O direito de resistência e desobediência civil como instrumento da cidadania

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20/01/2019 às 15:48

Resumo:


  • O direito à desobediência civil é um direito fundamental que permite ao cidadão opor-se a leis injustas ou atos governamentais abusivos de forma pacífica e pública, baseando-se em princípios como soberania popular, cidadania, dignidade da pessoa humana, liberdade e democracia.

  • Este direito não necessita estar explicitamente codificado para existir, pois decorre do regime e dos princípios adotados pela Constituição Federal, como expresso no artigo 5º, § 2º, que reconhece direitos não enumerados, mas implícitos no sistema constitucional.

  • A desobediência civil se caracteriza por ser uma ação organizada, pacífica, pública e coletiva, que visa a alteração ou restauração de normas em conformidade com a justiça e os direitos fundamentais, diferenciando-se da desobediência criminosa e da revolução.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A Importância dos Princípios da Soberania Popular e da Cidadania para a Fundamentação da Desobediência Civil.

A Constituição brasileira concebe a soberania popular e a cidadania como fundamentos da República Federativa do Brasil nos incisos I e II do artigo seu 1º. A soberania popular e a cidadania são princípios que norteiam o Estado Democrático de Direito, sem o qual tal Estado não teria fundamento. E são esses conceitos de tamanha importância par ao Estado Democrático que justificam a desobediência civil.

Dessa correlação, percebe-se que a desobediência civil não é sem importância, muito pelo contrário, é um instituto basilar para uma efetivação de direitos fundamentais garantidos ao cidadão. É através da resistência que o cidadão pode se opor a atos que contrariem a justiça, claro que não se deve negar a importância das vias judiciais para a resolução de conflitos, porém, quando estes faltarem ou se mostrarem insuficientes, a desobediência civil deverá ser acionada.

A soberania é a pedra angular da democracia de participação, assim se refere Bonavides (2003, p. 42). Além disso, é constitucionalmente assegurada no parágrafo único do artigo 1º “Todo poder emana do povo” e no artigo 14 “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos.” Não existem dúvidas quanto à importância que a soberania popular tem em relação à justificativa constitucional para a desobediência civil, porque se fundamenta no poder do povo como corpo político.

Monteiro (2003, p. 122) afirma que: “[...] a doutrina da soberania popular conferirá a fonte de todo poder político ao povo, povo como corpo, associação política fundadora do Estado, não admitindo qualquer exclusão da participação na formação da vontade geral.”

A cidadania conceitua Moraes (2002, p. 50) “[...] representa um status e apresenta-se simultaneamente como objeto e um direito fundamental das pessoas.”

Neste cenário, é fácil concluir que a desobediência civil aparece como um importante instrumento de freio às ações estatais abusivas ou às normas de natureza não democrática, justificadas através do princípio da cidadania adotado por constituições democráticas como a brasileira.

A desobediência civil é um recurso existente para os cidadãos lutarem contra lesões a seus direitos fundamentais, o cidadão e somente ele é quem tem o poder de exercer os direitos políticos em sua plenitude com o intuito de construir uma nova política e um novo Estado que se preocupe com o bem-estar da sociedade.

A cidadania vivenciada na atualidade, quando nos referimos ao Brasil, está ligada apenas ao voto que, abrindo-se um parêntese, é obrigatório, não refletindo plenamente a ideia de cidadania, pois esta passa pelas eleições, mas não pode se limitar a elas. A constituição é clara ao afirmar que todo poder emana do povo, então o que emana do povo não é apenas a possibilidade de eleger um candidato o que, infelizmente, ocorre na realidade brasileira atual.

Ressalte-se ainda que todo o poder, ou seja, toda a estrutura do Estado tem origem no povo. E este tem como direito e dever a observação dessa estrutura, cabe ao povo observar se o que está sendo desenvolvido através das políticas públicas está ou não satisfazendo a sociedade, e mais, se essas políticas são estão sendo de favorecimentos pessoais, porque se assim for será injusto e caberá ao povo resistir a tais atos além de lutarem pela modificação, seja do ato de autoridade ou da lei, é através dessa consciência que se estará resguardando os direitos fundamentais defendidos pela Constituição Federal.


A Desobediência Civil como Direito Fundamental

Os direitos fundamentais expressos na Constituição Federal estão distribuídos no título II que vai do artigo 5º ao artigo 17 em um rol que, embora relativamente extenso, no entanto não é exaustivo. A própria Constituição dá ampla abertura a outros direitos fundamentais, desde que estejam de acordo com o Estado Democrático de Direito.

Os direitos e garantias instituídos subdividem-se em: direitos individuais e coletivos; direitos sociais; nacionalidade; direitos políticos e partidos políticos.

A doutrina analisada por Moraes (2002, p. 59) apresenta a classificação de direitos fundamentais em gerações, os direitos de primeira segunda e terceira gerações. Os de primeira geração são os direitos e garantias individuais e políticos, os de segunda geração são os direitos sociais, econômicos e culturais e os de terceira geração são os direitos de solidariedade ou fraternidade. Contudo, Bonavides (2003a, p.58) analisa um direito o qual ele define como de quarta geração que é o direito à democracia, importante no desenvolvimento do país, através de uma democracia participativa.

Analisando a desobediência civil como sendo um importante instrumento de cidadania, que tem a finalidade de modificar a legislação ou práticas governamentais de maneira pacífica, portanto, sem o uso da força, apenas com a atuação dos cidadãos, em minoria ou não, embasados nos princípios jurídicos do sistema vigente, sem a pretensão de substituir a ordem posta por outra, sendo suas ações todas realizadas dentro da legalidade jurídica, visando à satisfação dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, podemos concluir que essa ação está plenamente garantida em nossa ordem constitucional. É uma maneira democrática de participação porque admite ao povo, que é o legítimo detentor do poder, participar do processo político de modo mais direto.

Partindo de princípios analisados como o da cidadania, soberania popular, princípios democráticos com todos os seus efeitos, além de outros como os da dignidade da pessoa humana e liberdade, podemos nos referir à desobediência civil como um direito fundamental facultado ao povo utilizar quando um direito esteja sendo violado ou que o poder público esteja sendo omisso ou mesmo injusto, direito resguardado pelo parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal.

Assim, esse instituto encontra-se baseado não apenas na teoria política e constitucional, mas também na Lei Maior e, sobretudo, nos princípios constitucionais. As leis são, sem dúvida, imprescindíveis para a sociedade, e quando estas são injustas ou quando tolhem o direito de alguns, deixam, é óbvio, de atingir o seu objetivo. É neste entendimento também que se defende o direito de resistência como fundamental porque visa proteger a Constituição e seus princípios essenciais. E o mais importante está na legitimidade existente no instituto, visto que parte diretamente da sociedade sem precisar de intermediários, como ocorre com outros mecanismos formais de participação popular direta, a exemplo do plebiscito e do referendo, assegurados na Constituição, mas que precisam de autorização do Congresso Nacional para a realização dos mesmos.

Se uma lei está em desacordo à Constituição e seus princípios, nada mais justo que se busque a sua correção. É fundamental a desobediência civil porque esta se propõe a efetivar mandamentos constitucionais, buscando por justiça e indo de encontro a atos abusivos.

É indispensável lembrar que o ordenamento jurídico brasileiro possui vários meios institucionalizados para a correção de injustiças ou leviandades ao direito, tais como o direito de petição, habeas corpus, mandado de segurança individual e coletivo, dentre outros. Todavia, como referido, eles podem não ser efetivos ou serem inoperantes. Daí nasce para o cidadão o legítimo direito de utilizar outros instrumentos na busca por justiça, ainda que não institucionalizados, como é a desobediência civil, tendo em vista direitos do mais alto grau terem sido lesados.

A desobediência civil é direito fundamental decorrente do: “[...] regime republicano de governo, e pelo princípio democrático e princípio da cidadania, elencados entre os princípios fundamentais do Estado Brasileiro [...]”, analisa Garcia (2004, p.296).

Através desse instituto, o povo, legítimo detentor do poder, toma para si a possibilidade de se manifestar quando houver injustiças ou abusos da lei ou de atos que firam a sociedade, a Constituição ou os direitos fundamentais, sobretudo o da dignidade da pessoa humana, que norteia todos os demais.

Não somente por isso, a desobediência civil é um direito fundamental, mas também por efetivar princípios constitucionais como o da igualdade, isto porque visa à participação de todos, inclusive a de minorias excluídas politicamente. Além disso, o direito de desobediência civil existe essencialmente para garantir outros direitos, neste aspecto só existirá a desobediência civil quando um direito essencial for violado e quando os “remédios” legais às injustiças não se mostrarem suficientes.


Precedente de Desobediência Civil na Seara Ambiental 

As normas ambientais frequentemente estabelecem restrições ao uso dos espaços ambientalmente protegidos e de seus recursos naturais, com vistas a assegurar a sua preservação. É o que ocorre, por exemplo, com as unidades de conservação da natureza, regulamentação atualmente estabelecida na lei 9.985/2000, cujo fundamento constitucional se encontra no artigo 225 parágrafo 1º nos incisos I, II, III e VII da Constituição Federal.

Conforme o artigo 2º inciso I da lei 9.985/2000, as unidades de conservação são espaços territoriais, incluindo seus recursos ambientais, instituídos pelo Poder Público com objetivos de conservação sob regime especial de administração. Por imperativo constitucional, a alteração desses espaços depende de lei, sendo vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos dos mesmos (artigo 225 parágrafo 1º, III).

As unidades de conservação da natureza, segundo a lei 9.985/2000, dividem-se em Unidades de Proteção Integral e Unidades de Desenvolvimento Sustentável. As primeiras têm por objetivo preservar a natureza e admitem apenas o uso indireto de seus recursos naturais, exceto nos casos previstos em lei. Quanto as segundas, têm por meta compatibilizar a preservação ambiental com o uso parcial de seus recursos naturais (art. 7º).

Todas as unidades de conservação, em maior ou menor medida, limitam a utilização dos espaços e de seus recursos e, em alguns casos, impedem até mesmo a sua visitação pública e ensejam a desapropriação das áreas envolvidas. Em razão dessas medidas, à população que habita essas áreas, são impostas alterações ao modo de vida. Em alguns casos, às mesmas é exigido que abandonem tais espaços. Em razão das normas que regem as unidades de conservação ser consideradas injustas, por vezes são descumpridas.

Nesse contexto, Mendes (2009, p. 235) apresenta um caso que qualifica como desobediência civil relacionada à instituição de unidades de conservação da natureza.

Faz referência à instituição do Parque Nacional do Jaú que, desde a sua criação em 1980, segundo a autora, enfrenta problemas fundiários, nele remanescendo moradores que, segundo as normas atualmente vigentes, o Poder Público deveria realocá-los e indenizá-los pelas benfeitorias construídas (MENDES, 2009, P.235).

À época da instituição do Parque vigia a Constituição de 1967 que garantia os direitos à vida, liberdade, segurança, e à propriedade (art. 150). No plano infraconstitucional, vigia o Decreto 84.017/1971, que limitava sobremaneira a utilização dos recursos naturais dentro do parque e inviabilizaria a permanência das costumeiras populações no local.

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Segundo (MENDES, 2009), os ribeirinhos que viviam na comunidade do Jaú, excluídos do processo de criação do parque e, na maioria dos casos, sem experiência política, sofreram diversas restrições em seu modo de vida, sob a ameaça e a efetiva aplicação de sanções legalmente previstas em razão do descumprimento da norma e, de forma pública e não-violenta, permaneceram no local:

Todas as cominações penais e civis, junto ás penalidades cabíveis passaram a permear o cotidiano destes moradores com a chegada do parque. Melhor dizendo, assombrar o cotidiano daqueles moradores, pois mesmo que o Estado não tenha tido a regularidade suposta para implantar de fato um sistema fiscalizatório na área, suas visitas esporádicas tinham a vantagem de servirem como exemplo, bastante ameaçador para outros infratores. [...] Um pouco por falta de perspectiva de vida fora do parque, um pouco por perceberem a injustiça de que estavam sendo vítimas, muitos ribeirinhos desobedeceram ao Estado que estava à sua frente, na forma do IBDF, legitimado pelo Decreto nº 84.017/71, impondo à força da lei e do monopólio da coerção física uma nova cosmografia para a área em que viviam. A própria lei representava uma violência neste momento. Uma violência contra a vida e contra a dignidade humana. [...] Sem saber, estes ribeirinhos que agiram amparados pela Carta Maior, que resguardava o direito à vida e à dignidade humanas e concretizaram o dever de resistir à lei injusta (MENDES, 2009, p. 257).

Assim, impulsionados por uma norma que eles consideravam injusta, já que a mesma não considerava a existência e o modo de vida das populações do Parque Nacional do Jaú, embora desprovidos de mecanismos legais para assegurar os seus direitos, os ribeirinhos do Jaú optaram, ainda que inconscientemente, pela desobediência civil, caracterizada por uma resistência pública e sem violência a fim de assegurarem os seus direitos à dignidade, vida, patrimônio cultural e moradia, por isso sofreram as sanções civis e criminais previstas.

Ressalte-se que, apenas em 2002, mais de vinte anos depois da criação do Parque Nacional do Jaú, o Ministério Público Federal ajuizou uma Ação Civil Pública em benéfico dos ex-moradores e moradores do Parque Nacional do Jaú, contra o IBAMA e a União, objetivando a regularização fundiária do parque, o reassentamento dos moradores e a indenização dos moradores e ex-moradores.

O exemplo referido incita à reflexão sobre a imperatividade da norma e de seus efeitos em face dos direitos fundamentais das minorias, notadamente quanto à preservação de sua cultura, de seu modo de vida e do próprio meio ambiente em que vivem, quando os mecanismos para a proteção desses direitos, embora previstos formalmente, são materialmente inacessíveis, seja pela realidade social dessas pessoas, seja pela demora na atuação dos órgãos competentes.

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Sobre o autor
Elicio Nascimento

Sou bacharel em Direito e fui aprovado no XXVI exame da OAB. Em breve atuarei como advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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