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O ICMS como instrumento de redução das desigualdades regionais e sociais

01/04/2019 às 14:00
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Como instrumento político e jurídico, deve o sistema tributário trabalhar para a consecução dos objetivos constitucionais, sendo o mais relevante o combate às desigualdades sociais e regionais. E aqui entra o ICMS.

Introdução

A alta carga tributária do país, somada à duvidosa qualidade dos serviços contraprestados pelo Estado, particularmente nas áreas de educação, saúde, segurança pública e infraestrutura, torna o quadro social crítico. Nosso sistema tributário é burocrático, ineficiente e muitas vezes incoerente. Uma de suas piores facetas é sua complexidade, em parte reflexo da forma federativa de Estado insculpida em nossa Constituição. São quase seis mil entes federados, entre municípios, estados, distrito federal e União. Tamanha complexidade aliada a um legado histórico de ênfase política nos próprios interesses, em detrimento das prioridades do federalismo, produziu um sistema de tributação significativamente fracionado em termos de espécies, de competências e destinação dos recursos tributários.

No Sistema Tributário Nacional, um dos tributos mais polêmicos de nosso sistema, se não o mais controverso, é o ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços. Pelo menos dois fatores colocam este imposto sob os holofotes de legisladores, administradores públicos, juristas, economistas e empresários: sua excepcional representatividade no conjunto de receitas tributárias estaduais e sua potencial utilização como veículo de atração e disputa de investimentos privados e receitas fiscais. A principal consequência prática deste cenário de competição entre entes estaduais, incluindo-se ainda neste grupo o Distrito Federal, é a criação de um ambiente propício a guerra fiscal dentro da administração pública direta.

Sob outra perspectiva, sabe-se que nossa Constituição Federal institui entre seus preceitos fundamentais a redução das desigualdades sociais e regionais. É o que está positivado no texto constitucional de 1988. Cumpre enfatizar que nossa Magna Carta tem como um de seus pilares principiológicos a igualdade, traduzida hermeneuticamente como igualdade material. Este princípio estatui que os diferentes sejam tratados de forma diferente, na medida de sua diferença. O objetivo da redução das desigualdades e o princípio da igualdade, quando conjugados, pavimentam o caminho para que o sistema tributário seja verdadeiramente imbuído do espírito constitucional que o instituiu, desdobrando-se no plano concreto em uma solução jurídica que alcance o interesse público através da intervenção estatal no domínio econômico. 

Este artigo aborda esta temática, através de pesquisa bibliográfica, pura, qualitativa, e descritiva, discorrendo brevemente sobre o Sistema Tributário Nacional e em particular sobre o tributo ICMS para, ao contrastar a realidade tributária brasileira com objetivos constitucionais vis-à-vis estados e distrito federal, apresentar o racional básico de uma proposta de utilização do ICMS como instrumento estatal para atenuação das desigualdades econômicas e sociais perceptíveis em cada região de nossa federação.


1 O Sistema Tributário Brasileiro

A Constituição Federal de 1988 delimita o Sistema Tributário Nacional no primeiro capítulo do título VI de seu texto, derivando sua arquitetura a partir dos seus princípios constitutivos e das características estruturantes do Estado que da Carta Cidadã resulta. Os tributos, segundo a teoria tripartite, tese expressamente aceita em nosso código tributário nacional, se dividem em impostos, taxas e contribuições. Além do desdobramento em espécies, acrescenta-se uma outra dimensão no sistema, a saber a competência tributária. Esta é estabelecida constitucionalmente para cada ente federativo, de forma privativa, cumulativa ou residual – esta última como prerrogativa exclusiva da União.

Têm-se, portanto, tributos em suas diversas espécies, exarados pela União, pelos estados e distrito federal, e pelos municípios. Some-se a este contexto, a peculiaridade de que nem sempre a atribuição de exação coincide com as atribuições de arrecadação e fiscalização, pois é permitido aos entes federativos transmitir capacidade tributária, delegando-se as atribuições de natureza administrativa (Silva, 2013). Ademais, nem sempre a competência tributária coincide com a destinação ou repartição do tributo. Cite-se como exemplo IPVA – imposto sobre a propriedade de veículos automotores, cuja tributação é de competência dos estados e Distrito Federal, mas tem sua arrecadação dividida entre o ente que o institui e os respectivos municípios de registro dos veículos.

Dentre os tributos de competência estadual (bem como do Distrito Federal), previstos no texto constitucional no artigo 155 da Constituição Federal, encontra-se o ICMS, imposto cuja complexidade já se revela na abrangência de suas hipóteses de incidência: operações relativas a circulação de mercadorias e a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, escopo atual delimitado pela emenda constitucional número 3 de 1993. Para além da nomenclatura e da abrangência, o tributo em questão ganha complexidade pela sua natureza de incidência parcial, em observância ao princípio da não-cumulatividade. O resultado é uma mecânica onerosa de créditos e débitos em sua arrecadação e fiscalização. Mais do que isso, nosso ordenamento jurídico permite a convivência de diferentes alíquotas em diferentes operações e em diferentes entes federativos.

Borges e Reis (2015) argumentam que o ICMS como atualmente instituído é reflexo da atuação dos representantes dos estados no Congresso, ávidos por abocanhar o maior quinhão possível de recursos via receita tributária. Neste mesmo sentido, Harada (2017) alerta sobre a visão limitada dos administradores públicos estaduais, que priorizam de forma absoluta o interesse de seus respectivos entes, menosprezando a temática das desigualdades regionais por entenderem que se trata de pauta exclusiva do governo federal.

Há de se enfatizar também que, neste contexto eclético, o legislador brasileiro escolheu inicialmente privilegiar, para fins de arrecadação, o local de produção da mercadoria, adotando o chamado critério de origem em detrimento do critério local de destino. Esta decisão apresenta substancial repercussão social, considerando que os investimentos, e por consequência as riquezas, acabam por se concentrarem e se perpetuarem em regiões de maior densidade econômica. Isto porque, embora o produto seja muitas vezes consumido no ente federativo mais débil, o destino do tributo é o ente já dotado de robusta capacidade produtiva e portanto, via de regra, mais desenvolvido econômica e socialmente.


2 A Constituição Federal e as Desigualdades Sociais e Regionais

Os tributos têm sua existência justificada pela necessidade de prover o Estado de recursos financeiros para que o mesmo possa materializar os objetivos da constituição que o originou. Neste sentido, cabe analisar o processo de tributação à luz de finalidades estatuídas em nossa Magna Carta, em seu artigo terceiro, inciso III: garantir o desenvolvimento nacional e reduzir desigualdades sociais e regionais. É predominante o entendimento de que as desigualdades regionais promovem distorções no equilíbrio da federação, no que diz respeito a concentração de atividade econômica e desenvolvimento social.

Constituem, desta forma, impeditivo ou no mínimo obstáculo para o desenvolvimento nacional em suas várias dimensões, nomeadamente: econômica, social, ambiental e cultural. Por outro lado, o princípio da Capacidade Contributiva, uma derivação do princípio basilar da Igualdade, está implicitamente homenageado na Constituição de 1988, no texto do seu artigo 145, cujo parágrafo primeiro realça a importância da gradação dos tributos conforme a capacidade econômica dos contribuintes; gradação esta materializada pela progressividade.

Aqui remete-se a outro dos objetivos fundamentais de nossa Constituição, positivado no artigo terceiro, inciso I: a construção de uma sociedade justa. Somente através da justiça fiscal poderá o Brasil efetivamente engajar-se em um processo de desenvolvimento consistente e sustentável, sob as perspectivas social, econômica e ambiental. É este processo o caminho factível para materializar-se o princípio maior da nossa Carta Cidadã na ótica do indivíduo: a dignidade da pessoa humana, norma expressa na constituição de 1988 no texto do artigo primeiro, inciso III. Inexoravelmente, todos estes preceitos se entrelaçam, pois é inequívoco que no espírito da nossa Magna Carta residem a defesa e a busca da concretização dos direitos individuais e coletivos, tendo-se eleito a dignidade da pessoa humana como valor supremo.

É a partir deste caríssimo valor que se justifica a meta de se alcançar justiça social, a qual possui como uma de suas vertentes cruciais a justiça fiscal. Esta pode ser entendida como um fim, mas ao mesmo tempo um meio, no sentido de que a mesma é dotada da capacidade de atuar como vetor de combate às desigualdades sociais e regionais. Dessa forma, a justiça fiscal pode vir a assumir papel de grande relevo em nossa sociedade. Trata-se de uma questão que é muito mais do que um anseio; é condição imprescindível para nossa evolução enquanto povo.


3 O ICMS como Tributo Extrafiscal

É consenso entre especialistas que o caminho mais sensato para o alcance da justiça fiscal é a tributação direta e progressiva. Este modelo de tributação visa maximizar a eficiência estatal, delineando o processo de tributação de tal forma a considerar a efetiva capacidade contributiva do cidadão. É caminho para que o princípio da igualdade material, concebido no plano abstrato, seja implementado no plano concreto.

Amparado por esta tese e considerando a realidade brasileira, não se pode falar de coerência na avaliação da capacidade contributiva sem que sejam contempladas as desigualdades regionais. Neste sentido, é mais do que razoável que se pense um imposto da natureza do ICMS como um instrumento tributário com finalidade extrafiscal. Entenda-se extrafiscalidade, nas palavras de Alexandre (2015), como a intervenção estatal em uma situação econômica ou social. No contexto presente, seria a utilização do tributo pelo Estado de tal forma a incentivar investimentos e outras formas de direcionar recursos financeiros para os estados menos desenvolvidos. No médio e longo prazo, muito provavelmente lograr-se-ia a redução das atualmente agudas desigualdades econômicas entre as diversas regiões do nosso país.

Um segundo desdobramento desta estratégia tributária seria, ainda que indiretamente e em menor grau, a redução das desigualdades sociais no país como um todo. O fortalecimento das economias dos estados menos favorecidos, desde que feito com foco de longo prazo e priorizando investimentos em educação, certamente levaria à criação de mais oportunidades profissionais. Estas oportunidades traduzir-se-iam em novos postos de trabalho, fenômeno que contribuiria para a atenuação do mercado informal e gradativamente elevaria os padrões de qualificação e nível de renda da mão-de-obra local, cujo mais óbvio benefício seria a eliminação da necessidade de migração para outras regiões do país. Por consequência, presume-se que também seriam beneficiadas as regiões atualmente mais desenvolvidas.

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O racional básico de uma proposta desta natureza envolvendo o ICMS consistiria na retenção de uma fatia do imposto arrecadado para composição de um fundo transitório cujos recursos seriam periódica e integralmente redistribuídos entre os estados e o distrito federal na proporção inversa à renda per capita de cada um dos entes. Desta forma, gradativamente restabelecer-se-ia o equilíbrio econômico entre as regiões através da transferência de riquezas por meio do sistema de tributação. Seria razoável, sem embargo, se desenhar uma regra de transição, não somente em observância ao princípio da anterioridade, um dos pilares do direito tributário brasileiro, mas como meio de atenuar durante certo tempo os efeitos eventualmente negativos para os entes federativos atualmente mais arrecadadores.

Seria extremamente oportuno e tempestivo aproveitar o momento de discussão sobre a atualização do sistema tributário nacional, movimento que busca a modernização e a simplificação da legislação e dos procedimentos tributários incidentes sobre a atividade econômica privada, para se aplicar uma proposta de contornos jurídicos ancorada na extrafiscalidade. Convém destacar, contudo, que uma discussão com este viés consideravelmente reformista deveria ter sua viabilidade de aprovação legislativa bem avaliada. Não se desprezam, pois, o risco e o custo político de se fazer uma transformação de tamanha magnitude e substancial repercussão econômica e social. Todavia, não é esta a temática deste artigo, embora de forma alguma se desconsidere sua relevância.

Do ponto de vista do ordenamento jurídico, a Constituição Federal estabelece que normas tributárias devem ser positivadas através do rito de lei complementar, observando-se desta forma a exigência de quórum qualificado para sua aprovação. Contudo, trata-se aqui de uma discussão de mudança estrutural, de reconhecida profundidade e indubitável controvérsia. Seria mais prudente, portanto, que tal reforma fosse normatizada através da roupagem de emenda constitucional, pois esta proposta, se adequadamente desenvolvida, acarretaria em alterações profundas não somente de competência tributária, mas também de repartição dos recursos arrecadados.

De toda forma, há de se ressaltar que o Estado brasileiro resultante da norma fundamental não pode se omitir ou se isentar de cumprir com sua obrigação precípua de materializar os objetivos constitucionais do instrumento jurídico que lhe constituiu. E o combate às desigualdades regionais e sociais é condição sine qua non para o alcance do objetivo finalístico da Constituição promulgada em 1988 de promover o bem-estar social dos brasileiros. Prover adequadamente saúde, educação, segurança, moradia e outros direitos constitucionalmente positivados aos cidadãos de todas as regiões é o meio ideal de efetivar o princípio maior da Dignidade da Pessoa Humana.


Considerações Finais

Não se pode negar que somente através da redução das desigualdades regionais e sociais promover-se-á o ambiente propício para o desenvolvimento social e econômico do país. O combate a esta realidade brasileira secular é mais do que um compromisso constitucional. É uma obrigação do Estado e consequentemente dos administradores públicos e legisladores. No âmbito interno, é o caminho para a construção de uma sociedade mais justa, solidária e igualitária, conforme preconizado na constituição de 1988. Na seara internacional, pode se constituir no meio mais eficaz para ganho de expressão no contexto mundial, sob as perspectivas política e econômica.

Um razoável equilíbrio social e econômico entre as regiões brasileiras pavimentaria o caminho para uma nação mais desenvolvida e consequentemente mais relevante em um mundo cada vez mais competitivo e interdependente. O Sistema Tributário Nacional deve acompanhar essa leitura estratégica da contemporaneidade e assumir o papel de vetor da mudança. Como instrumento político e jurídico, deve o sistema tributário trabalhar para a consecução dos objetivos constitucionais, dentre os mais relevantes o combate às desigualdades sociais e regionais. Propõe-se, para tanto, utilizar um dos mais importantes tributos de nosso sistema, o ICMS, como propulsor deste movimento de transformação da sociedade brasileira através de seu uso com finalidade extrafiscal.


Bibliografia

ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado. São Paulo: Método, 2015.

BORGES, José Cassiano; REIS, Maria Lúcia Américo dos. ICMS ao alcance de todos: parte geral. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2015.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, 05 out. 1988. 

HARADA, Kyioshi. ICMS: doutrina e prática. São Paulo: Atlas, 2017.

SILVA, Roque Sérgio. Introdução ao direito constitucional tributário. Curitiba: Intersaberes, 2013. 

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PERUCIO, Joaquim. O ICMS como instrumento de redução das desigualdades regionais e sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5752, 1 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72948. Acesso em: 21 nov. 2024.

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