Artigo Destaque dos editores

Criminal compliance: a instrumentalização da função preventiva do direito penal na sociedade do risco

Exibindo página 2 de 3
17/04/2019 às 11:40
Leia nesta página:

3 DIRETO PENAL CLÁSSICO, DIREITO PENAL MODERNO E A SOCIEDADE DO RISCO.

O direito penal, fruto da necessidade do convívio humano em sociedade, evolui, como qualquer outro ramo das ciências jurídicas, na medida em que a sociedade se desenvolve. E, nas últimas décadas, devido ao vertiginoso avanço social, esse ramo do direito sofreu e vem sofrendo grandes revoluções.

Isso porque, como é cediço, o direito penal clássico, de bases iluministas e de cunho individualista, ensinado nos bancos das universidades e faculdades do País, assenta-se na ideia de separação entre o direito e a moral. E devido ao afastamento desses conceitos no século das luzes, possibilitou o surgimento de vários princípios limitadores da intervenção estatal no exercício do jus puniendi, a exemplo do princípio da legalidade, que determinada que somente haja crime se houver uma lei anterior que defina tal conduta como crime.

Ferrajoli (2006, p. 204), tratando do tema assenta que:

"Aideia de que não existe uma conexão necessária entre direito e moral, entre o direito “como é” e como “deve ser” é comumente considerada um postulado do positivismo jurídico. O direito segundo essa tese, não reproduz e nem mesmo possui a função de reproduzir os ditames da moral ou de qualquer outro sistema metajurídico – divino, natural ou racional -, ou ainda, de valores éticos políticos, e produto de convenções legai não predeterminadas ontologicamente, nem mesmo axiologicamente. Ainda no mesmo diapasão, tal doutrina, formulada em sentido inverso, exprime a autonomia da moral em relação ao direito positivo, bem como de qualquer outro tipo de prescrição heterônoma e de sua consequente individualista e relativista (...). Ambas as teses supramencionadas constituem uma aquisição basilar da civilização liberal, além de refletirem o processo por meio do qual, no inicio da Idade Moderna, tornaram-se laico tanto o direito quanto a moral, desvinculando-se, enquanto esferas distintas e separadas de qualquer liame com supostas ontologias de valores. (...). Para os nossos propósitos é mais diretamente relevante a primeira doutrina, ou seja, aquela da separação entre direito e moral, formulada pelo pensamento iluminista e posteriormente recepcionada pelo positivismo jurídico enquanto fundamento do princípio de legalidade no Estado de direito moderno."

Contudo, a partir da década de 1970, essa concepção iluminista e individualista do direito penal começa a passar por uma transformação, onde houve a necessidade da proteção de bens jurídicos supraindividuais e de forma anterior ao dano, dando início ao surgimento do direito penal moderno.

Dessa maneira, o presente capítulo tratará da abordagem dessas duas espécies de direito penal, iniciando-se pelo que é considerado clássico, cujas bases remontam o período histórico que ficou conhecido como Século das Luzes.

3.1 DIREITO PENAL CLÁSSICO.

O direito penal clássico teve o seu início no período renascentista, a partir de pensadores humanistas, que tiveram seus estudos voltados aos questionamentos dos ditames do poder eclesiástico, colocando o homem como o ser mais importante nas relações humanas.

As conquistas desse período da história provocaram a troca da razão da autoridade pela autoridade da razão. E foi a partir de Beccaria, com a sua fundamental obra “Dos Delitos e Das Penas”, que passou-se a humanizar o direito penal.

Isso porque os estudos dos pensadores iluministas fundamentaram uma nova noção de justiça,totalmente incompatível com a justiça irracional e cruel do Estado Despótico, dando base as novas formas de pensar o direito penal, onde a razão passava a prevalecer e era buscada extinguir a crueldade e barbárie disfarçadas de justiça.

Já com a chegada do século XIX, iniciou-se a era das codificações do direito penal, cuja base das leis incriminadoras se dava por meio de quatro pilares fundamentais: nullum crime, nulla poena sine lege, pela fundamentação racional da pena, da qual se deduz a necessidade de proporcionalidade da mesma ao fato cometido, a concepção do delito como algo diferente do pecado e a humanização das penas sob a preponderância da pena privativa de liberdade (SILVA, 2008), como sendo uma espécie de limitação do atuar repressivo estatal.

Nesse momento, começa a surgir uma série de garantias do cidadão em face do poder estatal e o surgimento das Constituições Democráticas como norma maior de um Estado, passando, então, a constituir o Estado Democrático de Direito, o que gerou, definitivamente, um critério de racionalidade das normas penais, sensíveis aos postulados constitucionais.

Com isso, definiu-se como objeto exclusivo do direito penal a proteção de bens jurídicos certos e individuais, submetidos a uma série de princípios basilares, os quais serão abordados a seguir.

3.1.1 Princípio da legalidade.

O princípio da legalidade, primeiro instrumento de limitação do poder punitivo estatal, intimamente ligado ao conceito de Estado de Direito, exige, entre outras, a subordinação de todos perante a lei. E, nas palavras de Greco (2014, p. 97) citando Paulo Bonavides esclarece que:

"O princípio da legalidade nasceu do anseio de estabelecer na sociedade humana regras permanentes e válidas, que fossem obras da razão, e pudessem abrigar os indivíduos de uma conduta arbitrária e imprevisível de parte dos governantes. Tinha-se em vista alcançar um estado geral de confiança e certeza na ação dos titulares do poder, evitando-se assim a duvida, a intranquilidade, a desconfiança e a suspeição, tão usuais onde o poder é absoluto, onde o governo se acha dotado de uma vontade pessoal soberana ou se reputa legibussolutus e onde, enfim, as regras de convivência não foram previamente elaboradas nem reconhecidas."

No ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da legalidade está inserido tanto na Constituição da República, no inciso XXXIX, do art. 5º, como no Diploma Repressor de 1941, em seu art. 1º. Tal princípio é enunciado na doutrina por meio da expressão nullum crime, nulla poena sine lege.

Desse princípio decorre uma série de garantias fundamentais do limitar da atuação punitiva do Estado, que, segundo Mirabete (2013, p. 41):

"O princípio da legalidade é obtido no quadro da denominada função de garantia penal, que provoca seu desdobramento em quatro princípios:nullum crime, nullapoenasine lege praevia (proibição de edição de leis retroativas que fundamentem ou agravem a punibilidade); nullum crime, nullapoenasine lege scripta (proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pelo direito consuetudinário); nullum crime, nullapoenasine lege stricta (proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pela analogia); nullum crime, nullapoenasine legecerta (proibição de leis penais indeterminadas."

Com essas vertentes, o princípio da legalidade determina que ninguém será punido por fato que ao tempo da ação ou da omissão não era tipificada como crime em lei penal incriminadora, a certeza da proibição somente em virtude da lei, e que não será utilizada a analogia para o prejudicar, de alguma forma, o perseguido pelas leis penais e que tais leis sejam claras e precisas, sendo vedado a criação de normas penais com conceitos vagos e imprecisos (GRECO, 2014).

Com precisão, preleciona Paulo de Sousa Queiroz (2001 p. 23-24):

"O princípio da reserva legal implica a máxima determinação e taxatividade dos tipos penais, impondo-se ao Poder Legislativo, na elaboração das leis, que redija tipos penais com a máxima precisão de seus elementos, bem como o Judiciário que as interprete restritivamente, de modo a preservar a efetividade do princípio."

Portanto, conclui-se que o princípio aqui tratado é uma das mais importantes garantias do indivíduo contra o exercício do jus puniendi pelo Estado, o qual deve ter como base do seu atuar a estrita observância e este princípio.

3.1.2 Princípio da proporcionalidade.

O princípio da proporcionalidade entende-se pela necessidade de haver uma proporção entre a pena aplicada e o cometimento do fato delituoso. Do podo de vista jurídico, esse princípio apresenta-se como fundamentação e legitimação do direito penal (QUEIROZ, 2001).

Alberto Silva Franco, dissertando sobre o princípio da proporcionalidade aduz que (2000, p. 67):

"O princípio da proporcionalidade exige que se faça um juízo de ponderação sobre a relação existente entre o bem que é lesionado ou posto em perigo (gravidade do fato) e o bem de que pode alguém ser privado (gravidade da pena). Toda vez que, nessa relação, houver um desequilíbrio acentuado, estabelece-se, em consequência, inaceitável desproporção. O princípio da proporção rechaça, portanto, o estabelecimento de proporções legais (proporcionalidade em abstrato) e a imposição de penas (proporcionalidade em concreto) que careçam de relação valorativa com o fato cometido considerado em seu significado global. Tem, em consequência, um duplo destinatário: o poder legislativo (que tem de estabelecer penas proporcionais, em abstrato, à gravidade do delito) e o juiz (as penas que os juízes impõem ao autor do delito tem de ser proporcionais à sua concreta gravidade)."

Desse modo, a aplicação do princípio da proporcionalidade, tanto no campo abstrato como no campo concreto, atende um critério indispensável de racionalidade.

E aqui é importante mencionar que desse princípio, responsável por dar racionalidade ao direito penal, extrai-se importantes vertentes, quais sejam, a proibição de proteção deficiente e a proibição do excesso.

Pela primeira vertente, entende-se que a proteção de um direito fundamental seja de forma plena, não se permitindo uma deficiência na prestação legislativa.

Já a segunda vertente, é dirigida tanto ao legislador quanto ao julgador, e procura proteger o direito à liberdade, evitando punições desnecessárias e excessivas.

Neste sentido, pode-se conclui com as palavras de Lenio Streck, quando trata das vertentes do princípio da proporcionalidade em sua obra, afirmando que (2005, p. 180).

"Trata-se de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção positiva e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional o restado do seu sopesamento (Abwägung) entre fins e meios; de outro lado, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental-social, como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da constituição e tem como conseqüência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador."

Dessa maneira, o princípio da proporcionalidade, de modo geral, apresenta-se como um instrumento de racionalidade do direito penal, o qual determina que a sanção penal deve ser adequada e proporcional ao fato delituoso.

3.1.3 Princípio da responsabilidade penal subjetiva.

Por esse princípio, também chamado de princípio da pessoalidade ou da intranscedência da pena, entende-se que somente aquele que tenha agido com dolo ou culpa é que será submetido à sanção penal que lhe for imposta pelo Estado no exercício do jus puniendi.

Isso quer dizer que quando a responsabilização imposta à determinada pessoa pelo Estado for de natureza penal, somente ela poderá sofrer a condenação.

Neste mesmo sentido são os ensinamentos de Rogério Greco (2014, p. 83):

"Quer o princípio constitucional dizer que, quando a responsabilidade do condenado é penal, somente ele, e mais ninguém, poderá responder pela infração praticada. Qualquer que seja a natureza da penalidade aplicada, somente o condenado é que deverá cumpri-la."

Portanto, por esse princípio estabelece-se que não basta apenas que o fato delituoso seja materialmente causado pelo agente, para que se possa fazê-lo responsável requer, entes de tudo, que o fato tenha sido predeterminado pelo agente ou, pelo menos, que tenha sido previsível o seu resultado.

3.1.4 Princípio da lesividade.

Esse princípio tem tamanha magnitude que chega a orientar todo o sistema penal clássico. Constitui-se um dos critérios mais importantes da limitação do poder do legislador, na medida em que determina, de forma legítima e adequada, as condutas que poderão ser protegidas por meio da norma penal.

Tratando do tema, Rogério Greco, citando Sarrule, afirma que (2014, p. 55):

"As proibições penais somente se justificam quando se referem a condutas que afetem gravemente a direitos de terceiros; como conseqüência, não podem ser concebidos como respostas puramente éticas aos problemas que se apresentam senão como mecanismo de uso inevitável para que seja assegurados os pactos que sustentam o ordenamento normativo, quando não existe outro modo de resolver o conflito."

E continua o autor (Greco, 2014, p. 57):

"finalmente, com a adoção do princípio da lesividade busca-se, também, afastar da incidência de aplicação da lei penal aquelas condutas que, embora desviadas, não afetem qualquer bem jurídico de terceiros. Por condutas desviadas podemos entender aquelas que a sociedade trata com certo desprezo, ou mesmo repulsa, mas que, embora reprovadas sob o aspecto moral, não repercutem diretamente sobre qualquer bem de terceiros.

Concluindo, todas as vertentes acima traduzem, na verdade, a impossibilidade de atuação do Direito Penal caso um bem jurídico relevante de terceira pessoa não esteja sendo efetivamente atacado. Aquilo que for da esfera própria do agente deverá ser respeitado pela sociedade e, principalmente, pelo Estado, em face da argüição da necessária tolerância que deve existir no meio social, indispensável ao convívio entre pessoas que, naturalmente, são diferentes."

Além do mais, é a partir desse princípio que surge em nosso direito o princípio da insignificância ou da bagatela, aplicado aos casos de pequena monta, incapazes de ferir ou ameaçar o bem juridicamente tutelado pela norma, dando mais racionalidade ao direito penal.

Desse modo, em determinadas condutas, onde o bem tutelado pela norma penal não seja ferido ou não sofra ameaça de forma significativa, deve ter lugar o princípio da insignificância, corolário do princípio maior da lesividade, excluindo, assim, a tipicidade material da conduta.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos
3.1.5 Princípio da intervenção mínima.

Os princípios da lesividade e da intervenção mínima são como duas faces de um mesmo objeto, se de um lado a lesividade nos esclarecerá quais as condutas que poderão ser objetos de criminalização por meio da lei penal, o princípio da intervenção mínima, limitando ainda mais o poder punitivo estatal, somente autoriza a interferência do direito penal na liberdade do cidadão quando houver lesão ou ameaça de lesão a bem jurídico importante.

Em outras palavras, esse importante princípio da dogmática penal pugna pela máxima restrição da intervenção estatal ao mínimo necessário para a proteção de bens jurídicos.

A razão de ser do princípio da intervenção mínima pode ser sintetizada nas palavras de GRECO, que citando Muños Conde e ClausRoxin, esclarece que (2014, p. 51-52):

"O poder punitivo do Estado deve estar regido e limitado pelo princípio da intervenção mínima. Com isto, quero dizer que o direito penal somente deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes. As perturbações mais leves do ordenamento jurídico são objetos de outros ramos do direito.

A proteção de bens jurídicos não se realiza só mediante o direito penal, senão que nessa missão cooperam todo o instrumental do ordenamento jurídico. O direito penal é, inclusive, a ultima dentre todas as medidas protetoras que devem ser consideradas, que dizer que somente pode intervir quando falhe outros meios de solução social do problema – como a ação civil, os regulamentos de policia, as sanções não penais etc. Por isso se denomina a pena como ultimaratio da política sócia e se define sua missão como proteção subsidiária de bens jurídicos."

Nesse mesmo sentido são as lições de Bitencourt (1995, p. 32):

"O princípio da intervenção mínima, também conhecido como princípio da ultimaratio, orienta e limita o poder incriminador do estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanções ou de outros meios de controles sociais revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização será inadequada e desnecessária. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, serão estas que deverão ser empregadas e não as penais. Por isso, o direito penal deve ser a ultimaratio, isto é, deve atuas quando os demais ramos do direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo a da própria sociedade."

Portanto, conclui-se que o princípio aqui tratado exige do direito penal uma seletividade no sentido de que deve eleger somente bens jurídicos importantes, incapazes de serem protegidos por outros ramos do direito, para proteger.

3.2 A TUTELA DE BENS JURÍDICOS INDIVIDUAIS COMO NÚCLEO CENTRAL DO DIREITO PENAL DE BASES CLÁSSICAS.

A função exclusiva do direito penal é a proteção dos bens jurídicos mais importantes à manutenção do convívio do homem em sociedade. Contudo, essa indeterminação de quais serão os bens jurídicos protegidos por meio da norma penal pode dar ensejo a um perigoso controle da vida social, e por isso exige-se um conceito definido do que seja bem jurídico para o direito repressor.

O bem jurídico penalmente protegido há que ter seus contornos bem definidos, sendo certo, escrito e estrito, funcionando como limite à ampla criminalização de condutas.

Cezar Roberto Bitencourt, tratando do tema, traça uma trajetória conceitual do que vem a ser bem jurídico para o direito penal até chegar ao seu termo atual (BITENCOURT, 2007, p. 12-14):

"Admite-se atualmente que o bem jurídico constitui base da estrutura e interpretações dos tipos penais. O bem jurídico, no entanto, não pode identificar-se simplesmente com a ratio legis, mas deve possuir um sentido social próprio anterior à norma penal e em si mesmo decidido, caso contrário, não seria capaz de servir a sua função sistemática de parâmetro e limite do direito penal e de contrapartida das causas de justificação na hipótese de conflito de valorações.

(...)

O conceito de bem jurídico somente aparece na história dogmática em princípios do Século XIX. Diante da concepção dos iluministas, que definiam fato punível como lesão de direitos subjetivos, Feuerbach sentiu a necessidade de em todo preceito penal existe um direito subjetivo, do particular ou do Estado, com o objeto de proteção. Biding, por sua vez, apresentou a primeira depuração do conceito de bem jurídico concebendo-o como estado valorado pelo legislador. Von Liszt, concluindo o trabalho iniciado por Biding, transportou o centro de gravidade do conceito de bem jurídico do direito subjetivo para o “interesse juridicamente protegido”, com uma diferença: enquanto Biding ocupou-se, superficialmente, do bem jurídico, Von Liszt viu nele um conceito central da estrutura do delito. Como afirmou Mezger, existem numerosos delitos nos quais não é possível demonstrar a lesão a um direito subjetivo e, no entanto, se lesiona ou põe em perigo um bem jurídico.

(...)

Finalmente, o bem jurídico pode der definido como todo valor da vida humana protegido pelo direito."

Certamente, a finalidade do bem jurídico é servir de objeto de tutela da norma penal, tornando-se indispensável à conceituação do seu alcance e do seu sentido.

Tratando do tema, Maria Rodriguez de Assis Machado, utilizando Silva Sanchez, esclarece que (MACHADO, 2005, p. 104-105):

"Para afastar o perigo inerente à ideia de funcionalidade social, que poderia levar a proteção penal de valores morais, conferiu-se ao conceito de bem jurídico uma referência central ao indivíduo.

Fundamentado na concepção trazida por Hans Welzel de que o valor é uma conexão do objeto ao eu, o conceito de bem jurídico esteve, historicamente, lastreado na relação da pessoa com o bem. Segundo tal premissa, o objeto da violação reside não no bem em si, mas na sua relação com o sujeito – o que constitui o substrato antropocêntrico da teoria tradicional do bem jurídico, denominada monista pessoal. Assim, por exemplo, a vida, a integridade física, a dignidade, a honra ou o patrimônio enquanto bens jurídico-penais, expressam-se sempre na relação do sujeito com o objeto de valoração, o que acaba por determinar o valor próprio do bem. Desse modo, a mutabilidade operada na relação do bem com os indivíduos é que estabeleceu, em cada momento e em cada época, a cristalização de tipos legais de crimes bem diferenciados. Em suma, a ideia chave dessa teoria é a de que só ascendem à condição de bens jurídicos objetos que tenham um conteúdo de valor para o desenvolvimento do homem em sociedade. E, em contra partida, aquilo que não afeta as possibilidades de realização individual não é punível."

Contudo, essa conceituação de bem jurídico para fins penais, criada no direito penal clássico, protege apenas interesses individuais, não se mostrando forte a ponto de impedir, tendo em vista a tendência já inaugurada na atual sociedade, o crescimento da criminalidade moderna, bem como conferir a proteção aos bens jurídicos supraindividuais, cujos titulares são indeterminados, conforme as esclarecedoras palavras Sanchez (2011, p. 35):

"Se o paradigma social mudou, como têm tentado fazer ver as ciências sociais, e a sociedade vigente já não corresponde ao modelo de sociedade industrial, consequentemente, o direito penal terá que acompanhar essa mudança de paradigma. Se as características da sociedade atual como sociedade do risco obrigam a mudar as estratégias preventivas públicas ou estatais, modificando o perfil dos Estados modernos, o direito penal não se pode manter impassível diante essa dinâmica evolutiva, mas, ao revés, tem que processá-la internamente de acordo com seus fins e funções. Não se trata de decidir simplesmente se a pena deve resolver as novas necessidades que levanta a configuração da sociedade como sociedade do risco, mas de determinar o papel que deve cumprir a pena dentro do conjunto de medidas jurídicas (preventivas, sancionatórias etc.) que deve adotar o Estado para resolver os novos conflitos sociais das sociedades atuais."

Dessa forma, o direito penal clássico, cujas bases remontam ao período iluminista, cuja a base está sedimentada na proteção de bens jurídicos individuais, divisíveis e mesuráveis, não se mostra suficiente para dar proteção aos novos e importantíssimos bens jurídicos surgidos com a globalização e o nascimento de uma sociedade do mundial do risco, os quais não podem ser mensuráveis e muito menos divisíveis.

3.3 A SOCIEDADE DO RISCO.

A ideia de sociedade mundial de risco surge com o sociólogo alemão Ulrich Beck, na década de 1980, cujos ensinamentos estavam voltados à explicação das questões da modernidade reflexiva,[1] tendo em vista que as produções sociais de grande parte das riquezas vinham acompanhadas por iguais produções de riscos, as quais solicitaram a interferência penal em novas searas sociais, conforme ensina Beck (2010, p. 21):

"Assim, o novo risco da sociedade contemporânea põe ao direito penal uma necessidade de readaptação de seus institutos com vista à garantia da máxima efetividade na proteção dos novos bens jurídico-penais, exatamente por se lidar com as incertezas da sociedade de risco."

Esse risco é estabelecido por três características principiais, a saber: 1 – os ofendidos não são determinados por critérios espaciais, temporais ou pessoais; 2 – a impossibilidade de imputação conforme as regras vigentes sobre a causalidade, culpabilidade e responsabilidade; c – não são objeto de um seguro (BECK apud SANCHEZ, 2011, p. 27), que, segundo Sanchez (2011, p. 28-29):

"Em primeiro lugar, os macroperigos não podem limitar-se nem local, nem temporal, nem socialmente. Portanto, não dizem respeito somente aos produtores ou aos consumidores, mas também (no caso limite) a ‘terceiros não envolvidos’, incluindo os nascituros. Em segundo lugar, não podem ser atribuídos segundo as regras de causalidade, culpa e responsabilidade civil. E em terceiro lugar, não podem ser compensados (irreversibilidade, globalidade) segundo a regra ‘destruição a troco de dinheiro’ e, por conseguinte, representam, neste sentido, uma coerção irremediável para o sentido de segurança do cidadão alarmado."

Assim, os riscos gerados pelo desenvolvimento trouxeram à baila problemas antes desconhecidos, como as questões relacionadas às armas de destruição em massa, a degradação do meio ambiente, capazes de colocar em perigo todo o planeta, como também corrupções, fraudes em mercados financeiros dentre outros tantos.

E, segundo Bernardo Feijoo Sanchez (SANCHEZ, 2011),esses riscos possuem um enorme potencial lesivo que não é buscado e que obriga o desenvolvimento de novas formas de controle para evita-los. Se algo é evidente, é que o direito penal criado para estabilizar as sociedades industriais, que teve sua origem no século XIX, já não é válido quando esse modelo entra em crise.

Dissertando sobre o tema, Machado (2005, p. 31-32) afirma que:

"A teoria da sociedade mundial do risco parece nascer com a percepção social dos riscos tecnológicos globais e de seu processo de surgimento até então despercebido. É uma teoria política sobre as mudanças estruturais da sociedade industrial e, ao mesmo tempo, sobre o conhecimento da modernidade, que faz com que a sociedade se torne crítica de seu próprio desenvolvimento.

Em suma, a teoria da reflexividade engloba uma abordagem acerca do processo de confrontação entre os efeitos da modernização e as bases da sociedade industrial e, também, sobre como a sociedade industrial se vê como sociedade do risco e como ela se critica e se reforma.

A partir do momento em que os riscos tecnológicos são reconhecidos como riscos derivados de decisões humanas, os centros de tomada de decisões e as leis do progresso tecnológico e científico tornam-se questões políticas. Também ingressam na agenda política os temas ligados aos mecanismos de controle e distribuição dos riscos, particularmente, a questão da ineficiência dos mecanismos atuais e da busca de novas alternativas."

No mesmo sentido são os entendimentos de Silva (2004, p. 86-87):

"Tal ideia, por um lado, anuncia o fim de uma sociedade industrial em que os riscos para a existência individual e comunitária ou provinham de acontecimentos naturais (para tutela das quais o direito penal é absolutamente incompetente) ou derivavam de ações humanas próximas e definidas, para contenção das quais era suficiente a tutela penal dispensada aos clássicos bens jurídicos como a vida, o corpo, a saúde, a propriedade, o patrimônio, ou seja, dos bens jurídicos individuais. Por outro lado, anuncia o fim desta sociedade e a sua substituição por uma sociedade exasperadamente tecnológica, massificada e global, onde a ação humana revela-se suscetível de produzir riscos também eles globais."

Dessa maneira, a sociedade mundial do risco pode ser configurada como uma sociedade cujo medo originado pelas possibilidades de ocorrências de danos de grandes magnitudes que ela própria, por meio do fomento das atividades tecnológicas, econômicas e financeiras, cria, faz com que seja recorrido ao direito penal o seu controle e gerenciamento.

E por assim ser, põe às ciências penais a necessidade de reestruturação de seus institutos com vista à maximização da garantia da efetividade na proteção dos novos bens jurídico-penais, exatamente por lidar com as incertezas da sociedade de risco.

Sendo assim, o direito penal, para passar a controlar e gerenciar esses riscos oriundos da modernidade, tem de acompanhar essa mudança no paradigma social, uma vez que o modelo de direito penal iniciado a partir do movimento Iluminista se mostra incapaz de controlar esses avanços.

E é a partir desse momento que começa a surgir uma nova espécie de direito penal, cuja preocupação está voltada a proteção de bens jurídicos supraindividuais de forma anterior ao possível evento danoso.

3.4 O DIREITO PENAL MODERNO.

Todo ramo da ciência jurídica sofre mudança a partir de um influxo da sociedade ou de determinada parte dela, que vem a determinar os seus novos rumos, fatos esses que muitas vezes afrontam os postulados dessa mesma ciência.

E com o direito penal não é diferente. Com a chegada do processo de globalização, com o rápido avanço tecnológico e econômico, refletiu de forma significativa nesse ramo da ciência jurídica, causando uma mudança radical em seus enfoques e em seu conteúdo, e passou a ser chamado de direito penal moderno.

E essa mudança estrutural causada no direito penal aconteceu no momento em que a sociedade percebeu os riscos e a vulnerabilidade dos bens jurídicos coletivos, supraindividuais, universais ou difusos, passando a exigir, assim, pronta intervenção estatal por meio de normas repressoras na proteção desses bens jurídicos, uma vez que o direito penal de bases clássicas, cujos postulados não se compatibilizam com a proteção desses bens jurídicos, não poderia dar proteção a eles e conter ações geradoras de riscos, como bem sintetiza Bitencourt (2007, p. 15):

"Fala-se abundantemente em “criminalidade moderna”, que abrangeria a criminalidade ambiental internacional, criminalidade industrial, tráfico internacional de drogas, comércio internacional de detritos, onde se incluiria a delinquência econômica ou criminalidade de “colarinho branco”. Essa dita “criminalidade moderna” tem uma dinâmica estrutural e uma capacidade de produção de efeitos incomensuráveis, que o Direito Penal clássico não consegue atingir, diante da dificuldade de definir bens jurídicos, de individualizar culpabilidade e pena, de apurar a responsabilidade individual ou mesmo de admitir a presunção de inocência e o in dubio pro reo.

Como sentencia Hassemer: “Nessas áreas, espera-se a intervenção imediata do Direito Penal, na apenas depois que se tenha verificado a inadequação de outros meios de controle não-penais. O venerável princípio da subsidiariedade ou a ultimaratio do Direito Penal é simplesmente cancelado, para dar lugar a um Direito Penal visto como sola ratio ou prima ratio na solução social de conflitos: a resposta penal surge para as pessoas responsáveis por estas áreas cada vez mais frequentemente como a primeira, senão a única saída para controlar os problemas”. Para combater a “criminalidade moderna” o Direito Penal da culpabilidade seria absolutamente inoperante, e alguns dos seus princípios fundamentais estariam completamente superados. Nessa criminalidade moderna, é necessário orientar-se pelo perigo em vez do dano, pois quando o dano surgir será tarde demais para qualquer medida estatal. A sociedade precisa dispor de meios eficientes e rápidos que possam reagir ao simples perigo, ao risco, deve ser sensível a qualquer mudança que possa desenvolver-se e transformar-se em problemas transcendentais. Nesse campo, o direito tem de organizar-se preventivamente. É fundamental que se aja no nascedouro, preventivamente, e não representativamente. Nesse aspecto os bens coletivos são mais importantes que os bens individuais; é fundamental a prevenção, por que a repressão vem tarde demais."

No mesmo sentido são os ensinamentos de Sanchez (2011, p. 35):

"Se o paradigma social mudou, como têm tentado fazer ver as ciências sociais, e a sociedade vigente já não corresponde ao modelo de sociedade industrial, consequentemente, o direito penal terá que acompanhar essa mudança de paradigma. Se as características da sociedade atual como sociedade do risco obrigam a mudar as estratégias preventivas públicas ou estatais, modificando o perfil dos Estados modernos, o direito penal não se pode manter impassível diante essa dinâmica evolutiva, mas, ao revés, tem que processá-la internamente de acordo com seus fins e funções. Não se trata de decidir simplesmente se a pena deve resolver as novas necessidades que levanta a configuração da sociedade como sociedade do risco, mas de determinar o papel que deve cumprir a pena dentro do conjunto de medidas jurídicas (preventivas, sancionatórias etc.) que deve adotar o Estado para resolver os novos conflitos sociais das sociedades atuais."

Dessa forma, o direito penal moderno, calcado no ideal de proteção aos bens jurídicos supraindividuais, cuja proteção se dá de forma anterior ao dano, apresenta algumas características que o justificam e essas características serão o objeto do estudo a seguir.

3.4.1. Proteção de bens jurídicos supraindividuais.

Dar proteção aos bens jurídicos supraindividuais é uma das principais características do direito penal moderno que, como ele próprio, surgiu da insuficiência do direito penal clássico, de base individualista, de dar proteção a bens jurídicos coletivos, supraindividuais, relevantes para a existência humana.

Tratando do tema, Rodrigo Roma (2017, p. 160-161) preleciona que:

"O Direito Penal, nas últimas décadas do Século passado, sofreu profundas transformações em âmbitos que transcenderam o seu marco tradicional de aplicação. Para Seher, de um lado, aumentou-se a atenção do Direito Penal aos interesses ou valores coletivos e, de outro, a ameaça da pena foi estendida a condutas classificadas como de perigo abstrato.

A mencionada mudança de postulados por que passou o Direito Penal, de um bem jurídico individual calcado em lesões ou ameaças concretas de lesões para outro visando a produção de tipos de perigo abstrato visando à proteção de bens jurídicos de caráter coletivos ou transindividuais é característica central do Chamado Direito Penal moderno."

Para Luiz Regis Prado (PRADO, 2003), estes bens jurídicos de caráter supraindividuais são caracterizados por uma titularidade não pessoal, de massa ou universal (coletiva ou difusa); estão para além do indivíduo – afetam um grupo de pessoas ou toda a coletividade; supõem um raio ou âmbito de proteção que transcende, ultrapassa a esfera individual, sem deixar, todavia, de envolver a pessoa como membro indistinto de uma comunidade. Esses bens jurídicos são primordiais para o desenvolvimento das potencialidades do ser humano enquanto pessoa, bem como sua real integração (social, política, cultural e econômica) em uma coletividade organizada.

Para o referido autor (PRADO, 2003), em uma sociedade complexa e altamente conflituosa, um número crescente de atividades atinge, de um lado, os cidadãos, particulares, mas, de outro, também a coletividade, grupos de pessoas cujas relações apresentam peculiaridades e uma importância incomum. São bens universais, da sociedade como um todo, mas que têm uma referência pessoal indireta, mais ou menos acentuada.

Aliás, essa diretriz pode ser tida como ancorada no princípio da individualização da lesividade, segundo o qual devem ser elevados a categoria de bens jurídicos tão-somente os valores, cuja violação implica transgressão de um bem relacionado direta ou indiretamente ao indivíduo. Isso porque o homem não é concebido em função do Estado, mas sim, o Estado e as demais instituições é que dependem do indivíduo.

Essa assertiva é consequência do princípio ético kantiano de que “nenhuma pessoa pode ser tratada como meio para um fim que não o seu próprio”, que objetiva assegurar o máximo de liberdade com o mínimo de intervenção penal. Mas nem por isso deixam estes bens de se constituírem em entes dotados de autonomia e substantividade, que, exatamente por sua natureza transindividual, têm conteúdo material próprio.

Neste mesmo sentido sintetiza Figueiredo (2008, p. 141):

"Aqui, também, estamos diante de bens que existem em função do Homem e como condição para a sua existência livre e responsável. O mesmo é dizer que, também quanto aos bens jurídicos supraindividuais, a pessoa humana é o referente axiológico que permite uma limitação da intervenção punitiva, só que agora considerada como pessoa inserta e dependente da comunidade."

Dessa maneira, a proteção aos bens jurídicos supraindividuais por meio da norma penal visa garantir a cada cidadão as condições indispensáveis para conduzir vida com liberdade e responsabilidade, sem esquecer que o indivíduo não se considera apenas como um ser isolado, mas que se desenvolve no seio de uma comunidade.

Daí a necessidade de dar proteção penal aos bens jurídicos supraindividuais, indispensáveis à manutenção do homem em sociedade.

3.4.2. Antecipação da tutela penal a esferas anteriores ao dano.

Por essa característica, entende-se que o direito penal moderno, na sociedade do risco, deve atuar, em alguns momentos, de forma preventiva, evitando futuros danos. Em outros termos, ao invés de esperar a ocorrência da lesão ao bem juridicamente tutelado para somente então dar movimento ao aparato estatal repressor, busca-se, dessa forma, antecipar a persecução penal para um momento onde há apenas um risco de dano, não esperando a efetiva lesão ao bem juridicamente protegido.

Nesse diapasão, Oliveira (2008, p. 4) pondera que:

"Na tentativa de se moldar à novel sociedade de risco, a dogmática penal e a política criminal passam a admitir novos candidatos no círculo de bens jurídicos; a antecipar a fronteira entre o comportamento punível e não-punível; a reduzir as exigências de censurabilidade; a flexibilizar os critérios de imputação etc. Rejeita-se, deste modo, o modelo de direito penal de resultado, que atua repressivamente, após a conformação do dano, sendo mais conveniente a este modelo criminal, a antecipação da proteção penal a esferas anteriores ao dano e ao próprio perigo concreto, em certos casos."

Dessa maneira, a atuação do direito penal não irá se definir em virtude de determinada consequência, mas sim de uma forma ex ante, castigando determinada conduta presumidamente perigosa, prescindindo a configuração de um efetivo perigo ao bem jurídico.

E isso se justifica no fato de que o efetivo dano aos novos bens jurídicos, objeto de proteção do direito penal moderno, pode causar catástrofes em toda uma sociedade cuja a recuperação é de difícil, ou até mesmo impossível, recuperação.

Portanto, a antecipação da tutela penal idealiza a estratégia de segurança preventiva em que se orienta o direito penal moderno, como uma forma de precaução.

3.4.3. Tipos penais de perigo abstrato.

Esta característica do direito penal moderno está intimamente ligada à anterior, uma vez que é por meio da criação de tipos penais de perigo abstrato que se manifesta a antecipação da tutela penal antes da ocorrência do efetivo dano ao bem juridicamente protegido pela norma penal.

Os delitos de perigo abstrato incriminam uma série de determinadas condutas cuja periculosidade é tão evidente que é necessária a dispensa da prova da efetividade danosa no caso concreto. Quando uma das condutas selecionadas pelo legislador como um tipo de perigo abstrato é realizada, causa-se uma lesão de grandes proporções na sociedade que, como afirmado no item anterior, é de difícil, ou até mesmo impossível recuperação.

Portanto, os tipos penais de perigo abstrato não buscam responder a determinado dano ou a determinado prejuízo causado por uma conduta, mas sim evitá-los, barrá-los, prevenindo e protegendo o bem juridicamente tutelado das lesões antes mesmo de sua exposição ao perigo concreto, efetivo de dano, conforme preleciona Martins Neto (2013, p. 51):

"De outra banda, os crimes de perigo abstrato ou presumido, em uma clássica definição, caracterizam-se pela presunção absoluta de perigo par ao bem jurídico tutelado. Nesse caso, o perigo não corresponde a elemento do tipo penal, mas tão somente a sua motivação. Vale dizer, a partir de regras de experiência, o legislador identifica condutas as quais, em seu entendimento, o perigo é inerente, tornando-as puníveis. Como exemplo, temos o crime contra a ordem econômica delineado no inciso I do art. 1°, da Lei 8.176/1991, o qual se refere à conduta de “adquirir, distribuir e revender derivados de petróleo, gás natural e suas frações recuperáveis, álcool etílico hidratado carburante e demais combustíveis líquidos carburantes, em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei”. A partir da análise desta norma incriminadora, pode-se verificar que o juízo de desvalor reporta-se unicamente à ação, não abarcando o resultado."

Conclui-se, portanto, que o legislador, ao fazer uso desta modalidade de crime, quer dar ao direito penal moderno a possibilidade de proporcionar, ou melhor dizendo, dar a sensação de segurança ao corpo social em relação a proteção aos bens jurídicos coletivos.

3.4.4. Responsabilização penal da pessoa jurídica.

Outra característica primordial do direito penal moderno é a possibilidade de responsabilização penal de pessoa jurídicas, uma vez que este ente se torna, na sociedade globalizada, um organismo intermediador entre os indivíduos e a coletividade, expressando-secomo um todo único maior, composto por uma pluralidade de sujeitos, que assume, nessacondição, uma infinidade de obrigações frente a muitos atores sociais (SARCEDO, 2015).

Além disso, essa possibilidade de imputação de responsabilidades penais a esses entes é justificada nos riscos que o desenvolvimento de suas atividades, em desconformidade com a legislação, pode acarretar à sociedade. Mas não é só, também visa incentivar as pessoas jurídicas a adoção de mecanismos que visem adequar as suas atividades aos padrões legais.

Tratando do tema, Sarcedo (2015, p. 79) esclarece que:

"Dentro dessa lógica, a ideia embutida na responsabilização criminal das pessoas jurídicas, reforçada pela possibilidade de punição pessoal de seus dirigentes, é reforçar no ambiente corporativo, pela intimidação exercida pela pena, a mentalidade de obediência às normas jurídicas, num efeito de prevenção geral. A possibilidade de condenação criminal da empresa deixa claro que a norma jurídica violada dirige-se a toda coletividade da organização e merece uma reprovação social. Tem, também, essa apenação uma função preventiva especial, na medida em que visa a intimidar a empresa, considerada em sua coletividade, para que não reincida no delito. Em vista disso, a cominação da pena em face de pessoas jurídicas tem, consequentemente, o efeito de persuadir as empresas a monitorar suas atividades internas, para manter sua conformidade com o sistema jurídico."

Dessa maneira, ainda que a ação delituosa praticada pela pessoa jurídicanecessite de uma ação humana inicial, o fato é que a pessoa jurídica se compõe de umagregado de ações humanas, cujo montante, muitas vezes, é diferente de cada uma das açõesnaturais isoladamente consideradas. Não se trata de mera soma, mas de relação sinergéticade vários comportamentos humanos que redundarão num resultado diferente do que a somados resultados individualmente considerados (SARCEDO, 2015).

Busca-se, com isso, além de dar proteção efetiva aos bens jurídicos supraindividuais, incentivar pessoas jurídicas a adotarem medidas internas de controle, combate e prevenção às práticas ilícitas e desleais, possibilitando a criação de um ambiente de cooperaçãopelo bem da pessoa jurídica, na medida em que sua culpabilidade será aferida econsiderada em cada caso concreto.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Hauzeny Santana Farias

Advogado, membro da Comissão de Defesa das Prerrogativas da OAB Seccional Piauí.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIAS, Hauzeny Santana. Criminal compliance: a instrumentalização da função preventiva do direito penal na sociedade do risco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5768, 17 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73340. Acesso em: 22 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos