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Oxente! Prisão preventiva, gravidade concreta e a deusa Afrodite

02/03/2019 às 22:28
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A projeção de culpabilidade no processo penal é escalonada. Há níveis de verificação da responsabilidade que, como num carrossel meritório, vão propiciando ao julgador juízos de certeza em menor ou maior grau, a depender das fases processuais.

INTRODUÇÃO DO PROBLEMA E DA HIPÓTESE:

A palavra “oxente” é uma interjeição empregada com o significado de admiração, surpresa ou mesmo estranheza. O termo é costumeiramente popular na região nordeste do Brasil, onde se pode ouvir nas mais diversas redes de comunicação[1].

E foi com estranheza, mas sem admiração, que fomos expectadores, nos últimos dez anos, da materialização de um novo argumento (fundamento) para decretação da prisão preventiva por juízes e Tribunais, a gravidade concreta do fato penalmente relevante.

Não se recusa a ideia de que a segregação antecipada é uma medida instrumental, hipotética, o instrumento do instrumento, já que a situação processual penal é meio necessário para a efetivação de uma reprimenda penal. E se é assim, o processo penal sendo o instrumento para eventual exercício do direito potestativo de punir, as medidas provisionais, e essa é a natureza jurídica da prisão preventiva, constituem o instrumento do instrumento.

Uma natureza instrumental naturalmente edificada pelas peculiaridades da segregação provisória. Tutelar situação processual ainda não finda, ao menos definitivamente, para assegurar o ajustamento do caso penal sem danos à produção probatória, esse é o principal escopo das cautelares, e assim surge a decretação dessa medida subsidiária por conveniência da instrução criminal, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal.

Mas o legislador não se limitou a tal requisito, exigindo o fumus commissi delicti, um lastro probatório mínimo para construir um juízo de possibilidade cautelar, como também permitiu a imposição corporal antecipada para garantir a ordem pública, econômica ou para assegurar futura aplicação da Lei penal, complementando o periculum libertatis.

Não são novos os ataques deitados pela dogmática em relação à viabilidade jurídica de se decretar a prisão cautelar com base em argumentos exógenos, pela lógica dos riscos, e da necessidade de uma resposta penal célere ao abalo social supostamente provocado pela prática criminosa. E os olhares recaem, nesse contexto, especialmente sobre a garantia da ordem pública. Mesmo os Tribunais Superiores, jamais conseguiram construir uma definição coerente para tal terminologia, ao menos sem oscilação em seus precedentes.

Assim, mais fácil tornou-se enumerar os casos em que a segregação não poderia se materializar para tutelar a ordem, tais como o clamor público, repercussão midiática, credibilidade da justiça e a gravidade em abstrato do delito.

Entretanto, nos últimos dez anos, as decisões se proliferaram como um vírus para admitir o surgimento de uma nova motivação cautelar, pretensamente empírica, a gravidade concreta do fato. Numa simples pesquisa no banco de precedentes do Superior Tribunal de Justiça, nossa demanda é atendida com 11.341 (onze mil, trezentos e quarenta e um) acórdãos, 49.452 (quarenta e nove mil, quatrocentos e cinquenta e duas) decisões monocráticas e 5 (cinco) informativos de jurisprudência sobre o tema[2].

Com tais arestos percebemos que as duas Turmas do STJ[3] acolhem tal fundamentação para legitimar a prisão cautelar, especialmente em casos de grande apreensão de substâncias entorpecentes, crimes contra dignidade sexual ou pelo modus operandi do (suposto) delito.


O AMORFISMO DAS DECISÕES

Por analogia, entende-se por uma forma de integração da Lei penal e processual, nos termos do art. 3º do Código de Processo Penal, provocando a aplicação de Lei existente em casos semelhantes para quais as regras aplicáveis são omissas[4], desde que in bonam partem.

No que toca a decisão interlocutória mista de pronúncia, nos termos do art. 413 do CPP, em seu parágrafo primeiro, existe uma previsão expressa de que tal juízo de admissibilidade da acusação dolosa contra à vida não permita um excesso vernacular, uma adjetivação excessiva, uma análise meritória, quando limitar-se-á aos indícios suficientes de autoria/participação e materialidade. É o juízo de probabilidade.

Lopes Júnior[5] entende que a projeção de culpabilidade no processo penal é escalonada, há níveis de verificação da responsabilidade que, como num carrossel meritório, vão propiciando ao julgador juízos de certeza em menor ou maior grau, a depender das fases processuais.

Se é assim, no despacho positivo de recebimento da declaração petitória (art. 396 do CPP) o juiz verifica a existência de indícios suficientes de autoria e materialidade (crime não-transeunte), sob pena de rejeição da inicial, quando, nesse último caso, o grau de “culpa” será reduzido. Na sentença condenatória recorrível, esse nível de culpabilidade sofre uma elevação, aumento que pode ser afastado em caso de eventual absolvição recursal.  

Nessa linha intelectiva, o juízo de culpabilidade existente, em tese, em uma decisão de pronúncia, é maior do que aquele concentrado na manifestação cartorária que impõe ou ratifica uma prisão preventiva. E, se ao pronunciar o acusado, o magistrado não pode se exceder na linguagem, invadir aspectos meritórios, sendo esta uma mera decisão processual, não seria lícito ao juiz, mutatis mutandis, enfrentar o mérito na manifestação cautelar, sob pena de nulidade do decisum.

Mas, a gravidade concreta se apega a elementos instrumentais? São dados fáticos, empíricos? Pensamos que não. Mais do que isso, tal fundamentação revela uma antecipação do meritum causae, a análise do material probatória de maneira antecipada, antes de ser assegurado o contraditório, em um grau de cognição que não se coaduna com a gênese de uma medida acautelatória.

O que é isso[6]? É enfrentar a pretensão acusatória mediante um enfrentamento da pretensão acusatória, em sede incidental, afirmando que a quantidade de droga encontrada fora excessiva, que os crimes contra a dignidade sexual foram graves ou que o investigado integra organização criminosa. E na maioria dos cases a restrição à liberdade é imposta na fase inquisitorial, quando para esses mesmos Tribunais não há obrigatoriedade quanto à incidência do contraditório e da ampla defesa, núcleo rígido de direitos fundamentais que pela previsão do art. 5º da CF88 deveria ser aplicado também na etapa investigatória. Isso por um lado.

Por outro, esses “acusados em geral” já são atingidos por um preconceito cautelar que viola a imparcialidade objetiva de um juiz que, por força do instituto da prevenção, por certo (ao menos até a aprovação do novo CPP) será o mesmo que analisará a matéria de fundo, já tendo, antecipadamente, se manifestado sobre os elementos objetivos e subjetivos que constituem a acusação.

De maneira reflexa, a presunção de inocência, que segundo PRADO[7], é um preceito que se aplica desde a notícia crime até eventual trânsito em julgado de sentença condenatória, também é violada, com uma antecipação de culpabilidade, e um desamor ao contraditório, pois a banalização da prisão propicia o empobrecimento moral e material do imputado, além de atingir o núcleo da ampla defesa. Não há reação contra a ação, dentro da cadeia. O único “re” que se perpetuará, é de uma futura reincidência. Todos perguntam acerca do rio que vem e tudo arrasta, mas ninguém comenta sobre as margens que o comprimem[8]. Uma medida que é naturalmente irreversível, pois o tempo perdido no cárcere não pode ser restabelecido.

Gloeckner afirma que a prevenção geral ou especial constitui um dos fins da pena. Dessa forma, a prevenção oriunda da aplicação da prisão preventiva, para garantia da ordem pública, é a mesma da prisão pena, não pode ser tratada como uma cautelar, que visa resguardar o processo e não antecipar uma reprimenda penal. E continua[9]:

Além de ser um instrumento que se destina ao controle social, seja fazendo as vezes de medida de segurança, enclausurando o respectivo perigoso ou ainda, executando uma pena antecipada, a garantia da ordem pública se reveste de claro autoritarismo, manifesto em sua sintática aberta, sujeita as mais flexíveis interpretações. O que vem a ser essa entidade metafísica que ronda a sociedade? Não se podendo apurar quem é o sujeito (ordem pública), como seria possível a determinação de um objeto (garantia)? Como garantir algo se este algo permanece indecifrável? Afronta, portanto, o princípio da legalidade e taxatividade em matéria penal, possibilitando o uso em larga escala, mediante o construto de aparatos sintáticos e imprecisos, constituindo-se em verdadeira e ingente institucionalização de uma prisão à la carte.

O paradoxo, nesse evidente desnivelamento processual é que em sede de habeas corpus ou qualquer contracautela prisional, a defesa técnica não pode se aprofundar nos elementos meritórios, sob pena de não conhecimento da ação impugnativa, pois “a análise da prova é perfunctória” [10].

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Chegamos ao final dessa pequena travessia concluindo que a prisão preventiva decretada com base na garantia da ordem pública ou econômica, tendo por abrigo a gravidade em concreto do delito, viola a presunção de inocência e se reflete como uma moldura falsa da rechaçada gravidade em abstrato do tipo penal. Um meio para legitimar o encarceramento em massa, e saciar no senso comum, o prazer decorrente da desgraça alheia, pela ilusão de efetividade do sistema penal produzido por conta do aprisionamento antecipado.

Mas continuamos a garantir algo que não conhecemos, e a “ordem pública” se assemelha a Afrodite, pois: como a personificação da beleza, a verdadeira aparência dessa Deusa é, na verdade, mutável, sua forma mudaria para se amoldar a cada pessoa que olhasse para ela. E assim, o problema da garantia da ordem pública continua muito mais no observador do que no objeto. O garantismo está nas pessoas, não num conceito ou definição casual de determinado instituto processual, de pessoas que não mudam de acordo com o movimento jurisprudencial.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Risco e processo penal: uma análise a partir dos direitos fundamentais do acusado. Salvador: JusPodivm, 2009.

LOPES JR., Aury. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2016.

PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014b.

STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Rafael Tomas de. O que é isto: as garantias processuais penais? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.


Notas

[1] SIGNIFICADOS. Disponível em: <https://www.significados.com.br/oxente>. Acesso em: 24 jan. 2019.

[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp> . Acesso em 02 de jan. 2019.

[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp> . Acesso em 02 de jan. 2019.

[4] ARAGÃO, Gerson. Jusbrasil.com.br. Qual a diferença entre interpretação analógica e analogia no Direito Penal? 

[5] LOPES JR., Aury. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 157.

[6] STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Rafael Tomas de. O que é isto: as garantias processuais penais? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 6.

[7] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014b, p.33.

[8] PENSADOR. Disponível em: <https://www.pensador.com/brechtbertolt>. Acesso em: 24 jan. 2019.

[9] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Risco e processo penal: uma análise a partir dos direitos fundamentais do acusado. Salvador: JusPodivm, 2009, p. 322.

[10]BRASIL.Superior Tribunal de Justiça (STJ). Habeas Corpus n. 143147. Paciente: Jonas Abib. Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Relator: Ministro Ericson Maranhão. Diário de Justiça,Brasília,DF,17mar.2016.Disponível:<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=200901445119>.Acesso em: 24 jan. 2019.

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Sobre o autor
Ivan Jezler

Professor de Direito Processual Penal na Universidade Federal da Bahia, Centro de Estudos José Aras ( CEJAS), Múltipla, LFG, Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS, Advogado Criminalista.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JEZLER, Ivan. Oxente! Prisão preventiva, gravidade concreta e a deusa Afrodite. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5722, 2 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72416. Acesso em: 23 nov. 2024.

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