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Psicopatia no serviço público

17/05/2019 às 16:35
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Escândalos em imponentes nichos do poder reabrem a discussão sobre os efeitos da psicopatia no serviço público: como psicopatas e doentes morais ocupam relevantes espaços, colocando em risco a regularidade dos ofícios e a ordem interna das instituições?

Os psicopatas estão dentro do serviço público ocupando, não raramente, postos sensíveis inclusive de chefia e comando. E a questão não é estranha. A Universidade de British Columbia (Canadá) tem estudos claros e relevantes sobre o que se denomina “psicopatas corporativos”. Eles se instalam nas grandes organizações públicas e privadas tramando o tempo todo na busca insaciável de poder. São indivíduos invariavelmente inteligentes e charmosos, mas que não se constrangem em assumir méritos que não são seus, nem em impor condições imorais aos seus subordinados.

O psicopata não é necessariamente, como se pensa na comunidade leiga, aquele que necessariamente comete crimes brutais. Nem todo psicopata é violento, embora a sua imagem esteja associada a ações em série. Afinal, as barbáries chocam o grande público porque ganham, pelos contornos de sangue, grandes espaços na mídia. O que se sabe com segurança, entretanto, é que todo serial killer é um psicopata, mas nem todo psicopata é um criminoso em série (ou mesmo autor de crime com componentes de violência física). Estima-se que 1% da população mundial seja constituída de psicopatas. Assim, os Estados Unidos da América teriam três milhões de psicopatas, embora os registros policiais naquele país possuam indicativos da existência de 50 assassinos na linha de serial killers.

A grande maioria dos psicopatas está nas ruas, nas empresas, em lares bem postos e, evidentemente, dentro do serviço público. Aqui, inclusive, por uma questão muito especial: o psicopata vive do poder. Acomodados em bons ofícios, experimentam a oportunidade singular de manipular pessoas e obter vantagens de toda espécie.

Nem sempre – como já se disse – o indivíduo acometido desse distúrbio pratica a maldade por ser este o resultado que quer. A regra é outra: é uma pessoa extremamente individualista que procura facilitar as coisas para si, sem se importar se isso causará tristeza ou prejuízo a alguém. Às vezes, causa; às vezes não. Em prejudicando terceiros, todavia, em levando colegas ao prejuízo e à desgraça, em nada se importa porque é absolutamente desprovido de sentimentos.

Sabe-se que há psicopatas sádicos. Udai Hussein, morto em 2003, filho do ditador Saddan Hussein tinha o sadismo como característica. Dirigente de time de futebol no Iraque, exercitava o estranho prazer de torturar fisicamente os atletas nas ocasiões em que o desempenho em campo não estava à altura da vitória esperada. E, assim, tanto a história quanto a literatura policial têm relatos de indivíduos de elevada perversividade. Mas estes representam a minoria. A maioria leva uma vida “normal”, sem matar, sem agredir fisicamente, mas atropelando os outros, ignorando regras, disputando espaço a qualquer custo, semeando intrigas para afastar concorrentes, mentindo, fraudando, ganhando ou tentando ganhar dinheiro à custa alheia.

Superficialmente, o psicopata é, assim, uma pessoa normal no dia a dia. Mas, ao conhecê-lo melhor, veremos que é uma criatura problemática. Ignora a família ou mantém lanços aparentemente afetivos até o momento que lhe convém; mente sistematicamente, manipula pessoas, tem ausência de remorso e de gratidão. E o principal: está sempre pronto para levar vantagem, ainda que, para isso, precise “pisar na cabeça” da pessoa mais íntima.


Na administração pública

Os meios de controle da administração pública precisam estar atentos ao fenômeno. O número de portadores deste transtorno cresce vertiginosamente nas suas entranhas. Os psicopatas – ou sociopatas – se infiltram em todos os âmbitos do tecido social, do direito à medicina, da polícia ao mundo dos negócios e principalmente na política. Escândalos que se sucedem nas Casas do Congresso Nacional e em prédios de parlamentos e de governos país afora podem ter, na origem, indivíduos acometidos, no mínimo, de doença moral.

Assim como os psicopatas dentro de grandes empresas quebram a confiança de acionistas e investidores, na medida em que manipulam dados fornecidos pelos seus auditores, os indivíduos acometidos do mesmo mal que tomam assento nos palácios ou em postos de relevo no serviço público representam um grande perigo para a sociedade. Deveriam ser identificados e banidos pelos instrumentos de controle.

Registre-se que é a ação dos psicopatas no mundo da política e da administração pública que tornou o mundo mais empobrecido e sem perspectivas para bilhões de seres humanos. Entra nessa lista, por certo, Robert Mugare que, na presidência do Zimbabwe, fez o seu povo experimentar níveis insuportáveis de pobreza, com escassez de comida e combustíveis e com uma taxa de inflação de 165.000%. Apesar disso, ao ser derrotado em eleições em 2008, manipulou a divulgação de resultados com o sentido de prolongar a permanência no poder, que já se estendia por 28 anos.

Saddan Hussein era psicopata, como Joseph Stálin. De Adolf Hitler, diz-se que não era “apenas” psicopata. Jean-Claude "Baby Doc" Duvalier, que na década de 1970 assumiu a condição de presidente vitalício do Haiti (no Caribe), é outro exemplo. Proprietário de luxuosas mansões na França, a custa de corrupção, foi um governante absolutamente indiferente ao flagelo de seis milhões de haitianos a quem competia proteger. Em linha similar, esteve Idi Amin, em Uganda. A ditadura qe implantou foi caracterizada por genocídios e pelos requintes de crueldade utilizados nas execuções, daí as alcunhas de "o talhante (açougueiro) de Kampala" e "senhor do horror", atribuídas a ele pelo povo ugandense.

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O ditador que por mais tempo esteve à frente de um regime cruel na América do Sul, Alfredo Stroessner, comandou o Paraguai entre 1954 e 1989 em um regime de corrupção, pedofilia, estupros, violações de direitos humanos e perseguição política. O Brasil não escapou do domínio dessas personalidades doentias em governos rotulados de direito ou de esquerda.

É do contingente dos portadores deste transtorno que saem, portanto, os autores dos piores crimes contra a humanidade, embora muitos deles permaneçam desconhecidos porque, sem terem rastros de sangue, não ganham visibilidade. São crimes que, muitas vezes, não fazem vítimas individuais e que são perpetuados por indivíduos “acima de qualquer suspeita”. Entram aqui, senão crimes (ou crimes ditos de pequeno potencial ofensivo), condutas que não resistem a um confronto com a moralidade.

Os psicopatas são seres atormentados e que fazem terceiros sofrer muito mais do que eles próprios sofrem.  São criaturas muito destrutivas em suas relações com o ambiente, com eles próprios e principalmente com as pessoas com quem se relacionam ou a quem, nos ofícios públicos, devem servir. Não é exagero dizer que a conduta predatória desses elementos os transforma no maior inimigo da espécie humana.

Acredita-se que o transtorno de que são acometidos tem a sua origem em dano no cérebro, no córtex frontal. Sendo algo fisiológico, não adianta punir ou ameaçar um psicopata. Ele jura, reza, promete, mas, se tiver oportunidade, fará tudo de novo.

A mídia brasileira deu destaque à prisão de um rapaz que aplicava golpes fazendo-se passar por filho de um magnata da aviação brasileira. Preso, chegou a ser colocado em uma viatura na qual um policial (possivelmente também psicopata) andou com ele um bom tempo, apontando a arma para a cabeça e fazendo roleta russa. Qualquer indivíduo normal nunca mais pensaria em se fazer passar por outra pessoa, mas o golpista já saiu do susto pensando na próxima vítima que faria. Em seguida, escreveu um livro, contando com detalhes – e com orgulho – os golpes que aplicou[1].

Apesar da inteligência acima da média, o psicopata não consegue aprender com os seus erros. Políticos brasileiros encarcerados por conta do caso judicial conhecido por “Mensalão” continuaram, de dentro do presídio, a orquestrar os seus crimes contra o erário; depois, muitos deles, foram apanhados como principais atores em outro escândalo denominado “Petrolão”. Nenhuma punição é passível de fazer com que o psicopata mude as suas maneiras, embora as práticas punitivas, de ordem médica e jurídica, sejam as que mais recaiam sobre ele.

Não ha dificuldade em identificar ações de psicopatas instalados nos mais nobres espaços do poder, na República e demais entes da federação. Flagrados pela imprensa em condutas nocivas, imorais e perversas, esses indivíduos têm desculpas para tudo, enquadrando-se no perfil descrito por Hervey Cleckley (1903-1984). Para o autor, o psicopata não se sente culpado pelos vários importunos causados a outrem, em função de suas ações irresponsáveis. Geralmente, ele se exime de qualquer responsabilidade e acusa diretamente terceiras pessoas. Outras vezes, em uma espécie de encenação, ele diz que seus problemas são devidos aos seus erros, porém, quando questionado sobre quais problemas e quais erros estariam em questão, a incoerência das suas respostas demonstra que a noção de culpa é apenas aparente.


Nota

[1] “VIPs – Histórias reais de um mentiroso”.

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Sobre o autor
Léo da Silva Alves

Jurista, autor de 58 livros. Advogado especializado em responsabilidade de agentes públicos e responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas. Atuação em Tribunais de Contas, Tribunais Superiores e inquéritos perante a Polícia Federal. Preside grupo internacional de juristas, com trabalhos científicos na América do Sul, Europa e África. É professor convidado junto a Escolas de Governo, Escolas de Magistratura e Academias de Polícia em 21 Estados. O autor presta consultoria às mais importantes estruturas da Administração Pública do país desde os anos 1990. Conhece os riscos da gestão e as formas de prevenir responsabilidades, o que o tornou conferencista internacional sobre matérias relacionadas ao serviço público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Léo Silva. Psicopatia no serviço público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5798, 17 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72422. Acesso em: 2 nov. 2024.

Mais informações

A matéria foi apresentada originalmente pelo autor na Escola Superior de Polícia durante seminário que reuniu delegados da Policia Federal que atuam nas corregedorias em todos os Estados e, depois, perante o Instituto dos Advogados do Distrito Federal.

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