No dia 4 de fevereiro de 2019, o atual Ministro da Justiça, Sérgio Moro, apresentou uma proposta de alteração de quatorze leis federais denominado “Projeto de Lei Anticrime”, que, desde então, já sofreu algumas alterações, cujo objetivo seria nomeadamente estabelecer medidas contra a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com grave violência à pessoa. As alterações visadas, contudo, vão muito além do que a ementa sugere, e afetam, de forma marcante, garantias fundamentais, normas penais e processuais penais e substancialmente aspectos de execução criminal, reclamando detida análise dos operadores do Direito.
O primeiro ponto do projeto é a criação de medidas claras para garantir a chamada “execução provisória da pena”, que atualmente encontra amparo meramente jurisprudencial, desde a radical mudança de paradigma operada no STF com o julgamento do HC nº 126.292, reforçada pelo indeferimento de liminares nas ADCs 43 e 44, cujos méritos deverão ser julgados em abril de 2019 pelo plenário da Suprema Corte. Tais julgamentos definirão conclusivamente se a antecipação do cumprimento da pena é ou não compatível com a Constituição Federal de 88.
Em síntese, o que o projeto busca é agilizar a execução das penas tanto privativas de liberdade quanto pecuniárias, bem como as restritivas de direitos, após decisão condenatória colegiada. É bem verdade que há uma preocupação em conceder efeito suspensivo aos recursos cabíveis, quando, excepcionalmente, o respectivo tribunal vislumbrar a plausibilidade de o direito invocado pelo condenado vir a redundar na alteração do julgado (“questão constitucional ou legal relevante, cuja resolução por Tribunal Superior possa plausivelmente levar à revisão da condenação”). Ocorre que isso, sem dúvida, criaria uma sistemática busca pela atribuição de efeito suspensivo, através de pedidos incidentais instruídos pelas peças necessárias, o que provavelmente acabaria ocasionando uma vulgarização da negativa, impedindo que casos realmente relevantes venham a ser julgados, a exemplo do que hoje ocorre com a obstaculização dos recursos excepcionais pelas cortes estaduais, obrigando que as partes manejem embargos às Cortes Superiores.
Para os recursos Especial e Extraordinário a atribuição de efeito suspensivo fica condicionada à verificação subjetiva de que a irresignação não tem “propósito meramente protelatório” e levanta questão de direito federal ou constitucional relevante, com repercussão geral e que possa resultar em absolvição, anulação da sentença, substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou alteração do regime de cumprimento da pena para o aberto. São, portanto, requisitos bastante específicos.
A condenação exarada por órgão colegiado passaria a legitimar a prisão do cidadão, considerando a presunção de que raramente haveria possibilidade de reversão, em sede excepcional, de uma condenação em 2ª instância, dado este que é absolutamente falso, haja vista que o índice de provimento de recursos no STF e STJ em matéria criminal não é desprezível, sobretudo em se tratando de discussões jurídicas que envolvem a liberdade individual.
Os bens cujo perdimento foi decretado já poderão ser leiloados com o início da execução provisória, inclusive por determinação de ofício do Juiz.
Outra preocupação do projeto é com a execução da pena de multa, que hoje comumente tem sido relegada a um segundo plano. Iniciada a execução definitiva ou provisória, em 10 dias o condenado já seria intimado a fazer o pagamento ou nomear bens a penhora, podendo haver parcelamento.
O mesmo se diga em relação às penas restritivas de direitos, que hoje normalmente são executadas somente após o trânsito em julgado. A propósito, o projeto não altera o conceito de “trânsito em julgado”, reconhecendo que a execução após decisão colegiada é, de fato, “provisória”.
É evidente que, a par disso, não há qualquer preocupação com a possibilidade de erro judiciário, ou seja, de que o cidadão provisoriamente condenado venha a ser absolvido ou ter sua pena reduzida, com alteração de regime, o que o processo padeça de alguma nulidade. Há um nítido viés punitivista e demagógico por trás da legislação proposta, na medida que o objetivo é claramente o de dar uma resposta à sociedade (prevenção geral), e não uma resposta propriamente proporcional ao crime praticado pelo delinquente. No que se refere ao campo processual, isso fatalmente implica restrição de garantias e atribuição de mais poderes à acusação e, fundamentalmente, ao juiz, implicando insegurança jurídica.
No que tange às medidas para “aumentar a efetividade do Tribunal do Júri”, as mudanças propostas promovem alterações radicais e acabam, de certo modo, deturbando o instituto do Júri, originalmente concebido como uma garantia do cidadão. Não se pode desconsiderar que o conselho de sentença é composto por juízes leigos, que, ainda por cima, decidem por íntima convicção. Não por acaso, existe previsão legal de anulação do julgamento quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos. Desta forma, executar provisoriamente as penas dos condenados pelo Tribunal do Júri, antes mesmo da possibilidade de reexame da legalidade destas condenações por um tribunal composto por juízes de direito é, além de um desrespeito ao duplo grau de jurisdição, uma medida verdadeiramente desumana, que desconsidera a possibilidade de influências externas que possam levar os jurados a decidirem sem qualquer embasamento na prova coligida ao processo, acarretando erros decisórios crassos.
A apelação contra decisão condenatória do Tribunal do Júri também não terá efeito suspensivo, permitindo início imediato do cumprimento das penas. Assim, o indivíduo que respondeu a todo o processo em liberdade será preso automaticamente após a sessão de julgamento que decidiu por sua condenação, salvo a excepcionalidade do reconhecimento de questão que possa ensejar revisão em apelação.
O que se pretende é, em última análise, transformar o Tribunal do Júri em uma verdadeira “máquina de moer pessoas” e promover, contra todo o movimento dos últimos anos, encabeçado pelo próprio Judiciário, iniciado com a instituição da audiência de custódia, uma verdadeira política de encarceramento em massa, baseada na seletividade penal.
Não é preciso muito esforço para perceber que, com a aprovação dessas mudanças, que tratam do rito que cuida dos crimes mais graves do ordenamento pátrio, o Brasil terá um incremento radical do número de presos, os quais serão arremessados, de forma abrupta, num sistema carcerário falido há décadas, que não possui o mínimo preparo para receber esta onda de novos segregados. Não se vislumbra qualquer tentativa de superação das maciças violações de direitos humanos que as prisões brasileiras apresentam, situação calamitosa que culminou com a declaração do “estado de coisas inconstitucional” proclamado pelo STF na ADPF 347 e até hoje solenemente ignorado pelo Poder Público.
Excepcionalmente, o juiz presidente do Júri poderá impedir a execução provisória quando julgar que existe uma questão que plausivelmente possa levar o tribunal de apelação a revisar a condenação pelos jurados.
Ao invés de criar filtros mais restritivos para o encarceramento dos indivíduos mais perigosos, o projeto de Lei Anticrime generaliza e pretende ser uma solução aparente dos problemas de segurança pública que assolam o país. A realidade é que se trata de um projeto criado em gabinete, voltado a situações ideais, pensado por pessoas que trabalham diretamente com a macrocriminalidade, sobretudo do colarinho branco, e não com a grande massa dos crimes comuns praticados diuturnamente no Brasil.
O projeto desconsidera o falido sistema carcerário brasileiro e até mesmo as incongruências do próprio Poder Judiciário – com suas decisões ambíguas e conflitantes sobre pontos polêmicos – que falha em fornecer segurança jurídica mínima ao jurisdicionado, já que cada juiz tem um poder discricionário quase inesgotável, que se aviva com a perda de credibilidade da Suprema Corte e do Conselho Nacional de Justiça. E o que o projeto faz é dar ainda maior discricionariedade ao juiz, de inclusive limitar garantias constitucionais no caso concreto a ele submetido.
A retirada de efeito suspensivo do Recurso em Sentido Estrito contra a decisão de pronúncia que encaminha o réu a julgamento pelo Tribunal do Júri despreza que o júri é uma garantia do cidadão, e também não leva em conta que, a todo momento, os tribunais lapidam tais decisões, seja afastando qualificadoras, seja desclassificando os crimes contra a vida, seja despronunciando ou, até mesmo, absolvendo sumariamente os acusados. Isso sem falar no reconhecimento de nulidades processuais e na anulação das, não raras, decisões com excesso de linguagem, que antecipam a condenação dos réus.
Inconcebível, portanto, que alguém seja encaminhado a julgamento pelo Júri sem prévia revisão da validade da pronúncia por um tribunal composto por juízes de direito, a não ser que a defesa técnica deliberadamente opte pelo julgamento imediato, haja vista que, como já dito, o julgamento dos acusados por crimes contra a vida por seus pares júri foi reconhecido pela Carta Fundamental como direito do cidadão.
No tocante aos embargos infringentes, absurda a limitação apenas aos casos de voto vencido pela absolvição do acusado, uma vez que o próprio nome do recurso sugere que possa haver divergência no tocante a nulidades, que são aspectos sempre controversos e que geram divergências substanciais nas cortes. Trata-se de mais uma questão de segurança jurídica possibilitar a revisão e a formação de um posicionamento pacífico de órgão superior dentro do próprio tribunal (seção ou grupo criminal). O manejo dos embargos suspende a execução criminal.
As alterações propostas a situações de legítima defesa procuram resguardar agentes policiais e de segurança pública (como agentes penitenciários) que cometem ilícitos no exercício profissional. Situações envolvendo conflitos armados ou “em risco iminente de conflito armado”, que já estavam no âmbito da previsão normal da legítima defesa, passam a ser melhor detalhadas com alguma margem de subjetividade, exteriorizando uma nítida mensagem de que o agente policial está amparado por uma proteção legal estatal superior a do cidadão comum.
Atribui-se maior poder de decisão a esses agentes, que estarão albergados por excludente em suas ações mais incisivas contra o crime. Inclusive, há previsão de imunidade à prisão em flagrante quando constatada pela autoridade policial a possibilidade de que tenham agido sob o manto da “nova legítima defesa”, com a imposição automática de cautelar diversa (comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revelia e prisão).
O excesso em legítima defesa poderá ter sua pena reduzida até a metade ou mesmo perdoada, quando decorrer de “medo”, “surpresa” ou “violenta emoção”. Desta forma, legitima-se a ação policial que hoje contribui para o alto índice de violência que vitimiza cidadãos de áreas de risco. O policial que troca tiros com o infrator em perseguição já estava albergado pela legítima defesa. Agora, porém, se incorrer em excesso poderá estar albergado pela excludente ou terá sua pena abrandada, o que certamente gerará um incremento da letalidade das ações policiais, porém deixará de ser uma preocupação oficial dos órgãos de segurança pública, eis que as situações estarão ao amparo da lei.
As medidas para endurecer o cumprimento das penas focam na reincidência do condenado, ou seja, na dupla punição por ser a pessoa quem ela é. O reincidente passará a ter tratamento ainda mais diferenciado, medida própria do chamado “Direito Penal do autor” (contraponto ao “Direito Penal do fato”, que pune o agente pela conduta por ele praticada).
Condenados reincidentes automaticamente iniciam o cumprimento de pena em regime fechado, salvo se as infrações prévias forem de menor potencial ofensivo, bem como aqueles condenados para os quais haja elementos probatórios que indiquem uma conduta criminal habitual. Independente da quantidade de pena, determinados delitos passam a ter regime inicial de cumprimento de pena fechado.
Ainda mais espantosa é a previsão de criação de um parágrafo único ao art. 59 do Código Penal, prevendo a possibilidade de o magistrado fixar um período mínimo de cumprimento de pena no regime inicial fechado ou semiaberto antes da possibilidade de progressão. Ou seja, seria o juiz, no caso concreto, quem determinaria que direito tem o condenado na execução de sua pena. A legalidade cede espaço à oportunidade, promovendo ainda maior insegurança jurídica.
Qualquer delito que integre o rol de crimes hediondos e resulte na morte da vítima tem progressão condicionada ao cumprimento mínimo de 3/5 da pena. Além disso, a progressão de regime fica condicionada ao mérito do condenado e à constatação de condições pessoais que façam presumir que ele não voltará a delinquir. Logo, em outras palavras, para estes crimes restaria abolida a necessária progressão de regime, pois determinados apenados poderiam nunca preencher os requisitos subjetivos previstos na novel legislação, de sorte que a pena definitivamente seria apenas retribuição nestes casos. A preocupação com a ressocialização fica em segundo plano, o que se verifica com a vedação expressa a saídas temporárias no regime fechado e a possibilidade apenas de comparecimento ao trabalho ou a cursos de instrução ou profissionalizantes no regime semiaberto.
Líderes de organizações criminosas que envolvam uso de armamento iniciarão o cumprimento de pena em presídios de segurança máxima. Havendo indicativos de que determinado indivíduo seja ligado ao crime organizado não poderia progredir de regime. Ora, não é possível ignorar que nossas prisões são controladas por facções criminosas, que dominam alas inteiras das penitenciárias. Isso implicaria negar o direito à progressão a um número incalculável de presos que, apenas pelo fato de estarem em locais sob a influência destes grupos criminosos podem ser rotulados como integrantes ou, no mínimo, simpatizantes de facções.
A alteração do conceito de organização criminosa busca abarcar um número maior de associações e traz para o texto de lei o nome de alguns grupos hoje existentes no Brasil, como o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho, revelando que o Estado brasileiro reconhece a existência dessas agremiações e procura claramente combatê-las.
Em relação ao porte de armas de fogo, o reincidente ou aquele com maus antecedentes pagará mais caro por ser quem é e por continuar na vida do crime. A punição é objetiva, desconsidera qualquer falha do próprio Estado em prevenir que o sujeito que já cumpriu pena volta a delinquir. Nota-se, com isso, o quanto o projeto de Lei Anticrime preocupa-se com a punição imediata, e não com qualquer reflexo desta punição sobre a vida do condenado. Ignora-se que algum dia este cidadão irá reintegrar a sociedade. A preocupação maior é dar uma resposta imediata ao anseio de punição do crime hoje. É uma lei que não tem qualquer compromisso com seus reflexos daqui a 10, 20 ou 30 anos, quando o governo que a propôs não estará mais no poder.
Em relação ao perdimento de produtos do crime, medida mais incisiva de combate às organizações criminosas, eis que afeta aquilo que mantém suas operações, a projeto prevê a perda de todo o patrimônio do agente vinculado à organização que não seja compatível com seu rendimento lícito. Neste patrimônio, inclui-se todos os bens de sua titularidade, de que tenha o domínio ou tenha benefício direto ou indireto, e até mesmo aqueles que tenham sido transferidos a terceiros. Há previsão de que o condenado terá oportunidade de demonstrar a inexistência de incompatibilidade ou procedência lícita do patrimônio o que sugere que, na prática, poderá ocorrer uma inversão do ônus probatório daquele que foi condenado por integrar organização criminosa e terá seu patrimônio expropriado porque não consegue provar a licitude. O Estado terá um poder tão ampliado que dificilmente o acusado conseguirá exercer com amplitude seu direito de defesa.
Obras de arte e bens de relevante valor cultural ou artístico cujo perdimento foi decretado poderão ser destinados a museus públicos quando a vítima for indeterminada ou for a Administração Pública.
A permissão do uso de bens apreendidos pelos órgãos de segurança pública é medida salutar, desde que permitido o contraditório prévio sobre a constrição desses bens. Ainda assim, existe a problemática vinculada à execução provisória da sentença condenatória, considerando a possibilidade de reversão da decisão em novos recursos. O prejuízo àquele que teve bens sequestrados e posteriormente foi absolvido ou teve o processo anulado poderá ser irreversível.
A medidas que buscam obstar a prescrição acabam por responsabilizar a defesa do acusado que recorre aos Tribunais Superiores e tem seus recursos inadmitidos. O acórdão do colegiado, independente de ser condenatório (ter reformado uma absolvição em 1º grau) ou não, também passa a interromper a prescrição, assim como o início ou continuação da execução provisória da pena. Trata-se de medidas tendentes a evitar que os crimes fiquem sem punição e, com isso, que a sociedade não fique com a sensação de impunidade. Porém, em realidade, não passam de mecanismos que legitimam ainda mais a demora do Estado em fazer cumprir a garantia da duração razoável do processo, que é sistematicamente desrespeitada.
A reforma do crime de resistência é mais uma medida que busca elevar a posição do funcionário estatal que executa ordem legal. Agrega-se pena de multa ao tipo penal já existente e cria-se uma nova figura de resistência qualificada pela morte ou pelo mero risco de morte ao funcionário ou mesmo a um terceiro, que passa a ser punida com pena de 6 a 30 anos, e multa. Logo, retira-se do Tribunal do Júri a competência para casos limítrofes de resistência que possam resultar em morte e normalmente eram classificados como homicídio, o que dá maior margem ao juiz togado para decidir e fixar a pena sem a análise sociocultural subjetiva das circunstâncias que circundam o crime, inerente ao Conselho de Sentença julga os crimes contra a vida.
O Ministério Público poderá propor um “acordo de não persecução penal” nos casos de crimes com pena máxima de até 4 anos, sem violência ou grave ameaça, em que o agente confesse a infração penal. Este acordo fica condicionado à necessidade e suficiência à reprovação e prevenção do crime e deve observar uma série de condições (reparação do dano ou restituição da coisa à vítima; renúncia voluntária a bens e direitos indicados pelo MP como instrumentos, produtos ou proveitos do crime; prestação de serviços à comunidade pelo período da pena mínima cominada ao delito, diminuída de 1/3 a 2/3; prestação pecuniária, preferencialmente destinada a entidades que tenham a função de proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos lesados pelo crime; cumprimento de outras condições indicadas pelo MP, desde que proporcionais e compatíveis com a infração). É vedado o acordo de não persecução a casos que admitam transação penal; a investigados reincidentes ou com indícios de que tenham conduta criminal habitual, reiterada ou profissional relevante; a pessoas que já tenham sido beneficiados por medida despenalizadora dentro de 5 anos; e a investigados cujos antecedentes, a conduta social e a personalidade, bem como os motivos e as circunstâncias, não indicarem ser necessária e suficiente a adoção da medida. Como se percebe, a margem de discricionariedade acusatória é alta e a seletividade continuaria impregnada no sistema.
A exemplo do que ocorre na colaboração premiada, o juiz designará audiência para aferir a legalidade e a voluntariedade do acordo e para ouvir o beneficiado. O juiz terá o poder de rejeitar as condições celebradas e de devolver os autos ao MP para readequação, caso as repute inadequadas ou insuficientes. Não havendo emenda, o juiz pode recusar a homologação, oportunidade na qual mandará os autos ao MP para reformular a proposta de acordo de não persecução.
É o chamado “plea bargain”, importado do direito anglo-saxão, onde negocia-se a existência ou não do processo de acordo com o comportamento do acusado e mediante a imposição de determinadas condições, o que levanta uma série de indagações de ordem moral e principiológica, estimulando a barganha de benefícios com o afastamento do exercício do direito de defesa. Busca-se, cada vez mais, afastar o suspeito do resguardo de uma defesa técnica e combativa no âmbito do processo penal. A fim de “agilizar” a persecução, impõe-se a aceitação de um acordo que segue a lógica comercial do custo/benefício e relega a segundo plano diversas garantias constitucionais historicamente construídas.
Homologado o acordo, este será executado perante o Juízo da execução penal. Do contrário, o juiz encaminha os autos ao Ministério Público para complementação das investigações ou oferecimento de denúncia. Em caso de descumprimento do acordo, o Ministério Público comunica o juízo, para fins de rescisão e, em seguida, oferece a denúncia. O acordo não serve como antecedente criminal. Durante sua vigência, não corre a prescrição.
Outro acordo possível previsto no projeto seria proposto pelas partes durante a instrução processual, com a execução imediata das penas, mediante a confissão do réu, a sugestão de pena concreta a ser aplicada e a renúncia à produção de qualquer prova ou a interposição de qualquer recurso.
O grau de colaboração do réu para a “rápida solução do processo” também poderá ter efeitos sobre sua pena (redução até a metade, substituição por restritiva de direitos) ou sobre o regime de cumprimento. O acordo também deve ser homologado pelo juiz em audiência especialmente designada para aferir a legalidade e a voluntariedade. Este acordo terá os mesmos efeitos de uma sentença penal condenatória. Caso não haja homologação, a documentação é desentranhada dos autos e as partes ou o juiz não poderão fazer referência a ele.
Logo, tem-se aqui a introdução de novos mecanismos de negociação no âmbito do processo penal, com finalidades instrumentais, tudo com o objetivo de propiciar uma resposta social rápida e eficaz, ainda que às custas de violação de um ou outro direito fundamental do indivíduo, o que pode violentar diretamente o Estado Democrático de Direito e a Constituição Federal.
O projeto busca, ainda, facilitar o julgamento de crimes complexos com reflexos eleitorais quando surgirem provas de crimes funcionais praticados por agentes com o chamado “foro privilegiado”. Caberá ao tribunal competente decidir pela reunião de processos que envolvam esses agentes, tudo para agilizar o julgamento.
Cria-se um crime de “caixa dois em eleições”, que tipifica a conduta de “Arrecadar, receber, manter, movimentar ou utilizar qualquer recurso, valor, bens ou serviços estimáveis em dinheiro, paralelamente à contabilidade exigida pela legislação eleitoral” com pena de 2 a 5 anos. É conduta equiparada a de quem, nas mesmas circunstâncias, “doar, contribuir ou fornecer recursos, valores, bens ou serviços”. A pena pode ser aumentada de 1/3 a 2/3, caso algum agente público participe do delito. A velha reivindicação de criminalização de condutas notadamente ilícitas que são práticas corriqueiras de partidos políticos e seus membros, busca proteger a probidade da Administração Pública e a transparência exigida nas eleições, evitando o uso de recursos obscuros. Dada a ausência de receptividade desta proposta no Congresso Nacional, o que poderia implicar entraves aos demais pontos, o governo federal optou estrategicamente por “fatiar” o projeto e não propor, neste momento, a criminalização do “caixa dois eleitoral”. A manobra serviria como espécie de “moeda de troca” pela aprovação de alguns pontos de interesse governamental e demonstra o quão impregnada de vieses políticos está o projeto de Lei Anticrime, o que, de certo modo, afasta sua credibilidade e põe em dúvida o real compromisso com os objetivos iniciais apresentados (especialmente o combate à corrupção).
A prevenção de custos com deslocamento ou escolta poderá embasar a realização de interrogatório de réu preso por videoconferência. O argumento de ordem estritamente utilitarista desconsidera o princípio da identidade física do juiz, que traz como uma de suas facetas o direito de o acusado ver e dirigir-se pessoalmente ao magistrado que irá julgá-lo. A videoconferência estende-se para qualquer outro ato processual que dependa da participação do preso, inclusive audiências de custódia. Resolve-se, com isso, um problema do Poder Executivo, retirando o direito do acusado preso de acompanhar seu processo. Para a grande maioria dos encarcerados no Brasil, que dependem do atendimento das Defensorias Públicas, isso implicaria nunca ter qualquer contato com seu defensor, muito menos com o promotor/procurador que lhe acusa ou com o juiz que irá julgá-lo. Pessoas passariam a ser condenadas muitas vezes sem sequer entender as razões pelas quais foram acusadas ou sem compreender o rito processual ao qual estão submetidas.
Existe uma preocupação central do projeto em impor medidas para dificultar a soltura de criminosos habituais. O fato de ser reincidente, estar envolvido na “prática habitual, reiterada ou profissionais” de crimes que não sejam de reduzido potencial ofensivo ou integrar organização criminosa é causa para negar automaticamente a liberdade provisória por ocasião do flagrante, podendo ser fixadas cautelares diversas. Não é mais o caso concreto que dita a proporcionalidade e a necessidade da prisão. Estar de qualquer modo vinculado ao crime organizado ou ter um histórico criminal passaria a ser determinante para o encarceramento, o que viola decisão do STF que afasta a vedação automática de liberdade.
Os presídios federais passam a ocupar um espaço ainda mais importante no combate às organizações criminosas. Esses estabelecimentos ficam sob a jurisdição de um juiz federal de execução penal, que terá competência para toda e qualquer deliberação relacionada à execução da pena dos presos e das infrações ali praticadas. A inclusão do preso condenado ou provisório em estabelecimentos penais federais de segurança máxima está condicionada ao interesse da segurança pública ou do próprio preso. No primeiro caso, o regime terá requisitos bastante específicos, com o preso em cela individual, visitas monitoradas por filmagens e gravações e sem contato físico dos familiares com o preso, banho de sol de até 2 horas diárias, e monitoramento de todas as comunicações do preso. O preso torna-se objeto dos interesses estatais com a segurança pública, perde sua privacidade e tem inúmeros direitos afetados.
Os advogados deverão agendar visitas previamente e as gravações de seus atendimentos dependerão de autorização judicial fundamentada. O direito a visitas pode ser suspenso ou restringido pelo diretor do presídio ou pelo diretor do sistema penitenciário federal em ato motivado.
Ao passo que os presos comuns sofrerão duras restrições em prol das novas políticas criminais, os colaboradores, extraditandos e outros presos em condições excepcionais poderão ter seu regime prisional “excepcionado”, mediante decisão do diretor do estabelecimento. É a forma que se encontra para propiciar que algumas pessoas sigam tendo benefícios superiores a outras no sistema carcerário brasileiro.
O período de permanência máxima nos presídios federais é de 3 anos, renovável por igual período, quando solicitado pelo juízo de origem. As decisões sobre a execução de penas dentro dos estabelecimentos prisionais federais poderão ser tomadas por um colegiado de juízes, a exemplo do que é permitido pela lei nº 12.694/2012.
Novas medidas para aprimorar a investigação de crimes também são contempladas pelo pacote. Todos os condenados por crimes dolosos, mesmo provisórios, serão obrigatoriamente submetidos à identificação do perfil genético mediante extração de DNA, constituindo falta grave a recusa em submeter-se ao procedimento de identificação. Em caso de absolvição do condenado provisório, seu perfil genético será excluído do Banco Nacional. Após 20 anos do cumprimento da pena, mediante requerimento, o perfil também poderá ser excluído.
A interceptação de comunicações em sistemas de informática e telemática torna-se ainda mais intrusiva. Poderá ocorrer por qualquer meio tecnológico disponível desde que assegurada a integridade da diligência e poderá incluir a apreensão do conteúdo de mensagens e arquivos eletrônicos já armazenado em caixas postais eletrônicas
Na lei de tóxicos, torna-se crime equiparado ao tráfico a conduta de quem vende ou entrega drogas ou matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas, sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar, a agente policial disfarçado, quando presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal pré-existente.
O mesmo ocorre na lei de lavagem e no estatuto do desarmamento, legitimando a infiltração policial e o flagrante preparado quando presentes “elementos probatórios razoáveis” de conduta criminal pré-existente.
Cria-se no âmbito da lei 10.826/03 um Banco Nacional de Perfis Balísticos, gerido nas unidades de perícia oficial da União, estaduais e distrital, com o objetivo de cadastrar armas de fogo, armazenando características de classe e individualizadoras de projeteis e de estojos de munição deflagrados por arma de fogo. O BNPB será constituído pelos registros de elementos de munição deflagrados por armas de fogo relacionados a crimes, para subsidiar ações destinadas à apuração criminal federal, estaduais ou distrital. Os dados constantes do Banco terão caráter sigiloso, respondendo civil, penal e administrativamente aquele que permitir ou promover sua utilização para fins diversos dos previstos em lei ou em decisão judicial.
Fica autorizada a criação de um Banco Nacional Multibiométrico e de Impressões Digitais, no Ministério da Justiça e Segurança Pública, com objetivo de armazenar dados de registros biométricos, de impressões digitais e, quando possível, de íris, face e voz, para subsidiar investigações criminais federais, estaduais ou distrital. Este Banco será integrado pelos registros biométricos, de impressões digitais, íris, face e voz colhidos em investigações criminais, por ocasião da identificação criminal ou dos que já estiverem presos à época da sua criação.
Amplia-se o uso dos meios de obtenção de prova previstos na lei das organizações criminosas para qualquer fase da investigação ou da persecução penal de crimes praticados por organizações criminosas ou de qualquer crime cuja pena máxima seja superior a 4 anos ou a qualquer infração penal conexa.
O Ministério Público Federal e a Polícia Federal poderão firmar acordos ou convênios com congêneres estrangeiros para constituir equipes conjuntas de investigação para a apuração de crimes de terrorismo, crimes transnacionais ou crimes cometidos por organizações criminosas internacionais.
Autoriza-se, ainda, o uso da escuta ambiental (captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos), pelo prazo de 15 dias, renovável por iguais períodos, como novo meio de obtenção de prova para colheita de indícios, quando a prova não puder ser feita por outros meios disponíveis e igualmente eficazes e quando houver elementos probatórios razoáveis de autoria e participação em infrações criminais.
A realização de captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos sem autorização judicial sujeita o agente à pena de reclusão, de 2 a 4 anos, e multa, excluída a ilicitude se a captação é realizada por um dos interlocutores. Incorre na mesma pena quem descumprir determinação de sigilo das investigações que envolvam a captação ambiental ou quem revelar o conteúdo das gravações enquanto mantido o sigilo judicial.
Ao que se percebe, há uma tentativa de ampliar os meios de colheita de provas, tornando-os mais incisivos e restringindo mais a liberdade do cidadão, de modo diminuir algumas garantias constitucionais asseguradas.
Por fim, o projeto prevê a introdução da figura do “informante do bem” ou do “whistleblower” no processo penal brasileiro.
A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios e suas autarquias e fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, criarão unidades de ouvidoria ou correição para assegurar a qualquer pessoa o direito de relatar informações sobre crimes contra a Administração Pública, ilícitos administrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público. Ao informante será assegurada proteção integral contra retaliações e estará isento de responsabilização civil ou penal em relação ao relato, salvo se tiver apresentado, de modo consciente, informações ou provas falsas.
Além dos direitos previstos na lei de proteção a testemunhas, o informante tem o direito de preservação de sua identidade, que só será revelada em caso de relevante interesse público ou interesse concreto para a apuração dos fatos. A autoridade processante poderá determinar ao autor que opte entre a revelação da identidade ou a perda do valor probatório do depoimento prestado, ressalvada a validade das demais provas produzidas no processo.
Ninguém poderá ser condenado apenas com base no depoimento prestado pelo informante, quando mantida em sigilo a sua identidade, o que dá a entender que, uma vez publicizada a fonte da informação, esta passaria a ter validade de prova e poderia ensejar condenações criminais. A revelação da identidade somente será efetivada mediante comunicação prévia ao informante, com prazo de trinta dias, e com sua concordância.
Fica assegurada ao informante proteção contra ações ou omissões praticadas em retaliação ao exercício do direito de relatar, tais como demissão arbitrária, alteração injustificada de funções ou atribuições, imposição de sanções, de prejuízos remuneratórios ou materiais de qualquer espécie, retirada de benefícios, diretos ou indiretos, ou de negativa de fornecimento de referências profissionais positivas. A prática de ações ou omissões de retaliação ao informante configura falta disciplinar grave, sujeitando o agente à demissão a bem do serviço público. O informante será ressarcido em dobro por eventuais danos materiais causados por ações ou omissões praticadas em retaliação, sem prejuízo de danos morais.
Quando as informações disponibilizadas resultarem em recuperação de produto de crime contra a Administração Pública, poderá ser fixada recompensa em favor do informante em até 5% do valor recuperado. Sucede que a atração de recompensas para o processo penal, medida própria do Direito Penal premial, tende a colocar em xeque a veracidade das informações prestadas e trará questionamentos morais., além de forçar a celebração de acordos entre o Estado e criminosos, que posteriormente serão tratados com excepcionalidade no sistema carcerário, retroestimulando as práticas delitivas.
A análise do projeto de Lei Anticrime permite concluir que as mudanças propostas têm caráter simbólico de alta repercussão social, trazendo consequências diretas para a restrição de garantias fundamentais previstas na Constituição. Reformas de tal envergadura demandam amplas discussões que envolvam diversos setores da sociedade civil e que congreguem pontos de vista distintos, mormente dos operadores do Direito Penal. Não surpreende, pois, que o texto original já tenha sofrido alterações e que, inclusive, tenha sido removida a proposta de tipificação do “caixa dois em eleições”. É que um regime democrático não pode adotar reformas abrindo mão da colaboração de todos.
Mudanças de tamanha radicalidade demandam a realização de pesquisas empíricas sérias e de um profundo estudo dos impactos que as alterações legislativas causariam no sistema, especialmente quando estas implicam o aumento dos índices de encarceramento. Não há espaço para o senso comum quando o tema é a liberdade do ser humano. Nesse sentido, as propostas examinadas não destoam da política criminal que o Brasil vem adotando nos últimos anos, na contramão de outros países com as maiores populações carcerárias do mundo, que adotaram alternativas para reduzir o número de presos. Muito se pode atribuir ao fato de que, no Brasil, a repressão à criminalidade está entre as prioridades de qualquer governo, no afã de assegurar uma sensação de pacificação que se reverta em votos para os políticos que encampam essas campanhas. Sucede que nem sempre estas mudanças encontram guarida constitucional ou convencional.
Alguns pontos do projeto pendem de solução pelo Supremo Tribunal Federal, tal como a questão da execução provisória da pena, cuja resolução poderia esvaziá-lo em parte. Ainda, resta ao Congresso Nacional a análise de diversos outros projetos em estágio mais avançado de desenvolvimento que dizem respeito a reformas pontuais. Os projetos de reformas globais do Código Penal e do Código de Processo Penal, legislações extremamente defasadas e que necessariamente precisam ser reformuladas, vêm encontrado entraves que não permitem seus avanços.
Acima de tudo, medidas que flexibilizem garantias fundamentais e restrinjam o direito de defesa do cidadão devem enfrentar profundos debates com todos os interessados e passar pelo crivo da academia. Alguns filtros precisam ser criados para impedir a concentração do poder discricionário nas mãos do julgador e reduzir a subjetividade dos atos decisórios, sob pena de perigoso retrocesso civilizatório, tendente ao autoritarismo e conflitante com as conquistas históricas do Estado Democrático de Direito.
Definitivamente, a lei penal não resolve problemas sociais e sua criação não prescinde da observância do contexto em que está sendo elaborada. Precisamos refletir sobre o futuro dos direitos insculpidos na Constituição Federal, os quais vem sendo atacados em prol da efetividade de uma resposta simbólica que atenda anseios punitivistas. O fenômeno do crime organizado precisa de um enfrentamento racional e estratégico, mas isso não significa que precisemos abandonar os princípios do Direito e do Processo Penal, tampouco deixar de tratar os acusados como pessoas, haja vista a proibição de retrocesso no que tange às conquistas em prol dos direitos humanos. A lei penal deve ser pensada para todos e para a promoção do bem comum. Desta forma, espera-se que o projeto de Lei Anticrime seja discutido a fundo, levando em conta seus reflexos duradouros, não apenas aqueles imediatos e emblemáticos, que não tenham efetividade e que não assegurem maior segurança jurídica ao cidadão.