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Intervencionismo e liberalismo no discurso político norte-americano do século XIX

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02/05/2019 às 14:38
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Reflete-se sobre o discurso intelectual, desenvolvido nos Estados Unidos da metade do século XIX, de oposição à expansão estatal, através da defesa da liberdade individual perante a intervenção do Estado.

A presente pesquisa consistiu em uma análise histórico-jurídica do fenômeno da dualidade entre a contrução do intervencionismo estatal e o discurso político-filosófico liberal, situado em torno da literatura norte-americana do transcedentalismo e da desobediência civil em contraposição a um cenário político e institucional delineado no século XIX pelo federalismo e pela descentralização administrativa. A “problematização” do fenômeno jurídico como objeto de estudo histórico e filosófico é o esforço genericamente empreendido nesta pesquisa. Especificamente o fenômeno jurídico aqui tratado histórica e filosoficamente como problema é o discurso de oposição radicalizada contra a expansão do poder estatal de intervenção sobre a sociedade e sobre o indivíduo representado em seu auge pela defesa da desobediência civil. Segue-se aqui a proposta da Begriffsgeschichte (KOSELLECK, 2000), que entende a historicidade dos discursos políticos através das transformações nos conteúdos semânticos das palavras e conceitos na significação do jurídico de do não-jurídico, destacando a “missão cognitiva da história do direito” que encontra sua utilidade para o presente, segundo Wieacker, “na historicidade da nossa própria existência” ao se entender a História “sob o ponto de vista da experiência humana do direito” (WIEACKER, 2004, pp. 4-5).

A questão abordada não é de definição pragmática sobre a factual expansão estatal em termos de números e dados, mas se situa no âmbito da interpretação e da compreensão do posicionamento de autores e de textos que se colocam à sua maneira contra tal situação factual. O que esta pesquisa vem evidenciar é a crítica enunciada por intelectuais como Emerson e Thoreau a uma redução da condição de “liberdade” dos indivíduos por imposições tanto de uma sociedade mais modernizada, organizada já por um sofisticado sistema de mercado, quanto de um Estado potencialmente interventor em crescimento.

Esses discursos liberais de “grandes autores”, por outro lado, foram analisados contrapostos com um conjunto de conflitos políticos e judiciais documentados nas declarações, na legislação e na jurisprudência. A intenção foi, desta forma, verificar por detrás da linguagem política da liberdade individual o contexto político de avanço ou de restrição ao poder estatal de intervenção na sociedade, na economia e na própria esfera privada do indivíduo.


Panorama histórico-conceitual

O contexto americano, desde sua fundação, é particularmente inusitado. Em geral, descreve-se os Estados Unidos anterior à década de 1930 como um modelo de economia liberal, como um Estado mínimo, ou mesmo como uma minarquia. Esta visão é a mais adequada quando contraposta à noção de Estado Interventor pelo modelo Keynesiano pós 1930, no entanto, ela não abarca precisamente as diferentes concepções políticas expressadas pelos pensadores americanos – e também por eventuais práticas de governo – desde as origens dos Estados Unidos. Desde as divergências entre Hamilton e Jefferson1 até os conflitos judiciais que trataram dos conceitos fundamentais sobre o federalismo, a relação entre os poderes da União e dos Estados federados no século XIX é uma das mais relevantes questões para o estudo “arqueológico”, sobre as origens conceituais tanto das teses intervencionistas quanto liberalizantes.

As características do suposto Estado mínimo liberal dos Estados Unidos do século XIX, que tende a ser visto pelos estudos da economia e do direito pela ausência de práticas intervencionistas estatais, são, em geral, destacadas em sua perspectiva cultural e ideológica. O individualismo capitalista, o liberalismo político e a democracia preocupada com a prosperidade são elementos históricos que envolvem os Estados Unidos e apontam para a noção de que a estrutura política liberal americana reflete o espírito da nação fundada nestes princípios (CHEVALIER, 1839). No entanto, este discurso liberal presente nos EUA de 1800 não é o único fator que restringe o avanço de um poder público de caráter intervencionista. A estrutura fragmentada das instituições políticas americanas caracterizou historicamente uma limitação para o desenvolvimento de um governo mais ativo no sentido intervencionista e provocou uma deficiência na capacidade política de formulação eficaz de políticas públicas de modo geral. Esta característica que tem suas origens já na própria elaboração do Estado federado americano é destacadamente visível no período que vai de 1787 até 1870, quando o arranjo institucional estadunidense se caracterizou principalmente pela divisão do poder e da capacidade jurídica e prática de implementar as políticas públicas básicas entre os Estados e a União (ROBERTSON; JUDD, 1989). Tem-se portanto, um contexto inicial em que o arranjo político-institucional – descentralização administrativa, autonomia estadual e federalismo – gera restrições práticas à implementação dos discursos pró intervenção estatal na sociedade americana do século XIX. Esse fator de organização jurídica do Estado vai se somar às contradições sociais e econômicas geradas pela escravidão, pela industrialização e pelos antagonismos entre norte e sul – que culminariam na guerra civil – e ao perfil construído socialmente do individualista americano, para a construção do contexto de fundo do discurso liberal-individualista presente na filosofia dos transcedentalistas da Nova Inglaterra.


As contradições políticas e econômicas do contexto histórico

Uma problemática fundamental para a compreensão dos conflitos políticos das práticas estatais por traz da linguagem política geral é a da transformação econômica e social associada com a presença e a abolição da escravidão. A questão da escravidão sempre esteve em discussão nos EUA dos séculos XVIII e XIX, culminando na Guerra Civil americana. No entanto, o conflito que dá origem à “secessão” é basicamente mais econômico do que político por natureza e pode-se mesmo dizer que até a questão ideológica por trás dos ideais de liberdade e igualdade teriam ficado em segundo plano diante da disputa econômica entre o sul agrícola e o norte industrial (HEFFNER, 1999, p. 125). Para além desta interpretação sócio-econômica bem consolidada sobre este período histórico, como certo se têm o papel discursivo adotado pelas duas frentes no sentido de atrair defensores para uma causa geralmente fundamentada mais como moral do que como política ou econômica.

No âmbito retórico ambos os lados assumiram posturas vigorosamente radicais. Os sulistas defendiam-na abertamente com um discurso racionalizador, através da apologia à escravidão como em conformidade com o Direito (natural e positivo), com a história e as escrituras (do antigo testamento quanto aos povos dominados) e mesmo com as ciências mais modernas (que estariam por evidenciar a inferioridade biológica do negro). Por outro lado, os abolicionistas do Norte declamavam incansavelmente a imoralidade e a viciosidade que carregava consigo a escravidão e todas as suas conseqüências sociais e políticas despóticas, por assim dizer; e mais do que uma argumentação racional, os nortistas levantavam também a opinião de um grande público que dava força à causa abolicionista (HEFFNER, 1999, p. 127).

A escravidão que foi levada às colônias norte-americanas em 1619 entrou, ao longo do século XVII e seguintes, gradualmente em consonância com uma nova estruturação econômica das colônias meridionais, baseada na exploração latifundiária de monoculturas voltadas para o mercado internacional (plantation), servindo-lhe de mão-de-obra básica para esta atividade que, para além de seu aspecto econômico, vai estruturar estas sociedades em seus moldes próprios e em suas relações de dominação típicas das associações patrimonialistas2.

O norte, por sua vez, possui um desenvolvimento histórico profundamente diferente do sul desde a época colonial. As características populacionais, o clima e principalmente a economia são recorrentemente enumerados como fatores que antagonizam o Norte e o Sul. Assim pode-se destacar que “no século XVIII, a Nova Inglaterra[...] apresentava já uma economia com um grau relativamente elevado de complexidade” e que este “contraste mais acentuado opunha o grupo mais setentrional ao das colônias meridionais e seria de extrema importância para o futuro, pois trazia consigo o germe do antagonismo entre o Norte e o Sul, cuja exacerbação levou à Guerra de Secessão” (REMOND, 1989, p. 4).

A estrutura econômica que na Nova Inglaterra vai se apresentar, desde a época colonial, já “relativamente complexa” e variada, após a independência e a construção dos Estados Unidos, cresceria exponencialmente a partir de então nos rumos de uma economia industrializada e socialmente organizada em torno do mercado capitalista. Em termos weberianos, enquanto a sociedade do Sul vivia sob laços de relações de dependência e dominação patrimonial, o Norte se desenvolvia rapidamente nas direções da burocratização das relações sociais e da dominação racional-legal típica do capitalismo industrial. Seria de se esperar assim, de acordo com a própria teoria histórico-sociológica de Weber, que logo estas duas sociedades antagônicas entrassem em um conflito inevitável e que, nos termos que descrevem a marcha para a modernidade através da racionalização dos sistemas sociais, concluiriam necessariamente no predomínio da economia e da sociedade burocratizada sobre a patrimonialista. Uma discussão análoga, no contexto brasileiro, é feita por Raymundo Faoro, que demonstra que historicamente foi possível o desenvolvimento de uma economia capitalista moderna em convívio com práticas amplamente patrimonialistas no campo social, político e na própria estrutura do Estado Brasileiro - colonialismo, clientelismo, corrupção generalizada, etc (FAORO, 2001). Quanto ao caso americano o próprio Weber analisaria esta característica das práticas contra-burocráticas na política e na Administração Pública, quando a Administração estatal americana ficou, no século XIX, até a civil service reform, conhecida como um spoils system (WEBER,1978).


A sociedade do novo mundo e o perfil americano

A percepção histórica de que a mentalidade política americana do século XIX representava o que haveria de mais instrumental, mais moderno e economicamente mais progressista em todo o mundo foi ressaltada não só pelo senso comum, mas também por grandes autores. Max Weber, ao visitar os Estados Unidos em 1904 descreveu um contexto único que caracterizava o cúmulo de uma cultura social produzida durante todo o século anterior. Em carta a sua mãe, Weber observara:

Depois do trabalho, os operários freqüentemente têm de viajar horas para chegar à sua casa. A estrada de ferro está falida há anos. Como sempre, um depositário, que não tem interesse em apressar a liquidação, administra seus negócios; por isso não são comprados vagões novos. Os carros velhos constantemente enguiçam, e cerca de 400 pessoas por ano morrem ou ficam aleijadas em desastre. Segundo a lei, cada morto custa à companhia cerca de 5.000 dólares, pagos a viúva ou herdeiros, e cada aleijado custa cerca de 10.000 dólares, pagos ao próprio. Tais indenizações são devidas enquanto a companhia não adotar medidas de precaução. Calculou-se que as 400 mortes por ano custam menos do que as tais precauções necessárias. E, por isso, a companhia não as adota (WEBER apud AMORIN).

Este estereótipo de comportamento social instrumental e burocrático, pautado em poucos valores sociais e muita racionalidade, dá à nação americana uma imagem de progresso em direção ao individualismo exacerbado e a uma forma radical de um liberalismo que se esquiva à regulação estatal e social. Esta característica ressaltada pelos estrangeiros foi, em maior ou menor medida, assumida pela sociedade americana e criticada, com grande força, pelos filósofos transcedentalistas da Nova Inglaterra.

Um dos retratos mais interessantes e importantes para a análise aqui proposta se encontra na obra deixada por Michael Chevalier, que, do mesmo modo que Tocqueville, foi enviado pelo governo da França aos Estados Unidos em 1834 para investigar as instituições públicas americanas e acabou produzindo uma grande análise sobre a sociedade, os costumes e a política nos Estados Unidos.

Ao contrário do pessimismo demonstrado por Weber, Chevalier retrata com entusiasmo muitos dos aspectos inovadores do povo americano. A sociedade e as instituições do novo mundo construíram uma nova forma de fazer política. O sistema político americano, no entanto, não é puramente “materialista”. A prosperidade material tem um papel político fundamental para o desenvolvimento da própria liberdade política presente no sistema democrático na opinião de Chevelier:

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Before passing to the institutions best suited to develop industry, I would observe that a political system which should be particularly calculated to create and sustain them, cannot be taxed with materialism. Industry influences the moral nature of man; the material prosperity of a people has an important bearing on the public liberties. Men cannot practically enjoy the rights secured to them by law, when they are manacled and fettered by poverty; the English and their children in America call competency, independence. The Anglo-Americans have reached wealth through their political liberty; other nations, and we, I think, are of the number, must arrive at political franchises by the progress of national wealth. (CHEVALIER, 1839, p. 185)

Na medida em que a população americana é mais livre, de acordo com as suas condições materiais, ela é mais capacitada para os assuntos públicos, valorizando mais a política e defendendo a sua autonomia privada e o seu auto-governo.

In political affairs, the American multitude has reached a much higher degree of initiation than the European mass, for it does not need to be governed; every man here has in himself the principle of self-government in a much higher degree, and is more fit to take a part in public affairs (CHEVALIER, 1839, p. 230).

Por outro lado, apesar da exímia capacidade de discutir a política de modo geral, a austeridade americana refletiria também na capacidade da democracia de produzir ali um Estado com força para impulsionar políticas públicas para a sua própria população. A aversão da população à criação de novos impostos3 reflete a falta de obras públicas e a ausência de políticas públicas “desenvolvimentistas”, como demonstra o relatório sobre a cidade de Cincinnati:

Cincinnati has, however, no squares planted with trees in the English taste, no parks nor walks, no fountains, although it would be very easy to have them. It is necessary to wait for the ornamental, until the taste for it prevails among the inhabitants; at present the useful occupies all thoughts. Besides, all improvements require an increase of taxes, and in the United States it is not easy to persuade the people to submit to this. Cincinnati also stands in need of some public provision for lighting the streets, which this repugnance to taxes has hitherto prevented (CHEVALIER, 1839, p. 105).

A repulsa à taxação por parte da população é, portanto, um dos elementos determinantes para a política norte-americana. Em seus relatórios Chevalier criticou o modelo europeu de cobrança de impostos que diferencia ricos e pobres, enquanto enalteceu o espírito voltado ao trabalho e à prosperidade nos Estados Unidos.

The attention of the benevolent in Europe has long been directed towards the reduction of the public expenditures, and a more equal distribution of the burden of taxation, as a means of improving the condition of the poor; but all these plans, supposing them to succeed according to the views of the projectors, would merely amount to taking a few coppers less from the pockets of the poorer class (CHEVALIER, 1839, p. 183).

Mais do que diminuir o peso dos impostos sobre os pobres, o Novo Mundo encontrava no trabalho livre a fonte de riqueza e de união entre o interesse público e o privado:

Labour is an admirable instrument of concord, for all interests gain by the prosperity of industry. This is the pure and true source of all wealth, public and private. (…) The admirable prosperity of the United States is the fruit of labour, much more than of any reform in taxation. The soil has not the luxuriant fertility of the tropical regions; roasted larks fly into nobody’s mouth; but the American is a model of industry (CHEVALIER, 1839, p. 183).

A congruência entre o trabalho individual e o interesse público se localizava justamente, para Chevalier, na construção do perfil do americano nascido para o trabalho:

Tall, slender, and light of figure, the American seems built expressly for labour; he has no equal for despatch of business. Nobody also can conform so easily to new situations and circumstances; he is always ready to adopt new processes and implements, or to change his occupation. He is a mechanic by nature; among us there is not a schoolboy who has not made a vaudeville, a ballad, or a republican or monarchial constitution; in Massachusetts and Connecticut, there is not a labourer who has not invented a machine or a tool. (CHEVALIER, 1839, p. 152).

É para o trabalhador pobre e protestante, que busca o crescimento espiritual através do enriquecimento material e social, que a América fala:

“Work,” says American society to the poor man; “work, and at eighteen years of age, although a mere workman, you shall get more than a captain in Europe. You shall live in plenty, be well-clothed, well-lodged, and be able to lay up a part of your earnings. Be attentive to your work, be sober and religious, and you will find a devoted and submissive partner of your fortunes; you shall have a more comfortable home, than many of the higher classes of the commonalty in Europe. From a journeyman, you will become a master; you will have apprentices and dependents under you in turn; you shall have credit without stint; you shall become a manufacturer or agriculturist on a great scale; you shall speculate and become rich; you shall found a town and give it your own name; you shall be a member of the legislature of the State, or alderman of the city, and finally member of Congress; your son will have as good a chance to be made President as the son of the President himself. Work, and if the fortune of business should be against you, and you fall, you will soon be able to rise again; for a failure is nothing but a wound in battle; it will not deprive you of the esteem or confidence of any one, if you have always been prudent and temperate, a good christian and a faithful husband.” (CHEVALIER, 1839, p. 153).

Para concluir o perfil do americano, Chevalier propõe uma comparação entre um simples camponês europeu e um mesmo camponês americano:

Examine the population of our rural districts, sound the brains of our peasants, and you will find that the spring of all their actions is a confused medley of the Bible parables with the legends of a gross superstition. Try the same operation on an American farmer, and you will find that the great scriptural traditions are harmoniously combined, in his mind, with the principles of modern science as taught by Bacon and Descartes, with the doctrine of moral and religious independence proclaimed by Luther, and with the still more recent notions of political freedom. He is one of the initiated (CHEVALIER, 1839, p. 229).

O americano médio, partícipe da democracia jacksoniana, é, portanto, alguém que conhece os princípios da ciência, que discute suas doutrinas religiosas e que defende a liberdade política. Assim é caracterizado, pelo menos em uma perspectiva, o comportamento social e a linguagem política do americano da primeira metade do século XIX.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COELHO, Fernando Nagib Marcos. Intervencionismo e liberalismo no discurso político norte-americano do século XIX. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5783, 2 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72733. Acesso em: 21 nov. 2024.

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