As autoridades de trânsito e os órgãos recursais podem invocar a presunção de legitimidade como único fundamento para manter a aplicação de penalidades previstas no CTB?
Tendo em vista a relevância do assunto em questão, tomarei a liberdade de reproduzir, antes de tudo, algumas normas que tratam da autuação e da competência legal para lavrá-la, quando da constatação de alguma infração de trânsito. Vejamos.
O Código Brasileiro de Trânsito – CTB, instituído pela Lei n. 9.503/1997, assim estabelece:
Art. 280. Ocorrendo infração prevista na legislação de trânsito, lavrar-se-á auto de infração, do qual constará:
I - tipificação da infração;
II - local, data e hora do cometimento da infração;
III - caracteres da placa de identificação do veículo, sua marca e espécie, e outros elementos julgados necessários à sua identificação;
IV - o prontuário do condutor, sempre que possível;
V - identificação do órgão ou entidade e da autoridade ou agente autuador ou equipamento que comprovar a infração;
VI - assinatura do infrator, sempre que possível, valendo esta como notificação do cometimento da infração.
§ 1º (VETADO)
§ 2º A infração deverá ser comprovada por declaração da autoridade ou do agente da autoridade de trânsito, por aparelho eletrônico ou por equipamento audiovisual, reações químicas ou qualquer outro meio tecnologicamente disponível, previamente regulamentado pelo CONTRAN.
§ 3º Não sendo possível a autuação em flagrante, o agente de trânsito relatará o fato à autoridade no próprio auto de infração, informando os dados a respeito do veículo, além dos
constantes nos incisos I, II e III, para o procedimento previsto no artigo seguinte.
§ 4º O agente da autoridade de trânsito competente para lavrar o auto de infração poderá ser servidor civil, estatutário ou celetista ou, ainda, policial militar designado pela autoridade de trânsito com jurisdição sobre a via no âmbito de sua competência.
Neste ponto, importa lembrar que a maioria das autuações tem sido lavradas com o veículo em movimento, sem abordagem (ou interceptação), com base no parágrafo 3º do artigo 280 (acima), fato que, aliás, encontra respaldo no Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito - MBFT, Volumes I e II, aprovados, respectivamente, pelas Resoluções CONTRAN ns. 371/2010 e 561/2015[i], com as seguintes informações e procedimentos a serem observados por todos os agentes de trânsito:
4. AGENTE DA AUTORIDADE DE TRÂNSITO
O agente da autoridade de trânsito competente para lavrar o auto de infração de trânsito (AIT) poderá ser servidor civil, estatutário ou celetista ou, ainda, policial militar designado pela autoridade de trânsito com circunscrição sobre a via no âmbito de sua competência.
Para que possa exercer suas atribuições como agente da autoridade de trânsito, o servidor ou policial militar deverá ser credenciado, estar devidamente uniformizado, conforme padrão da instituição, e no regular exercício de suas funções.
O veículo utilizado na fiscalização de trânsito deverá estar caracterizado.
O agente de trânsito, ao constatar o cometimento da infração, lavrará o respectivo auto e aplicará as medidas administrativas cabíveis.
É vedada a lavratura do AIT por solicitação de terceiros, excetuando-se o caso em que o órgão ou entidade de trânsito realize operação (comando) de fiscalização de normas de circulação e conduta, em que um agente de trânsito constate a infração e informe ao agente que esteja na abordagem; neste caso, o agente que constatou a infração deverá convalidar a autuação no próprio auto de infração ou na planilha da operação (comando), a qual deverá ser arquivada para controle e consulta.
O AIT traduz um ato vinculado na forma da Lei, não havendo discricionariedade com relação a sua lavratura, conforme dispõe o artigo 280 do CTB.
O agente de trânsito deve priorizar suas ações no sentido de coibir a prática das infrações de trânsito, devendo tratar a todos com urbanidade e respeito, sem, contudo, omitir-se das providências que a lei lhe determina.
(...)
7. AUTUAÇÃO
Autuação é ato administrativo da Autoridade de Trânsito ou de seus agentes quando da constatação do cometimento de infração de trânsito, devendo ser formalizado por meio da lavratura do AIT.
O AIT é peça informativa que subsidia a Autoridade de Trânsito na aplicação das penalidades e sua consistência está na perfeita caracterização da infração, devendo ser preenchido de acordo com as disposições contidas no artigo 280 do CTB e demais normas regulamentares, com registro dos fatos que fundamentaram sua lavratura.
O AIT não poderá conter rasura, emenda, uso de corretivo, ou qualquer tipo de adulteração. O seu preenchimento se dará com letra legível, preferencialmente, com caneta esferográfica de tinta azul.
Poderá ser utilizado o talão eletrônico para o registro da infração conforme regulamentação específica.
(...)
O agente de trânsito, sempre que possível, deverá abordar o condutor do veículo para constatar a infração, ressalvados os casos nos quais a infração poderá ser comprovada sem a
abordagem: Para esse fim, o Manual estabelece as seguintes situações:
- Caso 1: ‘possível sem abordagem’ – significa que a infração pode ser constatada sem a abordagem do condutor.
- Caso 2: ‘mediante abordagem’ – significa que a infração só pode ser constatada se houver abordagem do condutor.
- Caso 3: ‘vide procedimentos’ – significa que, em alguns casos, há situações específicas para abordagem do condutor.
Visto isso, e para que não haja nenhuma dúvida a respeito da conclusão a que pretendo chegar, apresentarei, a seguir, três casos concretos:
1º CASO: Ao ser consultado por um amigo, penalizado com três multas de trânsito, por um único ato, ou seja, por ter (supostamente) realizado uma conversão em local proibido pela sinalização, resolvi ajudá-lo, não por ser seu amigo, mas, sim, pela injustiça que acabei constatando, desde a autuação (lavrada em flagrante inobservância aos preceitos legais vigentes) até o julgamento do recurso realizado pela JARI, que decidiu, por unanimidade, pela manutenção da penalidade aplicada pela autoridade de trânsito, sem qualquer fundamentação, em flagrante desrespeito ao estabelecido no item 8.3 das Diretrizes para a Elaboração do Regimento Interno das JARI, estabelecidas pela (e em anexo à) Resolução CONTRAN n. 357/2010[ii], que assim dispõe:
8.3. As decisões das JARI deverão ser fundamentadas e aprovadas por maioria simples de votos dando-se a devida publicidade.
Analisando-se o “parecer” do relator da JARI, no caso em comento, acompanhado e reproduzido literalmente pelos demais membros, é possível constatar que o dispositivo acima não foi observado por nenhum dos três membros. Vejamos a decisão:
“A infração e o veículo foram devidamente caracterizados e em consonância com a legislação em vigor. Assim, com fundamento no atributo da presunção de
legitimidade, sou pela manutenção da penalidade.”
Como se vê, estamos diante de um “parecer” padrão (copiado e reproduzido literalmente pelos três membros da JARI), “fundamentado” tão somente na “presunção de legitimidade” dos atos administrativos, e, pior, flagrantemente desvinculado do caso sob julgamento, haja vista que, além de não ter dado nenhuma importância às fotos anexadas ao recurso (demonstrando que a sinalização estava visivelmente encoberta pela vegetação local), o relator não apresentou sequer manifestação quanto ao pedido de diligência ao local da suposta infração. Aliás, neste caso, o relator deveria ter observado o que diz o item 3.1.b das referidas Diretrizes, nos seguintes termos:
“3.1. Compete às JARI:
3.1.a. julgar os recursos interpostos pelos infratores;
3.1.b. solicitar aos órgãos e entidades executivos de trânsito e executivos rodoviários informações complementares relativas aos recursos objetivando uma melhor análise da situação recorrida;”
Neste ponto, uma pergunta se impõe: Mas, afinal, o que vem a ser essa tal “presunção de legitimidade”, capaz de, por si só (na visão de muitos), “fundamentar” uma decisão administrativa? A resposta virá mais adiante.
2º CASO: Após receber uma notificação de autuação, acusando o cometimento da infração de trânsito prevista no art. 187, inciso I, do CTB (TRANSITAR EM LOCAL/HORÁRIO NÃO PERMITIDO PELA REGULAMENTAÇÃO – RODÍZIO), com a respectiva foto capturada por equipamento eletrônico, um amigo solicitou a minha ajuda, notadamente porque, analisando-se a foto, com ampliação da imagem, foi possível constatar que a placa dianteira do veículo autuado possuía final 6177, enquanto a do veículo dele, devidamente registrado e licenciado, possui final 8177.
Por óbvio, a defesa da autuação foi deferida de pronto, pela autoridade de trânsito, notadamente porque, neste caso, como se viu, havia uma foto capaz de revelar a evidente falha de percepção visual[iii] do agente responsável pela expedição da notificação da autuação.
Neste ponto, cabe outra pergunta: E se não houvesse a foto que revelou a falha do agente, será que o notificado conseguiria demonstrar que o veículo dele não estava no local, data e horário da autuação? Por óbvio, a menos que ele tivesse em seu poder algum meio de prova nesse sentido (cupom fiscal de estacionamento etc.), seria praticamente impossível.
3º CASO: Posteriormente ao 2º caso, o mesmo amigo recebeu nova notificação de autuação, acusando o cometimento de outra infração de trânsito, prevista no art. 207 do CTB (EXECUTAR OPERAÇÃO DE CONVERSÃO À ESQUERDA EM LOCAL PROIBIDO PELA SINALIZAÇÃO). Desta vez, porém, o auto de infração havia sido lavrado por um agente de trânsito, em talão eletrônico. Logo, a notificação da autuação não apresenta a foto do veículo autuado.
Ocorre que, para indignação do autuado, no dia da suposta infração, o veículo dele estava (segundo ele alega, e eu acredito) na garagem de sua residência, localizada em região muito distante daquela constante do auto de infração, motivo pelo qual, por óbvio, não poderia estar lá, no local da infração.
Sendo assim, mais uma pergunta se impõe: A simples afirmação de que seu veículo estava na garagem e, portanto, não poderia estar no local da infração será (seria) suficiente para conseguir o deferimento da defesa da autuação, com o consequente cancelamento do auto de infração? Muito provavelmente, sem a apresentação de qualquer meio de prova (cupom fiscal de estacionamento; declaração de socorro de urgência, com o respectivo atestado médico; cópia de controle de entrada e saída de veículos etc.), sua defesa será (seria) indeferida. A autoridade de trânsito certamente julgará válida a autuação, com base na “presunção da legitimidade” do ato administrativo.
Pois bem, diante desses três casos concretos, oportunas são as lições do ilustre Doutor e Mestre em Direito Rafael Maffini[iv], segundo o qual:
O primeiro – e mais relevante – atributo (leia-se, dos atos administrativos) é o da presunção de validade, que costuma ser denominado “presunção de legitimidade” ou “presunção de veracidade”. Opta-se pela expressão “presunção de validade” por melhor traduzir o seu significado jurídico. Com efeito, o atributo da presunção de validade (ou legitimidade) consiste no fato de que, uma vez praticado, o ato administrativo guardará em seu favor a presunção de que foi praticado de acordo com a ordem jurídica (de que é válido, portanto) e de que o seu conteúdo traduz-se como verdadeiro. Tal atributo, cumpre salientar, apresenta-se em todos os atos administrativos.
Em razão da importância de tal atributo, mostra-se conveniente que se o analise através de algumas observações que passam a ser expostos:
a) Por primeiro, deve-se ter que a presunção de validade que os atos administrativos possuem é uma presunção relativa ou juris tantum. Isso significa dizer que a presunção de que os atos administrativos são praticados validamente pode ser infirmada mediante a demonstração do contrário, ou seja, de que foi praticado de modo a desrespeitar as regras e princípios aplicáveis. Assim, não se poderia cogitar de ser uma presunção absoluta (juris et de jure), sob pena de se proibir que os atos administrativos inválidos fossem anulados.
b) a segunda observação, diretamente relacionada com a primeira, diz respeito a uma questão processual, qual seja, a questão do onus probandi quanto à validade ou à invalidade dos atos administrativos. Da presunção de validade dos atos administrativos decorre o fato de que, em termos gerais, não necessita a Administração Pública provar a validade dos atos administrativos que pratica, uma vez que tal validade é presumida. Dessa forma, o ônus da prova da invalidade é do interessado na anulação, mesmo que existam instrumentos processuais para facilitar tal tarefa (ex.: art. 6º, § 1º, da Lei 12.016/2009, pelo qual o impetrante poderá solicitar em juízo que este requisite documentos de posse da Administração Pública para a demonstração da lesão a direito líquido e certo). De outro lado, não se pode olvidar que há circunstâncias em que a Administração Pública, quando for suscitada, poderá ser obrigada a demonstrar a legalidade de suas condutas administrativas a outros órgãos ou entidades administrativas incumbidas da realização de controle (ex.: art. 113 da Lei 8.666/1993). Situações como essa, contudo, não servem para descaracterizar o significado jurídico da presunção da validade dos atos administrativos, especialmente se analisado tal atributo na perspectiva da relação jurídica avençada entre a Administração Pública e o administrado.
(...)
4.1 Princípio do contraditório
O sentido moderno do princípio do contraditório, o qual é incumbido de assegurar a construção de relações jurídico-processuais dialéticas e racionais, impõe, em linhas gerais, que se garanta aos interessados na decisão final de um processo a informação necessária, a reação possível e a cooperação entre as partes envolvidas. Disso resultam os seguintes consectários básicos: a) informação geral sobre os atos e documentos contidos no expediente; b) oitiva das partes e c) motivação das decisões administrativas.
4.2 Princípio da ampla defesa
A ampla defesa, que possui relações necessárias com o contraditório, consiste na garantia de máxima possibilidade de os interessados pleitearem administrativamente em favor das pretensões vertidas em sede administrativa. Também possui manifestações básicas que podem ser assim sumarizadas:
a) oponibilidade de defesa prévia à decisão;
b)recorribilidade das decisões administrativas, mesmo que ausente preceito legal específico;
c) garantia de defesa técnica, através da possibilidade de constituição de advogados;
d)direito à comunicação e ao prazo razoável para o acompanhamento de atos processuais;
e) solicitação e acompanhamento de provas.
Analisando-se as sábias lições acima, e voltando ao 1º CASO, é possível concluir que, embora a autoridade de trânsito tenha possibilitado (ao autuado) o direito de defesa, esta não foi analisada sob o crivo dos princípios acima mencionados (do contraditório e da ampla defesa), nem tampouco sob o estabelecido nas Diretrizes acima mencionadas, notadamente porque, como se viu, não houve manifestação sequer quanto ao pedido de diligência ao local da suposta infração. Trata-se, salvo melhor juízo, de decisão nula, por nítido e inadmissível cerceamento de defesa, bem como por falta de fundamentação.
A propósito, oportunas também são as lições do Doutor Norberto Almeida Carride[v], segundo o qual:
O ato do agente de trânsito, como todo ato administrativo, traz em si a presunção da legitimidade, levando o particular o ônus da demonstração de prova em contrário.
Existe sempre a possibilidade de ocorrer falha, decorrente da falibilidade humana, na aferição de ato ou fato reputado infracional, por parte do agente de trânsito.
Na hipótese de infração: por falta de uso do cinto de segurança, de ultrapassar sinal vermelho ou amarelo, na aferição de velocidade etc., sem identificação do motorista, precisa o agente ser cauteloso, a fim de não punir, eventualmente, inocente.
Pode haver equívoco, principalmente quanto ao uso do cinto de segurança, em face de inúmeras situações que possam ocorrer e atrapalhar ou confundir o agente, que não é infalível e, via de regra, pessoas sem experiência, principalmente na escola da vida, da existência, onde a prudência e o bom senso passam a prevalecer.
Como poderia o condutor, estando sozinho no veículo, após receber notificação da autuação, comprovar que a afirmação do agente é incorreta, e que estava utilizando correta e adequadamente o cinto de segurança?
Nem o magistrado tem tanta discricionariedade, tanto poder (decide com base em elementos sólidos de convicção, sendo obrigado a fundamentar, sob pena de nulidade).
Não pode, em certas situações em que os sentidos do agente podem falhar (visão ofuscada, impressão equivocada, sensação distorcida, etc.), prevalecer a presunção da veracidade do ato relativo à autuação, principalmente na hipótese de falta de utilização do cinto de segurança, estando o veículo em movimento (a roupa utilizada pelo condutor, ou pelos passageiros, a regulagem do dispositivo do suporte do cinto, acima ou mais para baixo – conforme nos veículos modernos, podem induzir e levar o agente a erro). Afigura-se prudente, correta e justa, a atitude omissiva, deixando de autuar na dúvida, ou em situações inadequadas, afastando o risco de cometer injustiça ao cidadão ordeiro.
Como já se frisou, o mau motorista, o costumeiro violador das regras, por certo acabará sendo autuado em outras oportunidades que não faltarão.
Esse proceder se afigura como um dos princípios básicos da Justiça.
(...)
Para que ocorra a presunção de veracidade (decorrente da presunção de legitimidade do ato administrativo), é necessário que o ato ou fato ilícito (administrativo) tenha sido presenciado pessoalmente pelo agente (não aferido por relato de terceiros) de trânsito. (...)
Portanto, o agente ou a autoridade de trânsito deve lavrar o auto de infração somente quando tenha presenciado o fato que relata. Do relato do que teve ciência pessoal, preenchidos os demais requisitos formais do ato, resulta na presunção relativa (juris tantum) de veracidade dos fatos narrados (art. 364 CPC), em face do princípio da presunção de legitimidade dos atos administrativos.
O fato é que, embora caiba ao “particular o ônus da demonstração de prova em contrário”, conforme bem apontou o nobre Doutor Norberto de Almeida Carride, em muitos casos, a prova em contrário se torna impossível (prova, aliás, conhecida por diabólica[vi]) ou excessivamente difícil ao recorrente.
Não é sem motivo que o vigente Código de Processo Civil, ao tratar do ônus da prova, assim estabelece:
Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
§ 1o Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
Veja-se que diante da impossibilidade ou da excessiva dificuldade em se provar fato contrário, o juiz pode (nos termos do § 1º acima) atribuir o ônus da prova de modo diverso.
Não obstante, no estudo em questão, entendo que nem seria necessário inverter o ônus da prova, mas, sim, assegurar ao notificado de uma autuação (em movimento) o direito de ao menos tentar demonstrar que o seu veículo não estava no local da infração (caso esta seja a sua alegação), no dia e horários apontados (na notificação), por meio de documento próprio, mais adiante mencionado, a exemplo do direito previsto no § 4º do art. 148-A[vii] e no § 2º[viii] do art. 306, ambos do CTB, os quais, como se sabe, asseguram ao condutor fiscalizado o direito à contraprova. Desta forma, portanto, a presunção de legitimidade da autuação restaria preservada, porém, a depender do caso, poderia ser infirmada mediante a demonstração do contrário (pelo referido documento).
A título de exemplo, caso o condutor seja flagrado (abordado, portanto), pelo agente de trânsito, na condução de veículo automotor com a capacidade psicomotora alterada, e autuado com base apenas e tão somente em sinais que indiquem tal alteração, na forma regulamentada pelo CONTRAN[ix], o direito à contraprova lhe será garantido (CTB, art. 306, § 2º).
Por outro lado, por mais absurdo que possa parecer, se a autuação for lavrada com o veículo em movimento (sem abordagem), com base no MBFT, a “simples” declaração do agente de trânsito (no auto de infração) será o suficiente, até o presente momento, para que a autoridade de trânsito competente possa aplicar qualquer das penalidades previstas no art. 256 do CTB, caso o condutor não tenha acesso à eventual contraprova. Com o devido respeito, “nem o magistrado tem tanta discricionariedade, tanto poder”, bem disse o Doutor Norberto Almeida Carride.
Ora, se por um lado (da Administração) a autoridade de trânsito tem o direito de invocar a presunção de legitimidade dos atos praticados pelos seus agentes (autuações), que, como se viu, gozam de presunção relativa (juris tantum), por outro, não se pode negar, o cidadão (autuado) tem (deveria ter) o direito de requerer a apresentação de qualquer documento (caso existente e ao qual não tem acesso) capaz de demonstrar possível falha do agente de trânsito, por ocasião da lavratura do auto de infração. Sem isso, por óbvio, a defesa se torna praticamente impossível.
Registre-se que não estou colando em dúvida (ou suspeição) a lisura do ato (autuação) praticado pelo agente de trânsito, nem tampouco a sua competência para tanto, mas, sim, uma possível falha de percepção visual quanto ao fato constatado por ele, ou até a possível autuação de veículo dublê. Aliás, retornando ao 2º CASO, acima exposto, é possível extrair, no mínimo, duas hipóteses:
1ª) Ao elaborar a notificação da autuação (olhando para a foto do veículo!), o agente estava utilizando o WhatsApp (sim, infelizmente, o que mais se vê nos dias atuais são pessoas, atendentes e servidores de todas as espécies utilizando este aplicativo durante o turno de serviço, muitas vezes alheios ao seu trabalho) e, devido à falta de atenção, acabou digitando 8177 em vez de 6177; e,
2ª) Sem ampliar a imagem da placa do veículo, o agente realmente “enxergou” (por falha de percepção visual) o final 8177, e emitiu a notificação com este final.
Enfim, se diante de uma imagem estática (foto) o agente foi (e é) capaz de cometer uma falha de percepção visual, ao emitir a notificação da autuação, não é preciso muito esforço para se imaginar como seria sua atitude diante de um veículo em movimento, dentre tantos outros, num trânsito como o nosso, sabidamente congestionado em qualquer hora do dia ou até da noite.
É por tudo isso que, por ocasião da interposição da defesa da autuação ou de eventual recurso, nos casos de autuação com o veículo em movimento, portanto, sem abordagem, quando o notificado alegar que o veículo autuado estava na garagem ou em qualquer outro local, sem a possibilidade de apresentar qualquer documento que possa demonstrar o alegado, a presunção de legitimidade do ato deveria prevalecer apenas quando a autoridade de trânsito tivesse em seu poder um documento capaz de demonstrar que o veículo realmente estava no local da infração.
Demonstrar que o veículo estava no local da infração?! Como assim? Como isso seria possível? Esta é a pergunta que você, caro leitor, deve estar se fazendo, não é mesmo?!
Em resposta, eu digo: para demonstrar a presença do veículo no local da infração, bastaria, por exemplo, que a autoridade de trânsito ou a JARI requeresse a quem de direito, a pedido do recorrente ou de ofício[x], cópia do histórico (ou relatório) de deslocamento do veículo, relativo ao dia da autuação, extraída do Sistema Nacional de Identificação Automática de Veículos (SINIAV[xi]) ou de outro Sistema similar (capaz de detectar a presença do veículo no local), ao qual o cidadão não tem (ou não teria) acesso. Com isso, os princípios da ampla defesa e do contraditório restariam assegurados, haja vista que o notificado (recorrente) teria ao menos uma chance de comprovar a sua alegação.
Nesta altura, caro leitor, você deve estar dizendo: O SINIAV ainda não foi implantado! Concordo, eu diria. E diria mais. Enquanto este (ou outro) sistema similar (capaz de demonstrar a presença do veículo no local da infração) não for implantado, entendo que as defesas ou recursos relativos a autuações com o veículo em movimento (sem abordagens ou sem a captura de imagens), interpostos sob a alegação de que o veículo não estava (ou não poderia estar) no local da autuação (porque estava em outro local), deveriam receber uma melhor atenção por parte das autoridades de trânsito ou, se for o caso, deferidas de ofício.
Em última análise, diante de eventual defesa ou recurso (negando a presença do veículo no local da infração), a pontuação relativa à autuação lavrada com o veículo em movimento, sem abordagem, não deveria ser lançada no prontuário do (suposto) infrator, seguindo-se, desta forma, a sugestão do nobre colega Marcelo José Araújo[xii], advogado.
Aliás, seguindo o raciocínio acima, a suspensão do direito de dirigir, prevista para as infrações que por si só determinam esta penalidade[xiii], também não deveria ser aplicada, quando a autuação for lavrada sem a indispensável abordagem do veículo, para que o real infrator seja devidamente identificado e notificado no ato.
Por óbvio, o entendimento acima não seria aplicado quando o próprio condutor (devidamente notificado) assumisse a responsabilidade pela infração praticada, ou ficasse inerte (deixasse de apresentar defesa ou recurso), mesmo que autuado sem abordagem.
Alguém certamente bradará: Isso não tem cabimento! Muitos infratores ficarão impunes! Chega de tanta impunidade! E eu responderia, com as seguintes perguntas: você ficaria feliz em receber uma notificação de autuação cientificando-o de que uma infração gravíssima teria sido praticada com o seu veículo, em dia, horário e local onde, seguramente, você nunca esteve ou não poderia estar? Você ficaria feliz em saber que não teria como demonstrar que não estava naquele local? Você ficaria feliz em saber que essa “simples” notificação poderia, ao final do processo, acarretar-lhe a suspensão do direito de dirigir? Você ficaria feliz em saber que, se isso ocorresse, você poderia ficar impedido de trabalhar como motorista, caso esta fosse a sua profissão? Enfim, você ficaria feliz em saber que tudo ocorreu (ou teria ocorrido) porque o real infrator deixou de ser abordado no ato do cometimento da infração? Se você respondeu sim para ao menos uma dessas perguntas, você tem razão, ou seja, isso não tem cabimento!
A título de curiosidade, os dois amigos citados no início deste artigo, são, assim como eu, policiais militares, e também foram agentes de trânsito. Por isso, caso leitor, se você também for um agente de trânsito, antes de se revoltar com o meu posicionamento, procure se colocar na situação de um inocente, talvez amigo ou familiar, atuado injustamente, quando o seu veículo nem sequer estava no local da infração. Ah, e não esqueça que você poderá ser a próxima vítima!
Portanto, para evitar uma série de transtornos e prejuízos desnecessários, bom seria se a interceptação de todos os infratores de trânsito fosse possível e viável; se as autuações apresentassem outros elementos[xiv] necessários à identificação do veículo, além da placa, marca e espécie; se os julgamentos não fossem fundados tão somente na presunção de legitimidade dos atos administrativos; se os membros da JARI não apenas copiassem e colassem “pareceres” (decisões), desvinculados do caso sob julgamento; se todos os órgãos julgadores fundamentassem suas decisões; se os semáforos funcionassem adequadamente[xv]; se todas as autoridades também observassem a legislação vigente; se as autoridades analisassem em prazo razoável as sugestões a elas enviadas[xvi]; se a educação para o trânsito realmente constituísse um dever prioritário para os componentes do Sistema Nacional de Trânsito, em todos os níveis de ensino, conforme preveem os artigos 74 e 76 do CTB; enfim, se todos, sem exceção, tivessem o mínimo de responsabilidade social. Tudo isso, porém, não passa de um sonho, aliás, muito antigo.
A propósito, não é demais lembrar que, atualmente, há centenas de marronzinhos, policiais militares e guardas civis credenciados para atuar (e autuar) na fiscalização de trânsito. Há, inclusive, agentes da SPTrans que, embora credenciados pela autoridade de trânsito do município de São Paulo, não possuem competência para tanto, conforme consta de Parecer do Conselheiro Marco Fabricio Vieira, de 12/06/2018, aprovado por unanimidade pelo CETRAN-SP[xvii], salvo engano, ainda não publicado no diário oficial do estado, nem tampouco disponibilizado em sua página eletrônica.
Curiosamente, ainda não se sabe (ao menos eu não sei) o motivo, a Resolução CONTRAN n. 709/2017[xviii], que dispunha sobre a publicação na internet dos nomes e códigos dos agentes e autoridades de trânsito, bem como dos convênios de fiscalização de trânsito celebrados pelos órgãos e entidades executivos de trânsito, foi revogada (ontem) pela Resolução CONTRAN n. 774/2019[xix].
Finalmente, diante de todo o exposto, e considerando a possível existência de muitos condutores que estão sendo punidos injustamente, inclusive com a suspensão do direito de dirigir, por infrações praticadas por outrem, com veículos dublês ou com placas adulteradas, ou até em decorrência de falhas dos agentes de trânsito, entendo que as autoridades de trânsito e os órgãos recursais não podem invocar a presunção de legitimidade como único fundamento para manter a aplicação de qualquer das penalidades previstas no art. 256 do CTB[xx], a exemplo do ocorrido no 1º CASO, principalmente quando o recorrente alegar que o seu veículo não estava (ou não poderia estar) no local da infração. Neste caso, salvo melhor juízo, o recorrente deveria ter assegurado o direito de acesso a algum documento (caso existente e ao qual não pudesse ter acesso) capaz de comprovar a sua alegação.
Um último comentário: se não havia pressa ou motivo suficiente para a implantação do SINIAV, talvez agora haja.