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Educação e marginalidade

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Perceber a relação educação e marginalidade nem sempre é tarefa fácil, uma vez que tal façanha demanda um posicionamento político e ideológico, contudo, trata-se de um fazer necessário.

A questão da marginalidade e a exclusão social

Ao buscarmos uma compreensão para o que venha a ser marginal, FERREIRA (2008) afirma:

Adj2g. 1. Da margem (1 e 2), ou feito, escrito, desenhado nela. 2. Que vive fora do âmbito da sociedade ou da lei, como vagabundo, mendigo ou delinquente. s2g. 3. indivíduo marginal (2). [sin. De 2 e 3: fora-da-lei.PL.: -nais.]. (p.538).

Já  ao definir a marginalidade o mesmo autor conceitua-a como sendo

O estado ou condição de marginal (p. 538).

É possível somar-se ainda novos significados para uma compreensão mais abrangente do termo. O conceito de marginalidade pode ser empregado no campo moral, no campo econômico e no campo social. Quando assim aplicado está associado à “bandidagem”, à pobreza, à exclusão.

Se fizermos uma análise mais profunda do seu uso, podemos perceber que na literatura em geral, o termo marginalidade vincula-se a diversos aspectos da vida real, tais como: caos, colapso, degradação, segregação, desagregação, deteriorização, discriminação, diferença, entre outros. Nesse sentido, a marginalidade vem da díade de relaçoes de uma sociedade em desarmonia. Torna-se marginal quem está do lado do oprimido, excluído. É assim que são construídos os duetos tão ressonantemente ouvidos no mundo atual: rico-pobre, norte-sul, centro-periferia, incluído-excluído, desenvolvido-subdesenvolvido, masculino-feminino, hétero-homo, branco-negro, urbano-rural.

No mundo da dualidade, cada um dos pares descritos acima expressa a natureza de processos/condições que se manifestam a partir do desenvolvimento desigual na economia, na sociedade e na política; e consequentemente materializam-se no espaço, criando realidades que embora pareçam naturais, pela tradição de sua natureza, são constuções sociais referentes a um conjunto de padrões que adotamos e herdamos culturamente.

É sobre essa ótica, a da marginalidade enquanto processo da exclusão e da acentuada diferença gerada por diferentes fatores entre grupos, classes, que procuraremos dissertar. Nesse sentido, a marginalidade se reveste de um valor próprio, o da segregação social não devendo ser confundida com o seu sentido mais usual o da “bandidagem”.

Uma vez delimitado o papel da marginalidade nas sociedades contemporâneas, cabe-nos refletir sobre a educação. Qual tem sido o seu papel? De que forma a educação se processa? Como podemos compreender o real sentido da educação escolar?

Educação Escolar: Processo intencional

Podemos compreender a educação como resultante dos processos de ensinar e aprender. Trata-se, portanto, de um fenômeno observado em qualquer sociedade em qualquer tempo afirmando-se nos seus grupos constitutivos, os quais são responsáveis pela sua manutenção e perpetuação a partir da transposição, às gerações que se seguem, dos modos culturais de ser, estar e agir necessários à convivência e ao ajustamento de um membro no seu grupo ou sociedade.

Neste sentido, como afirma Piletti (2008)

A educação existe mesmo onde não há escolas. Nas sociedades chamadas primitivas e de povos considerados “bárbaros”, por exemplo, não existem escolas nem métodos de educação conscientemente reconhecidos como tais. No entanto, existe educação. (p. 12).

De acordo com a ideia de educação citada acima, essa se processa de forma livre e espontânea. Trata-se de um processo onde, a partir da imitação (in)consciente, os indivíduos aprendem com os do seu grupo a se organizarem culturalmente incorporando valores e práticas grupais e individuais, necessárias a sua sobrevivência, ajustando-se portanto ao meio em que vivem.

Embora essa seja a primeira face da educação e ocorra mesmo nas sociedades onde existem as instituições da educação eormal, o ambiente das escolas, é sobre uma segunda face da educação que buscaremos nos deter – a educação escolar. Por esse modelo de educação devemos compreender o processo de educação realizado em um sistema escolar de ensino. Essa prática educativa podendo ser desenvolvida em institutos ou demais instituições legitimadas para exercê-la. Trata-se de uma prática que coincide com a insurgência das escolas sendo, normalmente, financiada pelo Estado o qual faz acontecer as políticas públicas.

Na sociedade brasileira o reconhecimento da importância da educação escolar e a pertinência da atuação pública sobre a mesma encontram-se expresso na Constituição Federal em seu artigo 205 que diz:

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1988).

Ao dissertar sobre a educação escolar, Libâneo (1994) comenta que se trata de um sistema de instrução e ensino de objetivos intencionais, sistematizados e com alto grau de organização, dando a importância da mesma para uma democratização maior dos conhecimentos. Na visão desse autor as práticas educativas é que verdadeiramente podem determinar as ações da escola e seu comprometimento social com a transformação. Trata-se de uma visão crítica sobre o papel da educação na sociedade, legando a primeira a possibilidade do despertar para o agir consciente dos grupos sobre o meio em que vivem.

Dado o verdadeiro mérito educacional às instituições de ensino, pelo seu caráter intencional, percebe-se que a educação escolar deve cumprir uma série de obrigatoriedades que devem estar em consonância com o tipo de sociedade a qual se destina. Mas dessa afirmativa decorre uma série de outros questionamentos. Assumindo-se que o nosso modelo de sociedade encontra-se marcado pelas díades apresentadas anteriormente – norte-sul, rico-pobre, homem-mulher, entre outros – a que grupo deverá servir o modelo de educação institucional? Como a educação se relaciona com as questões da marginalidade? Até que ponto o processo educativo pode e deve interferir nas questões da exclusão social?

É bem verdade que não pretendemos dar conta de todas as questões ora apresentadas nesse artigo. Uma resposta consistente para cada um desses questionamentos demanda um estudo bem mais demorado e aprofundado o qual deverá perpassar pelas histórias das lutas e movimentos sociais, dentro e fora do Brasil. Sendo necessária ainda uma discussão sobre as noções de Estado, políticas públicas, papel da escola, conceito de cidadania e tantas outras questões pertinentes à temática em voga.

Contudo, ainda que conscientes de nossas limitações, procuraremos adentrar o universo da escola e da marginalidade a partir das teorias de SAVIANI (2008) em seu texto “As teorias da educação e o problema da marginalidade”, não em busca de esvaziar as inquietações, ora reinantes, mas na objetivação de torna-las ainda mais aguçadas e promotoras de novos olhares, novas perspectivas e novas interpretações possíveis.       

Educação e marginalidade: Práticas pedagógicas e a politização do educador

Perceber a relação educação e marginalidade – no âmbito em que estamos tratando tais questões – pode nem sempre ser uma tarefa fácil, uma vez que tal façanha demanda um posicionamento político e ideológico, contudo, trata-se de um fazer necessário, ainda mais quando se trata de agentes da educação (educadores, coordenadores educacionais, alunos entre outros), pois tal compreensão será vital para o desempenho de uma prática pedagógica comprometida para a mudança e/ou manutenção dessa dicotomia. Compreendendo-se aqui que as práticas pedagógicas são intencionais, demandando, portanto, certo posicionamento pedagógico que pode coincidir para além das questões da marginalidade.

É bem verdade, ainda, que o fazer pedagógico enquanto prática intencional nunca se manteve inalterado, mas admitiu essa ou aquela configuração em consonância com o modelo de sociedade para o qual se destinou em um determinado momento. Desta feita, tais práticas têm contribuído para o avanço ou para o declínio da marginalidade ao longo dos tempos. De acordo com SAVIANI (2008), pode-se agrupar as teorias educacionais em dois grupos principais, ao se tratar a questão da marginalidade. Em um primeiro grupo, temos aquelas teorias que entendem ser a educação um instrumento de equalização social, portanto, de superação da marginalidade. Já em um segundo grupo, encontra-se às teorias que entendem ser a educação um instrumento de discriminação social, logo, um fator promotor da marginalização.

O entendimento sobre a questão da marginalidade, latente em cada, é um reflexo da forma como cada uma delas percebe a relação existente entre educação e sociedade.

Assim, para o primeiro grupo a sociedade é concebida como essencialmente harmoniosa, tendendo à integração de seus membros. A marginalidade é, pois, um fenômeno acidental que afeta individualmente a um número maior ou menor de seus membros o que, no entanto, constitui um desvio, uma distorção que não só pode como deve ser corrigida.

[...]

Já o segundo grupo de teorias concebe a sociedade como sendo essencialmente marcada pela divisão entre grupos ou classes antagônicos que se relacionam à base da força, a qual se manifesta fundamentalmente nas condições de produção da vida material. Nesse quadro, a marginalidade é entendida como um fenômeno inerente à própria estrutura da sociedade. (SAVIANI, 2008, p. 04)

No primeiro conjunto, denominado por SAVIANI (2008) de grupo de teorias não-críticas, o qual compreende a pedagogia tradicional, a pedagogia nova e a pedagogia tecnicista, a educação é percebida como um instrumento de correção das distorções causadoras da marginalidade. A educação passa a ter a função de reforçar os laços sociais, promover a coesão e garantir a integração de todos os indivíduos no corpo social. A educação, nessa ótica, teria o papel de buscar a superação da marginalidade apresentando um elevado grau de independência em relação à sociedade. Essa autonomia devendo contribuir para a construção de uma sociedade igualitária, evitando a sua desarticulação.

 Inversamente a esse posicionamento o conjunto de teorias do segundo grupo, denominado de teorias crítico-reprodutivistas, o qual engloba a teoria do sistema de ensino como violência simbólica, teoria da escola como aparelho ideológico de estado (AIE) e teoria da escola dualista, apresentam um posicionamento crítico sobre a relação educação e sociedade uma vez que se busca compreender a educação remetendo-a sempre a seus condicionantes objetivos, isto é, aos determinantes sociais. 

Nessa ótica de entendimento a educação é inteiramente dependente da estrutura social a qual é geradora da marginalidade. A marginalidade é reflexo do interesse de um grupo ou classe que detendo os mecanismos de produção se apropriam dos resultados da produção social. Esse grupo constitui, portanto, um poder de dominação e busca, através da educação, perpetuar e legitimar aos demais indivíduos a condição de marginalizados.

Levando-se em conta as postulações de SAVIANI (2008), podemos perceber que o primeiro grupo de teorias, o das teorias não-criticas, apresenta uma proposta de educação enquanto que o segundo grupo, o das teorias crítica-reprodutivistas, não contém uma proposta pedagógica preocupando-se apenas em explicar o mecanismo de funcionamento da escola tal como encontra-se constituída. Desta feita, ao tratarmos a realidade encontramos o seguinte resultado:

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[...] enquanto as teorias não-críticas pretendem ingenuamente resolver o problema da marginalidade através da escola sem jamais conseguir êxito, as teorias crítico-reprodutivistas explicam a razão do suposto fracasso. Segundo a concepção crítico-reprodutivista o aparente fracasso é, na verdade, o êxito da escola; aquilo que se julga ser uma disfunção é, antes, a função própria da escola. Com efeito, sendo um instrumento de reprodução das relações de produção a escola na sociedade capitalista necessariamente reproduz a dominação e exploração. Daí, seu caráter segregador e marginalizador. Daí, sua natureza seletiva. A impressão que nos fica é que se passou de um poder ilusório para a impotência. (p. 24)

Diante essa realidade se faz necessária a retomada das nossas inquietações iniciais: a que grupo deverá servir o modelo de educação institucional? Como a educação se relaciona com as questões da marginalidade? Até que ponto o processo educativo pode e deve interferir nas questões da exclusão social? O problema permanece em aberto. Contudo, devemos retirar algumas lições.

Do segundo grupo podemos aprender que a sociedade se encontra dividida em camadas sociais com interesses antagónicos e que a educação emerge como mecanismo reforçador dos interesses dominantes, portanto intencional e reprodutora. Do primeiro grupo devemos compreender que o papel da educação deve ser guiado por uma proposta pedagógica.

Não podemos cair no ilusório que a educação pode e deverá servir como mecanismo de salvação do ideário social, mas temos que entender que não basta um olhar simplista de entendimento de como essa se processa. Muito mais que isso, é preciso desenvolver uma percepção que a educação ainda que não seja – em si própria – um instrumento para a transformação social ela talvez seja o único mecanismo com capacidade para fazer compreender e articular essa transformação.

Guiados por esse pensar, enquanto educadores, podemos politizar a nossa prática e fazermos as escolhas necessárias para desenvolvermos uma prática consciente. Enquanto artífices do fazer educativo temos a possibilidade de visualizar novos contornos educativos, ainda que esse fazer não seja uma tarefa fácil. Talvez seja mais cômodo não nos envolvermos e convivermos com a reprodução uma vez que o caminho da transformação é cheio de armadilhas e incertezas, mas já não podemos cruzar os braços e negarmos o poder que detemos em nossas mãos. A história da educação é a própria história de um povo, marcada pelas lutas e pelos desejos de mudança. Guiar a nossa prática de forma intencional e política é uma responsabilidade que temos de assumir para com essa e com as gerações futuras.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição Federal. Brasília: Senado Federal, 1998.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: O minidicionário da língua portuguesa. Coord. Marina Baird Ferreira. 7. ed. Curitiba: Positivo, 2008

LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 1994.

PILETTI, Nelson & PILETTI, Claudino. História da Educação. 7. ed. São Paulo: Ática, 2008.

SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. Campinas, SP: Autores Associados, 2008. (Coleção educação contemporânea).

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Sobre os autores
Benigno Núñez Novo

Pós-doutor em direitos humanos, sociais e difusos pela Universidad de Salamanca, Espanha, doutor em direito internacional pela Universidad Autónoma de Asunción, com o título de doutorado reconhecido pela Universidade de Marília (SP), mestre em ciências da educação pela Universidad Autónoma de Asunción, especialista em educação: área de concentração: ensino pela Faculdade Piauiense, especialista em direitos humanos, especialista em tutoria em educação a distância, especialista em auditoria governamental pelo EDUCAMUNDO e bacharel em direito pela Universidade Estadual da Paraíba. Assessor de gabinete de conselheira no Tribunal de Contas do Estado do Piauí.

Antonio Rosembergue Pinheiro e Mota

Possui graduação em História pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (2001) e Graduação em Letras (Língua Inglesa) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2014). Atualmente é professor de história - Secretaria Municipal de Educação do Município de Natal e professor de história - Secretaria de Estado de Educação e Cultura. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Antiga e Medieval e atuando como Gestor Escolar na Escola Municipal Ferreira Itajubá.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOVO, Benigno Núñez ; MOTA, Antonio Rosembergue Pinheiro. Educação e marginalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5700, 8 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71891. Acesso em: 18 abr. 2024.

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