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Anatocismo legalizado:

MP 1963-17 beneficia as já poderosas instituições financeiras

01/05/2000 às 00:00
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No dia 31 de março de 2000, aniversário do golpe militar de 1964, o Poder Executivo fez publicar uma medida provisória claramente favorável aos interesses das poderosas instituições financeiras: legalizou, para elas, o anatocismo de forma irrestrita.


É possível, matematicamente, a existência de anatocismo nos financiamentos em geral, inclusive decorrentes de contratos de conta corrente (cheque especial). Anatocismo é a incidência de juros sobre os juros acrescidos ao saldo devedor por não terem sido pagos.

Os juros podem ser simples ou compostos. Os juros compostos são também chamados de juros capitalizados.

O que são juros simples? Juros simples são aqueles que incidem apenas sobre o principal corrigido monetariamente, isto é, não incidem sobre os juros que se acrescente ao saldo devedor. Vale dizer, assim, que os juros não pagos não constituem a base de cálculo para a incidência posterior de novos juros simples. E o que são juros compostos? Juros compostos são aqueles que incidirão não apenas sobre o principal corrigido, mas também sobre os juros que já incidiram sobre o débito.

Como se pode perceber, capitalização dos juros pode, matematicamente, ocorrer mês a mês, semestralmente, ano a ano, etc.

Evidentemente, quanto menor for o período de incidência do anatocismo, pior será para o devedor.

Juridicamente, até o advento da Medida Provisória nº 1.963-17, publicada em 31 de março de 2000, existia a proibição de ocorrência de anatocismo em período inferior ao de um ano, conforme disposto na Lei de Usura (Decreto nº 22.626/33), nos seguintes termos:

"Art. 4º. É proibido contar juros dos juros; esta proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos e conta-corrente de ano a ano."


Com a edição da Medida Provisória nº 1.963-17, publicada no aniversário do golpe militar de 1964, ficou derrogada a norma da Lei de Usura, no tocante às instituições financeiras. Assim, a partir de 31/03/2000, restou lícita a ampla incidência de juros sobre juros:

"Art. 5º. Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano.

Parágrafo único. Sempre que necessário ou quando solicitado pelo devedor, a apuração do valor exato da obrigação, ou de seu saldo devedor, será feita pelo credor por meio de planilha de cálculo que evidencie de modo claro, preciso e de fácil entendimento e compreensão, o valor principal da dívida, seus encargos e despesas contratuais, a parcela de juros e os critérios de sua incidência, a parcela correspondente a multas e demais penalidades contratuais."

Note-se que a vedação do anatocismo em período inferior ao de um ano continua existindo se o mutuante não for instituição financeira! Ou seja, as construtoras e incorporadoras, que financiam com recursos próprios o adquirente do imóvel, particulares em geral que emprestarem dinheiro ou venderem a crédito, não se beneficiam com a MP nº 1.963-17...

É fato que os bancos já praticavam o anatocismo, tanto no cheque especial, como em outros tipos financiamentos. Em certos casos, essa prática era legal, em razão de lei específica a permitir; mas na maior parte delas era ilegal (ex. cheque especial e financiamento imobiliário no âmbito do SFH), em razão da regra geral estabelecer a vedação do anatocismo em período inferior ao de um ano, com se viu acima.


Para edição de uma medida provisória, nos termos da constituição, existe a necessidade da questão ser relevante e urgente.

No caso em tela, a questão é, sem dúvida alguma, relevante. Justificaria a edição de uma medida provisória sobre o tema. Causa perplexidade, contudo, que a medida provisória tenha trazido regra mais benéfica para as já poderosas instituições financeiras!

O Judiciário já se manifestou, inúmeras vezes, sobre a ilegalidade do anatocismo em período inferior ao de um ano nos débitos oriundos de contrato de cheque especial e de financiamento imobiliário no âmbito do SFH.

A medida provisória, assim, visa reduzir as condenações judiciais e impedir novas ações. É certo que os juros cobrados indevidamente, relativos ao período anterior a 31/03/2000, continuam passíveis de repetição de indébito. Mas a conta de liqüidação das ações em curso terminará em 31/03/2000!!! A partir dessa data, o anatocismo (que poderá até ser diário), por força do ato praticado por Sua Excelência, o Presidente da República, passou a ser legal.

No tocante ao outro requisito para a validade de uma medida provisória, não parece ser urgente a liberalização total do anatocismo: os bancos já são muito ricos e podem muito bem praticar o anatocismo apenas anualmente e devolver o dinheiro dos juros cobrados a maior, em razão de uma deliberada e consciente violação da Lei de Usura.

Isto é, o teor da medida provisória não é urgente para os interesses da sociedade; urgente ele é, porém, para os bancos, com inúmeras ações, contestando a ilegalidade do anatocismo, sendo julgadas procedentes, a mudança da legislação!

Contudo, dificilmente o STF irá proclamar a ilegalidade da referida medida provisória, em razão de falta do requisito de urgência.

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Resta saber, então, se o Congresso Nacional irá ratificar a disposição constante da medida provisória em questão. Afinal de contas, é visível que, politicamente, essa mudança do direito não beneficia a esmagadora maioria da população brasileira.


É incrível o poder político de que dispõem as classes abastadas, capaz até de gerar uma medida provisória (sob medida). Não menos incrível é a ausência da devida repercussão desse fato da mídia... Se fosse um aumento de tributo a gerar distribuição de renda, com certeza muitas vozes, com astronômica repercussão na mídia, iriam se levantar contra a "sanha fiscal do governo"... Como a medida provisória beneficia os bancos, a "livre" imprensa se cala ou pouco diz.

O problema é político: o ato em testilha, frise-se, não beneficia a maior parte da nação, mas sim os já privilegiados banqueiros. Contribui para a concentração de renda, piora a situação de mutuários em dificuldades financeiras, torna mais caro o crédito produtivo, agravando o explosivo cenário social no Brasil. 

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Sobre o autor
Bruno Mattos e Silva

Bacharel em Direito pela USP. Mestre em Direito e Finanças pela Universidade de Frankfurt (Alemanha). Foi advogado de empresas em São Paulo, Procurador-chefe do INSS nos tribunais superiores, Procurador Federal da CVM e Assessor Especial de Ministro de Estado. Desde 2006 é Consultor Legislativo do Senado Federal, na área de direito empresarial, de regulação, econômico e do consumidor. Autor dos livros Direito de Empresa (Ed. Atlas) e Compra de Imóveis (Edi. Atlas/GEN).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Bruno Mattos. Anatocismo legalizado:: MP 1963-17 beneficia as já poderosas instituições financeiras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 41, 1 mai. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/730. Acesso em: 26 abr. 2024.

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