A efetividade do direito à saúde frente a teoria da reserva do possível no âmbito da fazenda pública de Mato Grosso do Sul

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O presente artigo científico busca discutir a necessidade de efetividade do direito à saúde frente a teoria da reserva do possível no âmbito da Fazenda Pública.

INTRODUÇÃO

A teoria da reserva do possível, muito utilizada nas contestações da fazenda pública estadual de MS, como meio de defesa, no seio judicial, é de fato muito ligada à responsabilidade fiscal e ao dever de racionalizar os gastos públicos com vistas às futuras gerações. Portanto, existe um choque, garantir um direito imediato, com direto dever de preservar a dignidade da pessoa humana, ou assumir que, em alguns casos, limitantes financeiras e de responsabilidade impedem o total saneamento desses pedidos. Presente artigo visa responder essas inquietudes. Quão efetivo pode ser o direito à saúde quando contraposto ao resguardo e a cautela fiscal que deve ter a fazenda pública. Justifica-se logicamente da necessidade de se fazer uma releitura paradigmática e histórica dos direitos fundamentais.

A intensa busca pela efetividade do direito à saúde é tema recorrente não apenas no âmbito jurídico. Um sem contar de produções jornalísticas, sociológicas e de pesquisas no meio das ciências da saúde, se prestam a responder como tal prerrogativa é posta em prática, frente as possibilidades orçamentárias e de gestão. Ao observarmos no meio forense, a quantidade abrupta de processos que versam sobre tal pedido, fica claro que a alçada de proteção capitaneada pelo Sistema Único de Saúde não consegue alcançar a demanda real e efetiva por tal anseio. Nota-se que o exercício do direito à inafastabilidade ao controle jurisdicional, combinado com o direito fundamental à saúde corroboram para um intenso ativismo judicial, onde um poder técnico avança sobre poderes políticos, e passa a mecanizar políticas públicas, sendo estas mediatamente próximas do legislador e imediatamente do administrador público.

Até onde irá tal ativismo? O poder judiciário visa apenas a efetivação de uma faculdade dada ao povo, perante as limitantes impostas pela fazenda pública?

São inúmeras perguntas para tais inquietudes. Introduzimos tal artigo explanando a origem do direito a saúde, mediante a exemplificação do que seria tal poder, e sua relação com os direitos de segunda dimensão.

1. SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL DE SEGUNDA DIMENSÃO, E SUA RELEITURA PARADIGMÁTICA FRENTE AOS DEMAIS DIREITOS FUNDAMENTAIS.

Não é possível explanar sobre o direito à saúde, sem antes explicitar a origem e fundamentação dos direitos fundamentais. É cediço que o desenvolvimento desses direitos, em muito se confunde com o conceito de constitucionalismo. Afinal, a partir do momento em que foram impostas limitações jurídicas ao poder, foram se alicerçando prerrogativas mínimas à população, repisa-se o fato de que o conceito de constitucionalismo, se correlaciona à evolução dos direitos fundamentais, posto que estes estão em plena metamorfose, sendo fatos sociais, portanto.

Diante disso, nesse espectro inicial, cujas reminiscências históricas remontam às revoluções liberais burguesas, inicia-se a evolução normativa dos direitos fundamentais com o modelo da declaração de direitos de 1789, no âmbito revolucionário francês.

Num primeiro momento surgem os direitos fundamentais ligados à prestações negativas por parte do Estado, a uma abstenção, tratando-se de liberdades públicas, direitos civis e políticos. Tais direitos visavam, e ainda objetivam, posto que estão em plena vigência, a proteção de um esfera de individualidade possuída por toda e qualquer pessoa, onde está inserida sua privacidade, a livre manifestação do pensar, deslocar e agir, com limites impostos tão somente pela Constituição.

Nota-se que com o transcorrer do século XIX, inúmeras insurgências sociais e políticas se desdobraram no continente europeu. A Primavera dos povos, a influência do surgimento do ideal marxista, o início de greves e manifestações do operariado. No diapasão de mudanças, não somente o povo, mas até mesmo os detentores dos fatores reais do poder, começaram a atribuir garantismo e legalidade a deveres estatais, no tocante de que tornam-se direitos fundamentais, prestações positivas, deveres de entregar, disponibilizar, obrigações de dar (LASSALE, 1863, p. 12).

A penúria da classe trabalhadora, da grande massa de despojados de renda e de fatores de produção, a miséria instalada no seio de uma sociedade que se vangloriava pelas conquistas dos direitos civis e políticos, começaram a reverberar a necessidade de instalação de garantias que pudessem mitigar o descaso com os mais pobres.

É nesse contexto que surgem os direitos sociais, culturais e econômicos, nos quais se encontra o direito à saúde, núcleo essencial do presente artigo. O marco inicial, representando a positivação desses direitos, se encontra no texto Constitucional Mexicano de 1917, além desta, nota-se pela importância na garantia normativa desses benesses sociais, a constituição alemã de Weimar de 1919, e antecedente ao próprio surgimento desses direitos em Constituições, temos a Declaração Francesa de 1848, nos dizeres de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2012, p. 63), temos que:

Esse 1848 foi na Europa um ano de graves conflitos, de revoluções umas das quais foi a que derrubou na França a monarquia dos Orleãs. Ora, um elemento importante nesses movimentos, e particularmente no que ocorreu em Paris, foi a atuação dos trabalhadores e dos desempregados. A conotação social da revolução que levou à segunda república é nítida.

A doutrina social da igreja católica de fins do século XIX e início do século XX, também foi contributiva para a consagração dos direitos sociais, a destacar o direito do trabalho e à saúde. É visível que a tentativa religiosa de contribuir moralmente com o desenrolar e reconhecimento de direitos os quais se baseavam em prestações positivas pelo poder público, em muito se imiscuíam com a necessidade vital de preservação do trabalhador e das condições de trabalho.

Logicamente, ao se garantir ao trabalhador descanso, condições mínimas de segurança no labor, salubridade, e convívio social, estavam a garantir também noções mínimas de respeito à saúde dos proletários.

Entretanto a sistematização, internacional, que constituía proteção alicerçada ao direito à saúde, advém apenas no pós-segunda guerra. Com a criação da Organização das Nações Unidas- ONU, em 1945, e a partir do preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde- OMS, em 26 de julho de 1946. A conceituação de saúde pela OMS, é larga e traz a característica abarcadora dos direitos advindos do seara constitucional internacional, pontua-se contudo, a dificuldade prática de arregimentar condutas concretas, estabelecer limites e diretrizes a serem seguidas, visando a efetividade social de tal prerrogativa. (AITH, 2001, p. 35)

Até o surgimento da proteção ao direito à saúde no campo do direito constitucional internacional, iniciado no século passado, a visão que se propagava em relação ao tema era ligada à prevenção e combate a doenças, ou seja, a ‘’saúde’’ significava tão somente a ausência de doenças, e não era visualizada como um status de bem estar a ser alcançado. Inúmeras passagens históricas explicitam tal entendimento retrógrado, na idade média por exemplo, quando do caos instalado pela peste bubônica, o entendimento da sociedade à época era de que a doença atingia aquele que pecava, ou relacionada ao paganismo, e a sacralização extrema do pensamento impedia de os ver que a fonte estava nas péssimas condições sanitárias que faziam proliferar ratos, vetores da doença.

Acreditava-se na desgraça divina como elemento fundamentador das mazelas na sociedade, e que seriam consequências diabólicas, acometendo o povo descrente, a própria metodologia de cura e combate as mazelas, era extremante ritualística e religiosa, nem existindo tutela jurídica para tal exercício, afinal a única instituição que restou de pé, durante boa parte da idade média, era a igreja católica, e não um Estado Constituído, assim como entendido nos tempos atuais.

Nesse diapasão, somente, a partir de meados do século XIX, o instituto da saúde, aproximou-se da significação de bem estar físico, psicológico e ambiental, sendo dessa maneira mais ligado às necessidades crescentes de humanização dos tratamentos médicos e universalização de direitos e garantias básicas, ligadas precipuamente à assistência social.

A proteção do direito à saúde no Brasil, passou a ser fortemente influenciada pelas cartas internacionais, onde a partir da Organização Mundial da Saúde, noções ligadas ao equilíbrio, encarnando-se com a visão de respeito e fomento à plenitude física e moral das pessoas, respeitando-se e alicerçando a concepção positiva de saúde. (AITH, 2001, p.46).

No Brasil, o desenvolvimento histórico e normativo do direito à saúde tem a consagração máxima com a carta de 1988. A constituição imperial de 1824, assim como fez com outros direitos sociais, a citar a educação, dispensou apenas tímidas citações à saúde pública. Destaca-se apenas a menção aos primeiros socorros, artigo 179 da Carta, e também, mesmo que em fomento infraconstitucional, denota-se o desenvolvimento das Santas Casas de Misericórdia, instituições beneficentes, que antes se valiam de caridade, e doações, mas que a partir da vinda da família real portuguesa ao Brasil, passaram a receber maiores dispensas financeiras por parte do poder público.

Hoje também, as Santas Casas, recebem recursos financeiros do Sistema Único de Saúde, o surgimento das mesmas remonta-se ao período colonial, porém como mantenedoras da saúde, fora no império seu desenvolvimento mais concreto. A Carta imperial, em seu artigo 179, inciso XXI, traz em sua inteligência a expressão ‘’soccorros públicos’’, que durante boa parte do século retrasado dispunha sobre, um rede singela de proteção social, ligada à assistência aos desamparados, caridade e à garantia a tratamentos médicos.

Todavia, foi no regime de Vargas que o direito à saúde se solidificou, com a sistematização de diretrizes, inclusive no campo constitucional, advindo da carta de 1934. Na atual constituição vigente, os direitos sociais, a saber a saúde, aparecem em voga no artigo 6º, e sua proteção e reforço de juridicidade se encontram no pressuposto de que foram petrificados. Assim como os direitos individuais e coletivos, os direitos sociais, são considerados pela posição doutrinária e jurisprudencial como cláusulas pétreas.

A correlação entre os direitos à saúde, à vida e a integridade física e moral, assim como todos os corolário básicos atinentes à personalidade da pessoa humana, se prestam a confirmação de que muito mais do que repositório de promessas grandiloquentes, os direitos sociais, a saber a saúde pública, são fundamentais e na atual ordem vigente, não podem ser abolidos ou mitigados.

O fundamento do direito à saúde, fora tratado por Ingo Sarlet, que reverbera a inexistência de dúvidas sobre o quão fundamental é assegurar a todos tal garantia, sendo este de primo valor, para o aproveitamento de todos os demais direitos já albergados pelo direito constitucional interno. Anotado como direito fundamental de segunda dimensão, e dotado de vinculação universal, o direito à saúde, a partir da sua característica universalizante passa também a ser encarado do ponto de vista de sua compatibilização e harmonização para com os demais direitos já albergados pelo ordenamento jurídico do Brasil, e por aqueles que ainda não foram positivados, mas serão (SARLET, 2009, p. 326).

Como já explicitado, os direitos fundamentais estão em plena evolução; sendo possível o alargamento da tábua dessas prerrogativas. Sua metamórfica transformação histórica, com a garantia dos direitos sociais, não se encerrou. Afinal, como já bem cediço na teoria geral dos direitos fundamentais, a partir dos ensinamentos do polonês Karel Vlasak e do brilhante constitucionalista francês Paulo Bonavides, a célebre separação doutrinária entre os diversos direitos fundamentais em gerações (ou dimensões, como dizem alguns) é a demonstração de que cada vez mais surgem novos direitos.

Alia-se a tal convicção o chamado ‘’princípio do não regresso’’, ou também tratado na doutrina pátria como princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais, sendo tema corriqueiramente citado por constitucionalistas a citar Gilmar Mendes, Ingo Sarlet e Lenio Streck. A partir da etimologia do termo, no contexto constitucional atual, não é admitida a retirada ou supressão de garantias, mas sim um constante alargamento no rol destas. (BONAVIDES, 2004, p. 561).

Quando se fala em releitura paradigmática dos direitos fundamentais, frente ao direito à saúde, a grande intenção é expressar que não temos apenas a sedimentação de mais um direito social, frente aos direitos de primeira dimensão, e nem que sobre esse direito social, se somaram os direitos de solidariedade ou fraternidade.

De fato, não é uma mera adição, porém uma harmonização das conquistas jurídicas tuteladas, afim de se coadunarem num sistema jurídico garantista e cidadão. A inclusão maciça do direito à saúde pública, a partir da Constituição de 1988, correlacionada com a VIII Conferência Nacional de Saúde, esta última realizada em março de 1996, ou seja, concomitantemente ao empenho constituinte brasileiro pós regime militar, elaborou forte influência na construção de uma nova leitura dos direitos civis e políticos. Parte da liberdade dos cidadãos, é desmantelada ao se compilar um Sistema Universal de Saúde – SUS, no qual dinheiro público, mantido por contribuintes brasileiros, pode inclusive atender estrangeiros, refugiados, e quaisquer outros seres humanos, visto seu caráter coletivo.

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Explicitando de outro modo, os contribuintes brasileiros são coibidos a outorgar valores, que serão usados no SUS, por meio de tributos, mas por motivação igualmente importante, resguardar o direito social à saúde, de todos aqueles que estiverem no território brasileiro.

O abarcamento dos direitos de terceira dimensão, no rol de garantias também não escapou a uma releitura paradigmática. O meio ambiente equilibrado, fundamental à dignidade da pessoa humana, e consequentemente ao seu bem estar físico e psicológico, apregoado no artigo 225 do texto constitucional, é de uma maneira ou de outra, fonte de compatibilização dos direitos de terceira dimensão, para com a saúde pública e individual.

A tutela dos direitos difusos e coletivos, surgida a partir de fins do século XX, trouxe nova maneira de resolução de litígios que versam sobre a saúde pública, releva notar as inúmeras ações civis públicas que tratam de descaso para com hospitais, fornecimento de medicamentos e manutenção da rede de atendimento do SUS e parceiros. No caso de Mato Grosso do Sul, a intervenção do Ministério Público estadual nestes feitos é de relevância, visto a constituição de duas promotorias de justiça somente na comarca de Campo Grande, para o tratamento do assunto.

Para se ter noção, a questão do direito a saúde tornou-se incidente de resolução de demandas repetitivas, sendo caso de sobrestamento de feitos em vários processo judiciais pelo país. As questões processuais relativas ao tema serão abordas em capítulo próprio pelo artigo, mas já adianta-se, visto que há a necessidade de não apenas adicionar mais um direito, como se fosse mera sedimentação, contudo, redesignar conceitos e institutos que passam a ter novas visões, na doutrina, na jurisprudência e inclusive na própria lei.

1.1 A responsabilidade solidária das Unidades da Federação frente ao direito à saúde

Afim de estabelecer o entendimento doutrinário e jurisprudencial quanto à responsabilidade solidária entre os entes da federação, na construção e manutenção do alicerce do direito à saúde, é elementar traduzir o conceito de efetividade. Como bem elencado no título do presente artigo, a efetividade do direito à saúde pode ser entendida como sinônima da expressão, eficácia social.

A eficácia, dentro da doutrina é vista sob a dicotomia social versus jurídica, a social diz respeito a como o conteúdo de uma norma jurídica está acorde com a conduta no seio social, isto é, quão compatível com a normatividade está o desenlace no campo social. Já a eficácia jurídica diz respeito à subsunção da norma ao fato, juridicizando-o, tornando o fato jurídico, relevante para o direito, pois. (BARROSO, 2001, p. 83).

Portanto efetividade é a medida social, do cumprimento do conteúdo advindo da norma jurídica. Como se sabe, o artigo 6º da CF/1988, é aquele que traz o bojo dos direitos sociais, citando o à saúde, entretanto são artigos do título VIII da carta magna que explicitam, diluem mais conteúdo sobre o tema. Conforme artigo 198 do CF/1988, as ações que envolvam a saúde, serão delineadas dentro de uma rede integrada, onde não há hierarquia entre as competências administrativas dos entes, mas sim uma organização, uma descentralização de ações, com vistas a aumentar a efetividade dos serviços prestados à população. Nesse sentido, não serão possíveis as defesas processuais que visem exclusão do polo passivo, entes da federação, sob alegação da competência administrativa ser de outro ente.

Sedimentado o tema, de acordo com jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual o funcionamento do Sistema Único de Saúde/SUS é de responsabilidade solidária da união, estados-membros e municípios, de modo que qualquer destas entidades tem legitimidade ad causam para figurar no polo passivo de demanda que objetiva a garantia do acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros. Importante assentar que possui legitimidade para a causa, aqueles titulares da relação jurídica material hipotética, afirmada, não se confundindo com ter ou não lastro de mérito, uma vez que a carência de legitimidade gera a extinção do processo sem resolução de mérito. ( Freire, Cunha, 2017, p. 634)

Sendo cediça a responsabilidade solidária dos entes federados, tal noção possibilita que profissionais do direito, notadamente o advogado particular ou defensor público possam eleger, como integrantes do polo passivo de uma demanda, cujo objeto seja relacionada ao direito constitucional à saúde, (seja uma na qual o pedido seja um medicamento, dieta enteral, transferência urgente para outra unidade de saúde, ou para a realização emergencial de cirurgia), qualquer um dos entes ou mesmo todos, solidariamente. Importa destacar que a depender dos entes a serem elencados como réus em lides como essas, importará alteração de competência.

De acordo com as regras estabelecidas pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, na sua organização judiciária. Sendo requeridos o Estado de MS, e qualquer munícipio do mesmo, o juízo competente ou será uma das seis varas de Fazenda Pública, ou ainda podendo ser de competência do juizado especial da Fazenda Pública, caso a comarca seja Campo Grande, ou a depender da lei de organização nas demais comarcas.

2 A TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL, ATIVISMO JUDICIÁRIO E A JUDICIALIZAÇÃO.

Ao analisar as características essenciais dos direitos fundamentais de segunda dimensão, tal como o direito à saúde, impera concluir que estes dependem imensamente de planejamento orçamentário para sua consecução. Se para a implantação, promoção e concretização de direitos fundamentais de primeira geração, ou dimensão, já são necessários dispêndios de verbas públicas e planejamento estratégico, no caso dos direitos sociais, tal situação fica ainda mais clara e evidente, tanto é, que autores da área do direito constitucional, já advertiam para a necessidade de adequação das prestações de serviços e assistências sociais às limitantes financeiras inerentes a qualquer Estado-Nação (SARLET, FIGUEIRADO, 2008, p.22).

Ademais, a chamada cláusula da reserva do possível, para alguns denominada de teoria, visto a sua duvidosa aplicação no mundo jurídico, poderia espalhar seu conteúdo fático sobre a aplicabilidade de todos os direitos fundamentais, mas com maior vigor, sobre os sociais, visto que estes são eminentemente prestacionais.

Tanto é que parcela minoritária da doutrina concebe a necessidade de adequação, de encaixe orçamentário, entre a disponibilização dessas prerrogativas, e as decisões administrativas e parlamentares de gestão ( FERNANDES, 2017, p.712).

Do ponto de vista de sua utilização, foi o Tribunal Constitucional alemão, em meados da década de 1970, que iniciou a fundamentação de decisões baseadas nas limitações óbvias que se depreendem da própria burocracia da máquina pública. Andreas Krell, constitucionalista alemão da Universidade de Berlin, critica a utilização da cláusula como resposta à sociedade, frente ao porquê, do Estado não cumprir satisfatoriamente as necessidades legalmente impostas, relativas ao direito incontestável à saúde, considerada área vital, para a própria população.

Nesse diapasão, é elementar esclarecer que não é aceitável a ingerência de vincular necessidades legalmente impostas, às condições administrativas sazonais, em outras palavras, o povo não pode sofrer com o descaso, ser ter a garantia de amplo e integral atendimento à suas necessidades de saúde, por conta de limitações administrativas e burocráticas.

Desse contexto, surge a questão; como conciliar a finitude de recursos, com a indiscutibilidade do direito à saúde? Pois então surgem teorias utilizadas no meio judicial, e ampliadas pela doutrina, como a teoria do mínimo existencial e as máximas da proporcionalidade e da razoabilidade, com o escopo de responder a tal dúvida (KRELL, 2002).

A teoria é muito utilizada pela Procuradoria Geral do Estado de Mato Grosso do Sul, nas suas defesas ante demandas que versam sobre o direito à saúde. Depreende-se do exposto que a proteção constitucional e fundamental à saúde de qualidade, gratuita e universal é maior que a alçada administrativa prolatada por meio do Sistema Único de Saúde.

Outrossim, o que se observa é um avanço de um poder técnico, poder judiciário, frente aos poderes políticos, quais sejam o executivo e o legislativo. A judicialização do direito social à saúde é visível a qualquer pessoa, frente as lides que tramitam no poder judiciário do estado de MS, a exemplo (RAMOS, 2010, p.116).

A Judicialização, não advém de política de estado ou de conduta específica dos membros do poder judiciário, mas decorre do modelo constitucional abordado por determinado Estado Nação. A inafastabilidade do controle jurisdicional, apregoada pelo artigo 5º (quinto), inciso XXXVI da Constituição da República, relata que o acesso à justiça é universal e não limitado, sendo que cabe à megaestrutura política-administrativa e judiciária atendê-la. O próprio Código de Processo Civil, em seu artigo 3º (terceiro), caput, também o reverbera na esfera infraconstitucional (BARROSO, 1998, p.23).

Conforme ainda Barroso (1998, p.23) “a judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adota, e não um exercício deliberado de vontade política’’. Não se confunde, com o fenômeno da judicialização, o chamado ativismo judicial, que represente a ultrapassagem dos limites legais e morais, por parte do poder judiciário ante os demais poderes.

Segundo Francisco Zúniga Urbina (2011, p. 65), que o “ativismo judicial aparece ligado à liberdade de criação dos juízes, à atualização do serviço de justiça’’. Na área da saúde e fornecimento de medicamentos, assim como nas demandas que visem a rápida, e imediata transferência de pacientes para unidades hospitalares mais complexas, o intenso ativismo judicial, combinado com a excessiva judicialização acabam por desestruturar políticas públicas que deveriam estar imediatamente próximas de membros do poder executivo, e mediatamente próximas de legisladores.

Se antes o poder judiciário era apenas um ‘’departamento estatal’’, nos dizeres do magistrado gaúcho André Luiz Bianchi, ‘’passou a ser ativo e de fato um poder constitucional, carregado do fenômeno judicial review, segundo o qual tudo pode ser resolvido e revisto por juízes’’ (BIANCHI, 2012, p.119).

A escassez de recursos e a morosidade na ações públicas que visam dar a luz à um direito à saúde efetivo demonstram a necessidade de busca intensa, por parte da população a  classes jurídicas. Não se pode olvidar, que sobre todo esse espectro existem inúmeros interesses financeiros, que perpassam os dos poderes constitucionais, mas também aqueles atinentes à indústria farmacêutica e empresas privadas administradores de hospitais e/ou unidades de saúde.

3.DIREITO À SAÚDE, PROCESSO CIVIL E FAZENDA PÚBLICA

Explicitados os fenômenos da judicialização e do ativismo judicial, cabe a este item, a análise teórica da práxis judiciária, no âmbito da Fazenda Pública de Mato Grosso do Sul, das demandas cujo objeto se desdobra na questão “acesso ao direito à saúde’’, detalhando a compilação de dados, estatísticas judiciários na jurisdição estadual de MS.

Conforme dados extraídos do Comitê Estadual de Saúde de MS e do Núcleo de Apoio Técnico do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul, entre os meses de janeiro a novembro de 2017, foram ajuizadas 3.302 ações referentes à judicialização do SUS. Sendo que 13,22% destas, perfazendo um total de 374 feitos, tinham como pedido o deferimento, com urgência na maior parte dos casos, de alimentações especiais aos requerentes, em desfavor da fazenda pública estadual, em litisconsórcio passivo com munícipios do estado, ou não. Tratam de processos cujos pedidos são de concessão de dietas enterais, dietas especiais para alérgicos ou portadores de doenças crônicas.

Os pedidos de medicamentos psicoativos foram objetos de 295 demandas, totalizando 10,43% do total apurado. Outro dado importante foram os relativos à transferência para unidades de tratamento intensivo, e ou internações em unidades mais complexas de saúde, que totalizaram 242 feitos, percentualmente 8,56% do total.

A análise geográfica também fora apurada, de acordo com os dados levantados pela mesma fonte já citada, NAT/TJMS, a comarca de Campo Grande, maior em número de habitantes no estado de Mato Grosso do Sul, deteve o meio número de processo in casus, que tramitaram tanto nas varas de fazenda pública e registros públicos, quanto nas varas do juizado especial de fazenda pública da comarca.

Somente nas Varas da Justiça comum, e nas duas varas do juizado especial campeãs nas demandas, foram 2052 ações ajuizadas no período de janeiro a novembro de 2017. Em todas as comarcas do estado, foram no espaço temporal já citado, 4.757 feitos, que versavam sobre pedidos de atenção básica de saúde, ante a inércia do poder público, medicamentos diversos, órteses e próteses, insumos para oncologia, insumos para curativos, e transferência de pacientes em caráter emergencial, dentre outras necessidades.

O TJMS, disponibiliza de forma integral os dados dos processos sobre o tema em discussão, referentes a 2016, em tal ano os medicamentos totalizaram o objeto de 3.449 ações  perfazendo 59,52% do total, na vice liderança, os suplementos alimentares, e alimentações especiais, com 702 feitos, totalizando 12,11%.

3.1A FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL EM JUÍZO

Diante desse cenário, de intensa busca de direitos via judicial, a advocacia pública aparece em voga no cenário jurídico, não apenas no Estado de Mato Grosso do Sul. Afinal, os fatos e fundamentos jurídicos que lastreiam a grande maioria das demandas em desfavor da fazenda pública em MS, possuem como fato causador a negativa em disponibilização de medicamentos ou insumos que estão fora da lista da Política nacional de medicamentos- PNM ou são estranhos à Política Nacional de Assistência Farmacêutica- PNAF; ainda podem ser citados como fatos causadores a inércia das autoridades administrativas frente as necessidades de transferência de pacientes, entre unidades de pronto-atendimento, postos de saúde, para hospitais da rede estadual/municipal, ou para o hospitais universitários, unidades de responsabilidade administrativa da união, porém pertencentes à rede do SUS.

Em concordância ao disposto no artigo 312 do Código de Processo Civil de 2015, considera-se proposta a ação quando a petição inicial for protocolada, nesse exposto, será analisa a competência da demanda, a partir do valor da causa, podendo o processo ser declinado ou para a justiça estadual comum, ou para juizado especial da fazenda.

Não apenas o valor da causa é delimitador de competência, mas também a natureza da parte, se incapaz, a ação correrá na justiça estadual comum.

Na grande maioria dos casos, o pedido vem acompanhado de tutela provisória de urgência antecipada, em sede de cognição sumária, o que aumenta a pressão judiciária sobre as políticas públicas organizadas pelas autoridades competentes. A decisão judicial que concede liminar, possui consequências ainda mais gravosas à fazenda pública, porém, tal decisão, como toda decisão jurisdicional deve ser fundamentada.

A aplicação dos princípios do fumus boni iuris, ou seja, cheiro do bom direito, em outras palavras tal expressão diz respeito ao lastro probatório preexistente que enseja certa definição prévia, de caráter sumário portanto, e do periculum in mora, perigo, risco ao resultado útil do processo, a partir da subsunção do fato à norma, prioritariamente aquela emanada pelo artigo 300 do CPC/2015, alicerçam tais pronunciamentos judiciais.

Discussões sobre a estabilização da tutela provisória de urgência antecipada, com rigor a partir da inteligência do artigo 304 do novel Código de Processo Civil, fogem da temática do presente artigo, contudo, releva notar que a possibilidade próxima de tal estabilização, novamente é fato que cada vez mais merece atenção do operador do direito, frente aos impactos orçamentário passíveis de concretização com tal conduta.

Devido a grande quantidade de processos, o que se verifica da análise dessas demandas, é a revelia da fazenda pública, isto é, a mesma não apresenta contestação, em inúmeras situações, não oferece resposta.

O que não significa que serão aplicados os efeitos da revelia, posto que a inteligência do artigo 345, inciso II do CPC (que opera sobre o instituto da revelia), impede que os efeitos de presunção de veracidade incidam quando o litígio versar sobre direitos indisponíveis, como são os casos que lidam com direito à saúde cujo réu é a fazenda.

Mediante análise de processos, que versem sobre pedido de medicamentos fora da lista de fármacos da Política Nacional de Medicamentos do Sistema Único de Saúde, PNM/SUS, em sede de contestação, o Estado de MS, baseia sua defesa processual, com fulcro no sobrestamento do feito, visto que tais demandas em concreto se coadunam com matéria submetida ao rito dos recursos especiais repetitivos do Superior Tribunal de Justiça.

O fundamento de tal resposta do requerido, tem pleito com base no artigo 1.036 do Novo Código de Processo Civil, a afetação de recursos especiais se relaciona com a pacificação e uniformização das decisões em âmbito nacional com vistas à segurança jurídica.

Deve-se atentar que, muito embora, o instituto do sobrestamento correlacionado aos recursos de repercussão geral, possui intenção precípua de dar estabilidade as decisões judiciais, tal instituto pode causar danos, no caso concreto, aos princípios assentados como fundamentais à vida e à saúde, como também a todos os pilares valorizadores da dignidade da pessoa humana, constitucionalmente albergados.

É mister reconhecer que tal suspensão causaria danos irreparáveis à vida de vários pacientes, constatação essa de inestimável valor social. Não seria nada proporcional suspender um processo cuja decisão de mérito anseia tanto seus autores, visto que acometidos por trágica mazela tem seu direito à saúde cerceado.

Alexandre de Moraes, (2008, pg. 23) , reverbera o entendimento acima supracitado de que: ''A vida é pré-requisito à existência e ao exercício de todos os demais direitos''.

Ressalta-se que em suma, como direito fundamental e incontestável, as lides que se desdobram sobre tal controversa, geralmente são resolvidas em julgamento antecipado de mérito. Neste sentido Fredie Didier (2017, p.772-73):

O julgamento antecipado de mérito é uma decisão de mérito, fundada em cognição exauriente, proferida após a fase de saneamento do processo, em que o magistrado reconhece a desnecessidade de produção de mais provas em audiência de instrução e julgamento (provas orais, perícia e inspeção judicial). O juiz no caso entende ser possível proferir decisão de mérito apenas com base na prova documental produzida pelas partes. O julgamento antecipado de mérito é pois, técnica de aceleração do processo. É manifestação do princípio da adaptabilidade do procedimento.

Nesse sentido, tem-se que nas ações que envolvem o fornecimento de medicamentos, está presente a fumaça do bom direito, sujeitando-se assim, a necessidade de concessão da tutela de urgência.

3.2A EFETIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS QUE CONDENAM A FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL EM MATO GROSSO DO SUL.

A partir da sentença ou estabilização da decisão judicial que condena a fazenda pública a arcar com despesas inerentes ao direito à saúde, advém o questionamento quanto a efetividade de tais decisões. A partir da sentença, o processo pelo qual se dá o cumprimento compulsório da sentença é a execução, até mesmo no caso de liminares (tutela provisória de urgência antecipada), onde a denominação é cumprimento provisório da sentença.

É cediço que o descumprimento de ordem judicial, é ato ilícito, antijurídico e típico sendo enquadrado no crime de desobediência, artigo 330 do Código Penal, contudo, na práxis, quando ocorre o descumprimento de obrigação judicialmente imposta em face da fazenda pública estadual, em Mato Grosso do Sul, o que se dá é o cumprimento da sentença, ou decisão interlocutória, por meio de sequestro de numerários, via BACEN-JUD.

A sanção penal imposta, nos casos de desobediência é de fato rara e de difícil constatação, sendo cabível sua análise pela autoridade competente criminal, prioritariamente, pelo titular da ação penal pública, o Ministério Público.

Entretanto, o que vem sendo praticado pelas partes é a tentativa de enquadrar a fazenda pública executada, na incidência da prática de litigância de má-fé, instituto com caráter de sanção, porém cível, descrito no artigo 80, inciso IV do CPC, mediante a alegação de que o ‘’ESTADO’’, visa ao descumprir ordem judicial, atrasar o andamento processual, e com o respaldo na cláusula da reserva do possível, tema já tratado neste artigo.

CONCLUSÃO

A partir da exposição histórica do direito fundamental à saúde, e de acordo com a releitura paradigmática de tal prerrogativa frente a todos aqueles direitos, capitalizados pelo chamado bloco de constitucionalidade, a visão que se encerra é de que nos tempos atuais, a interpretação jurídica deve passar pelo filtro inerente de tais direitos.

Denomina-se de ‘’filtro segundo os direitos fundamentais’’ por mais que as alegações reverberadas pelo ‘’Estado’’, arguindo sobre suas limitações financeiras, possuam respaldo material, não há espaço para retrocesso, posto que o próprio orçamento público deve estar atinente as demandas sociais, o fato social, portanto.

Tal tese, não significa que a justiça deve se tornar fonte inesgotável de satisfação dos dissabores da vida, mas sim que a tutela jurisdicional se preste a sua função, e que quaisquer intervenções do poder judiciário venham acompanhadas de responsabilidade fiscal, e não se tornem mecanismo de heroísmo, sob as custas do erário.

Pacífico na doutrina, e na ciência dogmática do direito, a institucionalização de um movimento de destaque do pensamento jurídico contemporâneo, qual seja, a evolução dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, assim como a constante consagração da hermenêutica como fonte de desenvolvimento da ciência do direito. (Didier, 2017, p. 48)

A lição que surge é e a necessidade de adequação do texto constitucional com os planejamentos orçamentários, afim de se evitar desgastes provenientes do processo. Como bem se sabe, o processo civil é desgastante, e sem dúvida o levantamento de modo administrativo dos pedidos, seria mais célere e resultaria em economia, processual e financeira. Por mais hipotética que seja tal intenção, destaca-se que o caráter programático é caractere de nossa carta magna, e como fundamento irradiante de validade, tal característica deve se expandir sobre todo o ordenamento.

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Sobre os autores
Antônio Leonardo Amorim

Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, professor na Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT).

Jair Muller Caldeira de Carvalho

Discente do Curso de Direito da UFMS.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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