alguns líderes nacionalistas. Gandhi também foi detido em 5 de maio de 1930, no auge dos protestos em todo o país. Preso, ele se tornou um problema maior do que quando estava solto. E, apesar das divergências, entre hindus e muçulmanos, seu poder não parava de crescer. Com o tempo, a independência da Índia, conduzida no espírito do Satyagraha, foi inevitável. Finalmente, ela foi conquistada em agosto de 1947, conforme o registro do site Acervo O Globo (2013).

Eu tenho um sonho: o de que, um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos senhores de escravos poderão se sentar juntos à mesa da fraternidade.” Essa frase resume o famoso discurso intitulado: “Eu tenho um sonho”, proferido pelo líder negro na marcha em Washington ocorrida em Agosto de 1963 que, pacificamente, reuniu milhares (entre 200-300 mil) de manifestantes. Segundo (PINTO, 2018), Martin Luther King Jr. (1929- 1968) marcou um dos principais momentos da luta contra a opressão racial nos EUA. Filho de um pastor batista, King segui os passos do pai, também se transformando num pastor, chegando a angariar um doutorado em teologia pela Universidade de Boston em 1955.

Em 1964, aos 35 anos, tornou-se o mais jovem ganhador do Prêmio Nobel da Paz, em razão de sua luta contra a segregação racial nos EUA. A forma de luta pregada por Luther King era pacifista, inspirada na desobediência civil empreendida por Gandhi.

Na luta encabeçada por Luther King, destaca-se o boicote ao transporte coletivo da cidade de Montgomery no estado do Alabama. A responsável pelo início desse boicote foi Rosa Parks, que se recusou a ceder o seu assento no ônibus a um homem branco. No dia 1º de dezembro de 1955, Rosa foi presa. No dia seguinte ela foi solta, após Edgar Nixon, presidente da sede local do NAACP (Associação Nacional Para o Progresso de Pessoas de Cor), conforme o significado da sigla em inglês, pagar a fiança dela que custou o equivalente a atuais U$ 14,00 (quatorze dólares). Nixon e outros ativistas civis decidiram usar o caso de Parks para chamar a atenção do público à segregação racial vigente. O boicote durou 282 dias. Mais de 40 mil usuários negros do transporte público de Montgomery deixaram de utilizar os ônibus para a locomoção. Nesse período a liderança de Luther King se destacou. Em 1956, a Suprema Corte Norte Americana julgou inconstitucional a segregação racial em transportes públicos. Luther King apoiou inúmeras greves e marchas pacíficas. Entre 1957 e 1968, chegou a rodar cerca de seis milhões de milhar proferindo os seus discursos. Foi preso por mais de vinte vezes. As ações lideradas por Luther King resultaram ainda no direito ao voto dos negros no Alabama.

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Do Direito à Liberdade e Obrigatoriedade das Normas

Concernente aos seres humanos, enquanto tendentes a viver em sociedade, aplica-se a necessidade da edição de norma para a garantia da convivência entre os indivíduos, as quais devem, necessariamente, ser obedecidas.

Assim, a Constituição e as leis constituem garantias para o homem social, sobretudo às liberdades públicas. Historicamente, há concepções variadas acerca da ideia de liberdade, inclusive quanto à efetiva existência da mesma em relação ao homem no contexto social.

Garcia (2004, p.16) defende a liberdade enquanto um bem aspirado por todos os homens seja de modo consciente ou não. Para ela a liberdade é o direito dos direitos, o qual dá aos demais a razão de ser.

Já Mill (1859, p.33), assegura que a interferência de um homem na liberdade de outro pode ocorrer somente pela autoproteção da sociedade, ou seja, visando o interesse coletivo. Para o desenvolvimento das reflexões acerca da desobediência civil é fundamental a compreensão da liberdade como direito essencial para o exercício da cidadania e soberania popular. Do mesmo modo, é relevante a compreensão da relação entre obediência, autoridade e liberdade.

Garcia (2004, p. 43-50) resume o pensamento de Hannah Arendt, que diferencia a autoridade do poder, na medida em que atribui à primeira legitimidade, pois é reconhecida mediante uma validade social convencionada, enquanto ao segundo fixa uma atuação ilegítima na medida em que opera pelo uso da força ou violência.

Nesse contexto, o que difere a autoridade do poder é o reconhecimento social que legitima a obediência. Assim, a obediência à autoridade é um dever legal. Mas, com relação ao poder, a sociedade pode escolher entre oferecer a obediência ou se opor, já que a imposição do mesmo decorre do uso da força.

Desse modo, a autoridade existe apenas onde há legitimidade, de modo que a obrigatoriedade da obediência às leis decorre da legitimidade das mesmas. A existência de normas legítimas é necessária para a manutenção da liberdade dos indivíduos e da sociedade, ainda que importem na restrição a algumas condutas.

Conforme Locke (1994, p.50), a lei é condição da liberdade: “onde não há lei não há liberdade”. Para Montesquieu (2000, p.166), a liberdade política envolve “fazer o que se deve querer”, ou seja, num contexto social, liberdade consiste em poder fazer aquilo que a lei permite. Segundo Rosseau (2014, p.51), a vida em sociedade exige o sacrifício de todos os seus membros, de modo que um não pode violar o direito do outro. Assim, a liberdade não é incompatível com a autoridade. Logo, a obediência sem o uso da força ou violência, exceto em situações excepcionais, está diretamente relacionada à legitimidade da atuação do Estado, pois se verifica um grau de consenso na sociedade à mesma.

Por conseguinte, o direito de um Estado, legitimamente constituído, tem o condão de assegurar e compatibilizar a liberdade dos indivíduos ao interesse coletivo. Em razão disso, vale o enfoque às leis consideradas injustas. Como esse juízo de valor ocorre? Essa abordagem serve como fundamento para o exercício político dos cidadãos que se opõem a elas, mediante a aplicação prática da desobediência civil.       

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Sobre o autor
Elicio Nascimento

Sou bacharel em Direito e fui aprovado no XXVI exame da OAB. Em breve atuarei como advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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