4 CRIMINAL COMPLIANCE, O DIREITO PENAL COMO INSTRUMENTO DE PREVENÇÃO DA CRIMINALIDADE NA SOCIEDADE DO RISCO.
O direto penal, devido à complexidade das relações sociais ocorridas a partir do processo de globalização, da evolução tecnológica e econômica, ocasionou, ao longo de anos, um aumento de novas tipificações de condutas, especialmente no âmbito empresarial, cujas práticas ilícitas ocasionavam em danos de grandes magnitudes na sociedade.
Apesar disso, esses avanços possibilitaram o surgimento da noção dos riscos futuros previstos no exercício de determinadas atividades, ou, segundo Teixeira (2018) técnicas de mensuração e gerenciamento de ameaças, possibilitando, assim, que eles sejam evitados ou menos mitigados.
Diante desse cenário, fez-se necessário o surgimento de um direito penal moderno, cujo foco não recaísse na criminalidade individual, base do direito penal clássico, mas sim com o foco voltado para a criminalidade coletiva, com a tutela de bens jurídicos supraindividuais e intangíveis, conforme esclarece Gloeckner (2012, p. 4):
"No que diz respeito ao direito penal, a complexidade das relações sociais e os processos de globalização permitiram o surgimento de práticas delitivas transnacionais. Este novo cenário sobre o qual se passou a exigir do direito penal econômico uma nova roupagem de suas categorias como tipo objetivo, dolo, causalidade, concurso de pessoas, etc., também exigiu que fossem objeto de estudo determinados deveres de informação e de atuação sobre certos agentes, quando se tratar de relações de mercado e práticas de transação econômica."
Além disso, exigiu-se a mudança no paradigma penal de uma perspectiva predominantemente ex post, onde era necessária a efetivação de um evento danoso para, só então, a norma penal dar proteção ao bem jurídico, para uma proteção ex ante, ou seja, uma espécie de proteção jurídico-penal antes mesmo da ocorrência do evento danoso.
Isso porque, diferente da criminalidade clássica, as modernas práticas delitivas possuem um poder danoso inimaginável, de impossível recuperação e que afeta populações inteiras.
Fruto dessa necessidade surge o instituto do Criminal Compliance, um programa voltado ao estabelecimento de um padrão de comportamento por parte de pessoas jurídicas, especialmente aquelas que se relacionam com o Poder Público, a fim de que estas se tornem, também, responsáveis por fiscalizar internamente práticas indevidas relacionadas às suas atividades (TEIXEIRA, 2018) conferindo, assim, proteção a bens jurídicos anteriores ao evento danoso.
Com isso, acontece uma revolução paradigmática no plano do direito penal, na medida em que as proteções de bens jurídicos passam de uma perspectiva ex post, repressiva, voltada a uma resposta posterior à prática do delito, para um ponto de vista ex ante, pautada na antecipação e minimização de potenciais eventos delitivos decorrentes das atividades corporativas.
De forma bem didática, em trabalho sobre o tema, esclarece Saavedra (2011, p. 11):
"Portanto, a primeira característica atribuída ao termo criminal compliance é prevenção. Diferentemente do Direito Penal tradicional, que está habituado a trabalhar na análise ex post de crimes, ou seja, na análise de condutas comissivas ou omissivas que já violaram, de forma direta ou indireta, algum bem jurídico digno de tutela penal, o criminal compliance trata o mesmo fenômeno a partir de uma análise ex ante, ou seja, de uma análise dos controles internos e das medidas que podem prevenir a persecução penal da empresa ou instituição financeira. Exatamente por isso o objetivo do criminal compliance tem sido descrito como a “diminuição ou prevenção de riscos compliance."
Nesse contexto, o Criminal Compliance apresenta-se como um instrumento que favorece significativamente a repressão de condutas contrárias às leis e aos regimentos internos de instituições, restando evidente que a função preventiva é a característica central das suas políticas.
Contudo, é preciso destacar que essa prevenção se distingue daquela que se enquadra como um dos fundamentos da sanção penal, característica do direto penal clássico, pois, quando se trata de Criminal Compliance, objetiva-se a prevenção anterior ao crime, de modo a evitar a sua ocorrência e, por conseguinte, que as penas sejam aplicadas.
E por assim ser, segundo esclarece Sanchez (2011, p. 13):
"O direito penal deixa de ser um instrumento de reação frente a lesões graves a bens jurídicos individuais para transformar-se em instrumento de uma política de segurança. (...) o moderno direito penal abandona o invólucro liberal em que ainda se tratava de assegurar um ‘mínimo ético’ e se torna um instrumento de controle dos grandes problemas sociais ou estatais."
Desse modo, o Criminal Compliance se apresenta como um efetivo instrumento de prevenção da prática das novas formas de criminalidade na sociedade do risco, pois a sua atuação se concentra no atuar em conformidade com os regramentos legais e institucionais, prevenindo ou ao menos reduzindo os riscos da prática de crimes existentes nas atividades empresariais.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.
De tudo o que foi exposto, depreende-se que o direito penal, fruto da necessidade humana do convívio em sociedade, cujo fundamento é a proteção aos bens jurídicos essenciais a esse convívio em sociedade, a partir da década de 1970, começou a passar por uma reformulação de suas bases e de seus objetos.
E isso é justificado a partir do processo de globalização, bem como do avanço tecnológico e econômico que se iniciaram, também, naquela Década, onde fez nascer uma sociedade baseada nos riscos, onde os ofendidos são incapazes de serem determinados por critérios espaciais, temporais ou muito menos pessoais, impossibilitando, assim, a imputação das responsabilidades penais conforme as regras sobre a causalidade, culpabilidade e responsabilidade, vigentes no direito penal clássico.
Ou seja, esses avanços vieram acompanhados de grandes riscos capazes de colocar em perigo toda uma sociedade, uma vez que diploma penal clássico, individualista, cuja proteção necessitaria de um efetivo evento danoso e a aplicação de uma sanção, precedida de um demorado processo envolvendo o contraditório judicial, se mostraria incapaz de contê-los.
E é nesse momento que surge e figura do direito penal moderno e seus programas de prevenções, calcado na proteção, de forma anterior ao dano, de bens jurídicos supraindividuais, indispensáveis à manutenção da vida em sociedade.
Um desses programas é o instituto do Criminal Compliance, cujo objetivo é estabelecer o padrão de cumprimento legal e interno no desenvolvimento das atividades das pessoas jurídicas que atuam em determinadas atividades que possam causar danos significativos à sociedade, evitando-os ou, ao menos, reduzindo os riscos de suas ocorrências.
Portanto, o Criminal Compliance atua na chamada prevenção ex ante, a qual não necessita da ocorrência de uma lesão ou perigo de lesão a determinado bem jurídico para só então proteger o bem juridicamente tutelado pela norma penal.
E por assim ser, o instituto do Criminal Compliance se mostra um efetivo instrumento na prevenção da criminalidade moderna, uma vez que a sua atuação se dá em momento anterior ao evento danoso, cuja finalidade é evita-lo ou reduzir os riscos de sua ocorrência.
Portanto, os deveres do Criminal Compliance são mecanismos que cumprem, de forma efetiva, a função preventiva do direito penal no que diz respeito à proteção de bens jurídicos de cunho supraindividuais.
REFERÊNCIAS
BECK, U lrich. Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010. P. 21-103.
BIANCHINI, Alice; MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Direito penal. Introdução e princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. Coleção Ciência Criminais, v.1.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Lições de direito penal – Parte geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, parte geral. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
BRASIL. Lei n 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências.Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 02 ago. 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12846.htm. Acesso em 05 out. 2018.
CARDOSO, Débora Motta.Criminal compliance na perspectiva da lei de lavagem de dinheiro. São Paulo: LiberARS, 2015.
COELHO NETO, José. A criminalidade dos poderes e a proteção penal dos bens jurídicos supraindividuais. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 93, out 2011.Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10560. Acesso em: 29 out. 2018.
COLARES, Wilde Cunha. Ética e compliance nas empresas de outsourcing 2014. 199 f. Monografia (Pós-graduação Lato Sensu em Direito – LLM) – Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, São Paulo, 2014. Disponível em: http://dspace.insper.edu.br/xmlui/bitstream/handle/11224/1238/Wilde%20Cunha%20Colares_Trabalho.pdf?sequence=1. Acesso em 06 nov. 2018.
DUARTE, Maria Carolina de Almeida. Globalização e a nova Criminalidade. Revista Territórios e Fronteiras V.2 N.1 – Jan/Jun. 2009. Disponível em: http://www.ppghis.com/territorios&fronteiras/index.php/v03n02/article/view/32. Acesso em: 29 out. 2018.
FEBRABAN. Função do Compliance. ABBI 2009. Disponível em: http://www.abbi.com.br/download/funcaodecompliance_09.pdf. Acesso em: 06 nov. 2018.
FIGUEIREDO, Guilherme Gouvêa de. Crimes Ambientais à Luz do Conceito de Bem Jurídico-Penal: (des)criminalização, redação típica e (in)ofensividade. São Paulo: IBCCRIM, 2008. 274p. ISBN 978-85-99216-10-1 (Monografias; 47).
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de RaulFiker. São Paulo: UNESP, 1991.
GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Criminal Compliance, lavagem de dinheiro e o processo de relativização do nemotenetur se detegere: cultura do controle e política criminal atuarial. In: XXI Congresso Nacional do CONPEDI. 3. 2012, Niterói. Anais eletrônico... Rio de Janeiro: UFF/Niterói, 2012. Disponível em:http://www.publicadireito.com.br/publicacao/livro.php?gt=15. Acesso em: 29 out. 2018.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal/Rogério Greco. -16. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014.
GUARANI. F. A. et. al. Direito penal econômico: administrativização do direito penal, criminal compliance e outros temas contemporâneos. Londrina, PR: Thoth, 2017.
HIJAZ, Tailini Fátima. A importância do compliance para a efetivação de medidas anticorrupção no contexto da sociedade de risco e do Direito Penal Econômico. In Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 15 – n. 48, p. 155-190 – jul./dez. 2016. Disponível em: http://escola.mpu.mp.br/publicacoes/boletim-cientifico/edicoes-do-boletim/boletim-cientifico-n-48-julho-dezembro-2016/a-importancia-do-compliance-para-a-efetivacao-de-medidas-anticorrupcao-no-contexto-da-sociedade-de-risco-e-do-direito-penal-economico. Acesso em 09 de nov. 2018.
LIMA, Vinicius de Melo. Compliance e Prevenção ao Crime de Lavagem de Dinheiro. Revista do Ministério Público do RS. Porto Alegre. n. 82 Jan/Abr. 2017 p. 119-145. Disponívelem:http://www.amprs.com.br/public/arquivos/revista_artigo/arquivo_1527273276.pdf. Acesso em 15 de jul. 2018.
LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica / Aury Lopes Jr. – 2. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2016.
MANZI, Vanessa Alessi. Compliance no Brasil: consolidação e perspectivas. São Paulo: Saint Paul, 2008.
MARTÍN, A. N. Problemas Fundamentalesdel Compliance y elDerechoPenal. In: KUHLEN, L.; MONTIEL, J. P.; GIMENO, I. O. U. (Org.).Compliance y teoria delDerecho penal. Cap. I, p. 21-50. Madrid: Marcial Pons, 2013.
MARTINS, José Alberto Monteiro e KNOERR, Fernando Gustavo. Diálogos (Im) pertinentes –Desenvolvimento Empresarial – O Compliance no estado de direito e sua influência na Lei Anticorrupção.Editora: Instituto Memória, Curitiba, 2015.
MARTINS NETO, Alfredo Pinheiro.Direito penal econômico como direito penal de perigo: a tutela da livre concorrência na sociedade de risco contemporânea / Alfredo Pinheiro Martins Neto. – Recife: O Autor, 2013.
MENDES, Francisco Schertel. Compliance: concorrência e combate à corrupção / Francisco Schertel Mendes, Vinicius Marques de Carvalho. – São Paulo: Trevisan Editora, 2017.
MIRABETE, JulioFabrinni. Manual de direito penal, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120 do CP/ JulioFabrinni Mirabete, Renato N. Fabrinni, - 30. ed. rev. atual. até 31 de dezembro de 2013 – São Paulo: Atlas, 2013.
OLIVEIRA, Alice Q. A expansão penal e o direito de intervenção. Anais do XVII Congresso Nacional do CONPENDI. Brasília-DF, p. 5.042 – 5.057, 2008.
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 3. ed. rev. atual. eampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.
QUEIROZ, Paulo de Sousa. Direito Penal – Introdução crítica. Paulo de Sousa Queiroz. São Paulo: Saraiva, 2001.
RIZZO, Maria Balbina Martins. Prevenção à lavagem de dinheiro do mercado financeiro. Maria Balbina Maria de Rizzo. – São Paulo: Trevisan Editora, 2013.
ROCHA, Graciliano. Odebrecht tinha departamento de propina no Brasil, diz Lava Jato. Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, 13 novembro 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/03/1752707-odebrecht-tinha-departamento-de-propina-no-pais-diz-lava-jato.shtml. Acesso em 13 nov. 2018.
ROMA, Rodrigo. Sociedade de riscos e bem jurídico-penais transindividuais: argumentos favoráveis à legitimação no contexto social complexo / Rodrigo Roma. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Gramma, 2017.
ROTSCH, T. Criminal compliance. Disponível em: http://www.indret.com/pdf/876a.pdf. Acesso em 08 de nov. 2018.
SAAVEDRA, Giovani. Reflexões Iniciais Sobre Criminal Compliance. In Boletim IBCCRIM. São Paulo: IBCCRIM, a. 18, n. 18. Jan 2011. p. 11-12. Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/site/boletim/pdfs/Boletim218.pdf. Acesso em 15 de jul. 2018.
SANCHEZ, Bernardo Feijoo. Sobre a administrativização do direito penal na sociedade do risco. Notas sobre a política criminal no início do Século XXI. Revista Liberdades – n. 07, mai-ago. 2011. Disponível em: http://www.revistaliberdades.org.br/_upload/pdf/8/artigo1.pdf. Acesso em 14 de nov. 2018.
SARCEDO, Leandro. Compliance e responsabilidade penal da pessoa jurídica: construção de um novo modelo de imputação, baseado na culpabilidade corporativa. 2015. Tese (Doutorado em Direito Penal) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2136/tde-07122015-163555/pt-br.php. Acesso em 16 de nov. 2018.
SILVA FRANCO, Alberto. Globalização e criminalidade dos poderosos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 8, n. 31, p. 102-136, jul/set. 2000. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/rbccrim/15-/?ano_filtro=2002. Acesso em: 13 jul. 2018.
SILVA, Pablo Rodrigo Alfen da. Leis penais em branco e o direito penal do risco: Aspectos críticos e fundamentais. Rio de Janeiro: editora Lumen Juris, 2004.SILVA FRANCO, Alberto. Crimes hediondos. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
SILVEIRA, R. M. J.; SAAD-DINIZ, E. Compliance, Direito Penal e lei anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015.
STRECK, Lenio Luiz. A dupla face do Princípio da Proporcionalidade e o cabimento de Mandado de Segurança em matéria criminal: superando o ideário liberalindividualista-clássico. Revista da AJURIS – v, 31 – n. 97. Março/2005.
TEIXEIRA,André Luiz Rapozo de Souza. Criminal Compliance, Política Criminal Atuarial e Gerencialismo Penal: Da Sociedade Disciplinar à Sociedade Do Controle. Revista de Criminologias e Políticas Criminais, Salvador, v. 4, n. 1, p. 98 – 113 Jan/Jun. 2018. Disponível em: http://indexlaw.org/index.php/revistacpc/article/view/4318. Acesso em: 26 de out. 2018.
Nota
[1]A modernidade reflexiva significa que fatores que não podem ser controlados tocam a nossa vida em inúmeros aspectos e alcançam dimensões que atingem a coletividade como um todo, e, portanto, é preciso enxergar com lucidez esse poder que a ciência e a classe dominante detêm de estabelecer os riscos e prejuízos que a população sofre.