Questão do radicalismo liberal e da desobediência civil na Nova Inglaterra
Uma questão radical que exige uma especial problematização é o discurso anti-estatal que objetivará ampliar os direitos individuais de liberdade (clássicos) contra a intervenção do Estado e mesmo através da “desobediência civil”, como indica o mais famoso “texto político” do filósofo Henry D. Thoreau. A partir desta contingência histórica de expansão da intervenção estatal que a importância do texto-problema – A desobediência civil, ou Os direitos e deveres do indivíduo em relação ao governo – se destaca. A fundamentação do texto se coloca como universal e transcendental, em torno da natureza humana, mas o fenômeno que ele representa está claramente relacionado a uma contingência. O fenômeno é situado em um contexto identificável e relacionado a conceitos próprios de uma época que pode ser descrita através de tais termos como “expansionista”. Destaca-se neste sentido o desenvolvimento, ainda que inicial, de uma burocratização estatal, mas também em termos de mercado, a concentração de poderes pela União em detrimento aos Estados e o fortalecimento das funções estatais no campo da economia e da regulação sobre aspectos da sociedade antes pouco significativos (regulamentação comercial, urbana, ferroviária, etc.).
Com o objetivo de discutir a questão da desobediência civil e amplificar a análise dos fenômenos jurídicos em torno desta, é que se deve buscar uma releitura histórica e filosófica do problema exposto, através do estudo dos textos de expressão politicamente liberal da corrente de pensamento conhecida como transcendentalismo, na literatura americana do século XIX.
Além do notável valor filosófico dos textos, também o contexto é extremamente rico e diverso. Os Estados Unidos desses tempos traz consigo tradições e características construídas por uma história relativamente recente de independência, revolução e consolidificação política e econômica e esse conjunto de características se quer e se faz mostrar muito desvinculada do “padrão europeu” de pensamento político e jurídico.
Destacadamente, o período definido como “renascimento americano” enuncia a singularidade do ambiente cultural dos EUA, sua emancipação e sua potencialidade4. É nos discursos realizados pelos “letrados americanos” que se encontravam fundidos os debates sobre os deveres civis, sobre o direito natural e sobre a democracia popular, mas também sobre a religião, a moral e a ciência modernas, tudo, em geral, sem profundas distinções entre as propostas científico-filosóficas, as criações da estética artístico-literária e até mesmo o ministério religioso.
Questão da análise densa das fontes literárias
Para uma análise densa de um texto-problema como este acima, aspectos que destacam a autonomia da obra literária devem ser destacados. Foi de maneira muito diversa, em comparação com os juristas e filósofos europeus, que os escritores americanos expuseram os problemas de uma época marcada pelo desenvolvimento econômico, pela expansão estatal, pela escravidão e pela perplexidade do homem comum perante o desencantamento do mundo.
Não fora através de uma rigorosa análise teórica que esses autores manifestaram suas posições e trouxeram suas propostas para o público e para o debate político, mas sim por via de um sincretismo discursivo que se caracteriza pelo apelo retórico embasado na fusão entre filosofia (política, da história, da ciência) com a literatura de prosa e de poesia.
Assim, diferentemente da leitura lógica e formal – de uma hermenêutica analítica – lançada sobre os textos jurídicos da tradição européia – marcados pela especificação dos termos e dos elementos teóricos delimitados em disciplinas cientificamente estruturadas – a interpretação dos textos aqui estudados, dos transcendentalistas norte-americanos, deve seguir então os mesmos critérios retóricos destes discursos enunciados, através de uma indissociação entre os gêneros da filosofia e da literatura – por uma hermenêutica sintética, por assim dizer.
Em outras palavras, para a melhor compreensão de um texto que enuncia conteúdos essencialmente filosóficos (da teoria política e do Direito) estruturados em um discurso amplamente retórico, deve-se levar em consideração que a análise dedicada ao texto não pode buscar um enquadramento cientifico paralelo ao modelo de análise adotado pela ciência do Direito positivo, e que as propostas daqueles textos transcendentalistas dificilmente se mostram teórica e logicamente estruturadas de modo a derivar suas conclusões “verdadeiras” das suas premissas “verdadeiras”; mais do que isso, buscam o sucesso retórico de suas posições através dos mais diversos recursos literários.
Por isso, aqui já se propõe uma junção entre a análise literária e a análise filosófica para a interpretação de um texto de tais características, pois “assim como a filosofia e a ciência não constituem universos próprios, tampouco a arte e a literatura constituem um império da ficção que pudesse afirmar sua autonomia em face do texto universal” (HABERMAS, 2002, p. 268)5 e, desta forma, tanto a lógica quanto a retórica do discurso são elementos significativos para o estudo desses textos.
Esta base de análise literária serve não somente aos textos transcendentalistas, mas também para a interpretação compreensiva das diversas fontes escritas utilizadas na pesquisa. Não obstante a análise literária das fontes, a pesquisa também exerce um esforço no sentido de reconstruir o contexto do discurso como problema para a história do direito.
Fundamentos filosóficos do discurso
As propostas dos filósofos como Emerson e Thoreau para a sociedade americana pertenciam com um maior ou menor grau de independência a uma corrente de pensamento comum na Nova Inglaterra, chamada de transcendentalismo. As escolas americanas do inicio do século XIX debatiam doutrinas morais e filosóficas que de certa forma contrapunham a produção intelectual dominante na Inglaterra, o empirismo epistemológico e o utilitarismo moral.
Logo, a formação cultural e acadêmica dos pensadores liberais americanos como os transcendentalistas seria profundamente envolvida pela negação da tabula rasa, e a construção de uma proposta moral baseada no pensamento do indivíduo que percebe as verdades filosóficas através do exercício do próprio entendimento. Nas palavras de HOWARD:
“It [a tabula rasa] violated the well-established American belief in self-evident truths, and Harvard would have none of it as an absolute principle. The hard-headed New Englander was willing to assume that the external world was self-evident real, most of then were quite willing to accept God on the same basis, and they have found a school of kindred souls in Scotland who were willing to assert as much in an aggressive philosophical system” (1972. p. 138).
A base do pensamento moral e filosófico dos liberais americanos da corrente de Emerson e de Thoreau se sintetiza na doutrina que diz que a verdade é manifesta6 e acessível ao senso comum por todos os homens. O próprio Emerson conheceu a chamada Scottish Common-Sense school of philosophy, que defendia que todos os seres humanos, em todos os tempos e lugares, tinham um senso comum de realidade, de moralidade e de beleza ideal, destacando o papel determinante de toda a cultura sobre os aspectos da hermenêutica, da estética e da ética7.
Para Emerson, portanto, a consciência agiria como uma faculdade racional que transcendia o “entendimento” lockeano e daria acesso à natureza, ao conhecimento material do mundo através do conhecimento do próprio espírito da razão humana. O estudo da essência humana e da natureza se dá na relação entre esses dois elementos – o homem e a paisagem – mediados pelo pensamento. O conhecimento filosófico que é típico da cultura americana é a ênfase do estudo da natureza como fonte da verdade. Na análise de Fernandes Alves,
Se na tradição inglesa as primeiras obras se reportam aos séculos XVII e XVIII, na América a escrita sobre natureza surge associada à curiosidade acerca do Novo Mundo descoberto. Aos exploradores, cientistas e naturalistas eram pedidos mapas e inventários; dessas acções resultou a ideia de que a América era sobretudo natureza. Na base da escrita sobre a natureza encontra-se a vontade de narrar uma realidade completamente nova aliada à procura de palavras e perspectivas que efectivamente traduzam essa nova circunstância do homem no Novo Mundo. Consequentemente, a natureza e a forma – paradoxal – como tem sido lida e interpretada constitui um elemento essencial da matriz cultural americana (2006).
Esse conhecimento da existência não se confunde com o conhecimento das ciências exatas (ou naturais). Ele se baseia na vivência da natureza e da humanidade, não é uma experiência empírica objetiva. A experiência da paisagem, dos próprios atos e pensamentos pertence ao universo das sensações, mas não pode ser mesurada ou determinada em quantidades.
Não nos pode surpreender, portanto a ocorrência cultural de uma espécie de “regresso à natureza”, levado, por vezes, a formas radicais, como foi o caso do isolamento de Thoreau, durante dois anos, num bosque nas vizinhanças do lago Walden, perto de Concord, no Massachusets. Na obra que esse influente pensador norte-americano dedicou ao seu exílio voluntário numa paisagem, nessa altura, ainda natural, as razões apresentadas apontam para um dos desiderados patentes noutras meditações filosóficas sobre a paisagem, a saber, o desejo por uma vida autêntica e plena (SOROMENHO-MARQUES, 2001, p. 153).
É a partir do juízo crítico, da reflexão, que o filósofo transcedentalista encontra em si a idéia de transformação e de reconstrução como exigência.
Este é o âmago do livro de Thoreau; o autor parte da natureza para fazer o homem olhar-se a si mesmo, ou seja, o seu pensamento responde às associações que a paisagem lhe suscita. Se as águas de Walden são serenas, já as dos rios remetem para a passagem, para a fluidez: “Há no mundo um fluxo incessante de novidades” e “a vida em nós é como a água no rio”: repleta do que não sabemos (FERNANDES ALVES, 2006).
No ato de pensar transforma a si e assim não é mais capaz de se omitir em relação ao mundo.
Textos como The American Scholar (EMERSON; WHICHER, 1957; EMERSON; MASTERS, 1965) reivindicam ara o pensamento americano um título de original e independente. Para Emerson, o ser humano é capaz de compreender as leis da natureza, que são a organização das coisas do mundo que se inter-relacionam e interagem com aquele ser humano; essas leis são as leis do seu próprio pensamento.
Por isso, Emerson afirma que as sentenças conhecer a natureza e conhecer a si mesmo fazem parte do mesmo enunciado. Aquilo que os homens discutem, que é sempre tema de estudo e dedicação entre os pensadores, está sempre ligado à reprodução do que outrora se encontrou na busca por uma verdade qualquer. A filosofia, a história, os livros em geral adquirem este papel de caminho da verdade; mas a verdade não é reproduzida como as folhas de escrito, ela é experimentada constantemente no ato de pensar a vida, quando a vida passa a ser ela mesma uma manifestação da verdade.