Novo Código de Processo Civil/2015: precedentes judiciais e incidente de resolução de demandas repetitivas

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20/03/2019 às 17:29
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ANTINOMIAS DOUTRINÁRIAS

Com a força vinculante dos precedentes no ordenamento jurídico brasileiro, o impacto dela em alguns princípios merece ser analisado, com o escopo de adequá-los à “nova” realidade.

É cediço que toda inovação traz consigo posicionamentos doutrinários divergentes. Para alguns autores, o IRDR pode ser um “eficaz mecanismo de resolução de litígios em massa”. (ABBOUD; CAVALCANTI, 2015). Para outros é um “problema”. (MARINONI et al., 2017).

Os que são contrários ao incidente, alegam que há inconstitucionalidades que violam princípios basilares. Diante desse panorama, Abboud e Cavalcanti (2015) apontam os seguintes: independência funcional dos magistrados e a separação funcional dos poderes, o contraditório, o direito de ação e ao sistema de competências da Constituição.


VIOLAÇÃO À INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL DOS MAGISTRADOS E À SEPARAÇÃO FUNCIONAL DOS PODERES

De acordo com Abboud e Cavalcanti (2015), não há previsão expressa na Constituição da República de 1988 a respeito da vinculação das decisões dos juízes hierarquicamente inferiores às decisões prolatadas pelos tribunais, como propõe o IRDR, ou seja, defendem que o efeito vinculante (como ocorreu com as súmulas vinculantes) é matéria que deve estar expressa na Constituição, sob pena de ofender a independência funcional dos magistrados e a separação funcional dos poderes.

Há o entendimento, todavia, que a emenda constitucional para tratar do IRDR seria desnecessária porque não atingiria, em tese, a Administração Pública. Os autores questionam:

Se a questão jurídica a ser dirimida no incidente for referente a um tributo federal ou municipal, o julgamento não atingirá respectivamente a União e os Municípios? Obviamente que sim. Do contrário teríamos que sustentar que nas lides em que figurar o Poder Público, a decisão paradigma do incidente vinculará pela metade, tão somente o particular. (ABBOUD; CAVALCANTI, 2015, p.4)

Conforme os autores supracitados, a instituição do sistema de decisões vinculativas dentro desse cenário levará o Judiciário a se concentrar na criação e aplicação da norma, violando a separação funcional dos poderes (tripartite) e, por conseguinte, o regime democrático.


VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO

Ainda conforme Abboud e Cavalcanti (2015), o IRDR fere o contraditório na medida em que não há “controle judicial de adequação da representatividade”, ou seja, não é prevista a possibilidade de o tribunal controlar a representação adequada, pois as partes de quaisquer demanda repetitiva pendente no tribunal poderá dar ensejo à instauração do incidente.

Mais sério aspecto apontado pelos autores é o fato de que a decisão favorável ou não terá eficácia vinculante sobre todos os processos afetos ao IRDR suscitado, violando o direito ao contraditório de todos os litigantes, até mesmo os de causas futuras: “A ideia de julgamento abstrato do IRDR permite aplicar a tese jurídica às causas futuras, referentes a litigantes que não tiveram qualquer possibilidade de participação e influência no julgamento coletivo” (ABBOUD; CAVALCANTI, 2015, p. 5).

Nunca é demais asseverar, como acrescentam Rodrigues e Veloso (2017), que a inclusão da participação das partes é uma forma de validar o Estado Democrático de Direito, tendo em vista a teoria neoinstitucionalista10 do processo, perspectivando que:

o espaço processual deve dar garantia ao debate entre as partes, [...] Essa perspectiva retira a figura do juiz Hércules, que, com seus poderes, decide não dar ao réu espaço à discursividade. Desse modo, ao réu deve ser dado o direito de participar de todas as fases do processo, de modo a ter uma ampla defesa que o permita estar em paridade de armas com a parte adversa. (RODRIGUES; VELOSO, 2017, p. 130)

Para Marinoni et al (2017) a sistemática do NCPC/2015, ao regular o IRDR não tutela os direitos dos litigantes, sendo um risco ao sistema decisório, aduz mais precisamente que:

[...] resolver uma questão que determina a solução de diversos litígios está longe de ser o mesmo que resolver uma questão de direito que agrega sentido à ordem jurídica e, sobretudo, apenas tem a intenção de orientar a sociedade e os diferentes casos futuros que possam ser resolvidos pela mesma regra de direito ou pela mesma ratio decidendi. (MARINONI et al, 2017, p.607)

No entendimento do autor supracitado, a melhor saída para evitar a lesão ao contraditório seria tornar presentes no IRDR os legitimados à tutela dos direitos individuais homogêneos11, haja vista que o incidente não pode se desvincular da participação.

Em consonância, Junquilho e Cerqueira (2016, p.275), alertam que a participação é “elemento primordial para se aferir a legitimidade das normas”, em uma perspectiva habermasiana de democracia discursiva/deliberativa. Nesse sentido, o IRDR fere não apenas o contraditório, mas também a participação democrática.


VIOLAÇÃO AO DIREITO DE AÇÃO

Assim como no direito ao contraditório, o direito de ação é frontalmente atingido. A vinculação do IRDR não permite ao indivíduo optar pela ação individual, sendo praticamente absoluta:

O novo sistema processual não adota o sistema de opt-in12, de modo que todos os processos repetitivos serão alcançados pela decisão de mérito, independentemente de requerimento nesse sentido. [...]

Do mesmo modo, o NCPC não segue o sistema de opt-out13, uma vez que não aceita o exercício do direito de autoexclusão, com a possibilidade de o litigante prosseguir com sua demanda isoladamente. (ABBOUD; CAVALCANTI, 2015, p.6)

Essa vinculação fere o direito fundamental de ação previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988, ao não fornecer mecanismos de exclusão ou escolha aos litigantes abrangidos pelo IRDR.

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Além disso, a vinculação atinge causas futuras impossibilitando a revisão da tese jurídica por meio dos mecanismos processuais como improcedência liminar do pedido ou risco de multa por litigância de má-fé, entre outros; sendo necessária a alteração legislativa para atualizar a jurisprudência.

Para Abboud e Cavalcanti (2015, p.8), “o Brasil adquiriria mais uma característica de originalidade, seria o único pais (sic) em que a legislação atualizaria a jurisprudência e não o contrario.” Alertam os autores que, nesse sentido, a tese jurídica não seria “ponto de partida” para os jurisdicionados, mas como “linha de chegada”, correndo a jurisprudência um sério risco de engessamento.


VIOLAÇÃO À COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS

O art. 985, I do NCPC/2015 determina que uma vez julgado o IRDR, a tese jurídica será aplicada a todos os processos que tratem da mesma questão de direito, inclusive em face daquelas que tramitam nos juizados especiais do respectivo Estado ou região.

Há quem elogie tal medida e existe quem defenda sua inconstitucionalidade. Em sentido adverso, Didier Jr, (2017) afirma não haver inconstitucionalidade nisso, propugnando que:

Se é verdade que não há hierarquia jurisdicional entre os juízes dos juizados e os tribunais, não é inusitado haver medidas judiciais em tribunais que controlam atos de juízos a eles não vinculados. O STJ, por exemplo, julga conflito de competência entre juízos comuns e juízos trabalhistas, embora estes últimos não estejam a eles vinculados. (DIDIER JR., 2017, p.744)

Abboud e Cavalcanti (2015), por outro lado, alegam que embora o STF tenha decidido diversas vezes que os juizados especiais não estão sujeitos à jurisdição dos Tribunais de Justiça dos Estados e dos Tribunais Regionais Federais, o IRDR suspende os processos, vinculando-os à tese jurídica emitida, violando a competência dos juizados especiais.


O IRDR NA PRÁTICA: A APLICAÇÃO IN CASU

Em 14 de abril de 2016, no Rio de Janeiro, foi julgado o primeiro IRDR14 do país, que tratada do acréscimo de 11,98% (onze vírgula noventa e oito por cento) à remuneração dos servidores públicos estaduais, a título de diferenças salariais decorrentes da conversão da moeda URV (Unidade Real de Valor) para o Real, em 1994, assim como do pagamento das parcelas eventualmente devidas de forma retroativa. Como é comum aos IRDR o tema é objeto de diversas ações em tramitação naquele tribunal.

Conforme o CNJ15, já são mais de 21 (vinte e um) mil feitos sobrestados por efeito do IRDR, sendo que, até o momento, 38 tribunais integram a base de dados: Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior do Trabalho, Tribunais Regionais Federais da 1ª, 2ª, 3ª, 4ª e 5ª Regiões, Tribunais de Justiça dos Estados do Acre, Alagoas, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe, Tocantins e do Distrito Federal e Territórios, além dos Tribunais Regionais do Trabalho da 3ª, 4ª, 5ª, 6ª, 7ª, 8ª, 12ª, 13ª, 14ª, 17ª e 18ª Regiões. 

Para efeitos de exemplo, cita-se o IRDR 1.0000.16.0328084/002 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG)16, que analisa a aplicabilidade da tabela de remuneração de advogados dativos, tema bastante polêmico. Muitos advogados têm ingressado na Justiça questionando os honorários arbitrados pelos magistrados. Desde 2012, o TJMG, a Advocacia-Geral do Estado (AGE-MG) e a Ordem dos Advogados do Brasil/ Seção Minas Gerais (OAB/MG) mantinham um termo de cooperação no qual foi estabelecida uma tabela para a remuneração. Todavia, em novembro de 2013 a OAB rescindiu o termo.

O incidente deverá definir se a aplicação da tabela do convênio é obrigatória durante o período de sua vigência e se, mesmo após sua revogação, ela pode ser utilizada como parâmetro pelo juiz. Alguns desembargadores entendem que a observância da tabela era obrigatória durante a vigência do convênio, mas não poderia ser aplicada depois de novembro de 2013. Outros admitem a utilização após o fim do convênio como parâmetro, entendendo ainda que a aplicação não era obrigatória nem mesmo durante a vigência, dada a autonomia do juiz em fixar os honorários.

Ainda há muitas dúvidas quanto à aplicação do IRDR, havendo divergência na mera admissibilidade dos mesmos, assim como cisões doutrinárias e jurisprudenciais. O fato é que o incidente já é uma realidade, embora com contornos ainda a definir.

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Sobre a autora
Fernanda Dias

advogada.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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