4. LEGISLAÇÃO PERTINENTE
O Decreto Lei nº 4.146, de 4 de março de 1942, prevê a proteção dos artefatos fósseis, estabelecendo em seu artigo 1º:
“Os depósitos fossilíferos são propriedades da Nação, e, como tais, a extração de espécimes fósseis depende de autorização prévia e fiscalização do Departamento Nacional de Produção Mineral do Ministério da Agricultura”.
A Carta Magna Pátria, promulgada em 1988, recepcionou esse decreto-lei e preocupa-se com a proteção de nossos fósseis, porém sem enfrentamento robusto e específico da questão da evasão deles ou de sua repatriação, se necessário.
O artigo 216 de CF/88 em seu inciso V decreta os sítios arqueológicos e paleontológicos como patrimônios culturais do Brasil.
Apesar da previsão constitucional a esse rico e inestimável material pré-histórico presente em nossos solos e subsolos, a efetiva coibição ao contrabando de nossos fósseis esbarra na dificuldade de fiscalização e na frouxa punição aos contrabandistas.
A Lei 8.176, de 8 de fevereiro de 1991, que trata dos crimes contra a ordem econômica, declara em seu artigo 2º, in verbis:
“Constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpação, produzir bens ou explorar matérias-primas pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo”.
A pena por inobservância do estabelecido nesse artigo é de detenção de um a cinco anos e multa, ou seja, branda e passível de ser convertida em penas restritas de direito, conforme previsto em nosso Código Penal, em seu artigo 44.
O Código de Mineração-Decreto-Lei nº227, de 28 de fevereiro de 1967-discipilna, em seu artigo 10, incisos II e III, que os fósseis e as substâncias fósseis regem-se por Leis Especiais, leis essas inexistentes desde então.
A Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 – Lei de Crime Ambientais – em seu artigo 55, prevê pena de detenção de seis meses a um ano, e multa, a quem “Executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida”
Vê-se, assim, uma previsão de penalidade ainda menor que a prevista na Lei da Ordem Econômica, caracterizando flagrante descaso à questão, ao nosso ver. Entendemos, todavia, que, apesar de não definido explicitamente, o tráfico internacional de fósseis pátrios encontra capitulação no artigo 334 - A do Código Penal, que define contrabando, como: “Importar ou exportar mercadoria proibida”. Em complemento a essa explicação, o parágrafo 1º do citado artigo, diz que incorre, na mesma pena quem: “Pratica fato assimilado em lei especial, a ação de contrabando (inciso I), quem importa ou exporta clandestinamente mercadoria que dependa de registro, análise ou autorização de órgão público competente (inciso II), vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira (inciso IV), adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira(inciso V)”. (Incluídos pela Lei 13.008/14, de 26 de Junho de 2014).
A pena prevista, apesar de branda (reclusão de 2 a 5 anos), pode ser majorada em dobro, caso o crime seja praticado em transporte aéreo, marítimo, ou fluvial (em consonância com o parágrafo 3º do artigo 334 – A)
Alguns Projetos de Lei transitaram no Congresso Nacional com vistas à criação legislativa de normas específicas de proteção aos fósseis; porém, foram, todos arquivados.
Um deles foi o de nº 246, de 1996, que tramitou no Serrado Federal e outro foi o de nº 2.378, de 2003, que passou em branco pela Câmara dos Deputados.
A IMPRESCINDIBILIDADE DA REPATRIAÇÃO
A repatriação das peças traficadas é etapa que não pode ser facultativa no processo de combate a apreensão inidônea delas. Ao contrário, deve ser uma prerrogativa sempre perseguida à exaustão, pois, se assim não for, não será frustrado o objetivo ilícito do infrator.
De pouca serventia será a punição pecuniária ao criminoso ou mesmo sua prisão ou enquadramento judicial se ele continua usufruindo do produto de seu furto.
Além disso, a volta dos fósseis a sua origem desencorajará possíveis interessados futuros de adquiri-los, seja para quais fins sejam.
A ausência de lei federal especifica sobre esse instituto-da repatriação fortalece a certeza da impunidade entre os praticantes desse abuso contra nosso patrimônio fossilífero.
Buscando cobrir essa lacuna, alguns estados brasileiros criaram legislações estaduais de repatriação, o que é legítimo, visto ser de competência concorrente entre os entes federativos (União, Estado, Municípios e Distrito Federal).
O principal empecilho à repatriação dos fósseis ao solo brasileiro decorre da legalidade de aquisição e manutenção de material fossilizado em vários países europeus e norte-americanos, inclusive compondo coleções particulares (SIMÕES; CALDWELL)6.E essa prática não é recente. Data de séculos, especialmente no caso europeu, a retirada de fósseis e/ou de outros artigos científicos de interesse popular, formaram a base inicial para se formar as (hoje imensas) coleções europeias que levaram exemplares da flora e da fauna de países do continente americano e africano entre os séculos XVII e XIX à Europa (IMPEY; MacGREGOR, 1985).
Simões e Caldwell alertam porém, para o fato de que, dentro do mundo acadêmico cresce cada vez mais a conscientização e a preocupação com as questões éticas que envolvem a publicação de materiais de proveniência ilegal.
Consequentemente, grande parcela de editores e revisores de periódicos científicos tem exigido comprovação de que materiais fósseis do Brasil e localizados no exterior tenham sido adquirido por vias legais.
Logo, torna-se imperativo que, se o objetivo final for respeitar as regras e as leis vigentes em cada país, inclusive no Brasil, a questão ética deve girar em torno de tentativas de repatriamento do material ao seu país de origem (SIMÕES e CALDWELL).
Os autores supracitados explicam que, caso sejam devolvidos ao país, o material deve ser objeto de estudos e de publicações científicas em regime de colaboração entre autores/pesquisadores nacionais e estrangeiros, sendo possível, inclusive, a fabricação de réplicas desses fósseis ou o empréstimo temporário do próprio material original a instruções ao redor do mundo.
O GEOPARK ARARIPE: FUNÇÃO CIENTÍFICA, EDUCACIONAL E TURÍSTICA.
A apreensão do material fóssil ainda em seu território de origem ou sua repatriação findariam infrutíferas se não houvesse onde realocá-lo, de forma a possibilitar uma real utilidade deste.
A criação do GeoPark Araripe em 2006, teve como principal objetivo, a preservação das riquezas naturais da Chapada do Araripe.
Esse parque, localizado em área que abrange seis municípios do Ceará(Barbalha, Crato, Juazeiro do Norte, Missão Velha, Nova Olinda e Santana do Cariri), totalizando 3.796 km², é o primeiro da categoria nas Américas, sendo reconhecido pela UNESCO, com gestão do Governo do Estado do Ceará e da Universidade Regional do Cariri (URCA). Considerado um dos mais completos do mundo, preserva distintas áreas que vão do estudo geológico (há rochas na Chapada que datam de 600 milhões de anos), paleontológico (seus fósseis de dinossauros e pterossauros, em excelente estado de conservação, estão entre os mais estudados do mundo), histórico (a região conta a história da ocupação do interior do país), ambiental (a caatinga é um bioma exclusivamente brasileiro, e na Chapada, se mistura à mata atlântica, dando origem a espécies únicas), religiosa (as romarias ao Padre Cícero movimentam dezenas de milhares de pessoas ao ano) e cultural (o Cariri possui manifestaçõesde cultura popular, artesanato e produção cultural contemporânea riquíssimos. O Crato foi a primeira cidade a ter uma escola municipal de reisado)7.
A decisão para criação do parque foi tomada em Belfast, Reino Unido, no encontro técnico dos coordenadores da rede mundial de geoparques.
Para aprovar um geoparque, a UNESCO estabelece alguns requisitos de avaliação, entre eles:
1) o valor científico das rochas e dos fósseis;
2) a contribuição para o desenvolvimento socioeconômico de região escolhida;
3) a possibilidade de contribuir para a formação de alunos nas geociências.
A aceitação desse órgão internacional corrobora a importância desse empreendimento para o incremento científico a nível mundial, além de fortalecer a cultura local e gerar lucros concretos e incrementar a educação ambiental.
Como bem lembra Thomé (2017), a criação de uma área ambientalmente protegida é relevante instrumento de preservação da diversidade e da integridade do patrimônio genético do País, que é definido pela lei 13.123/2015 como:
“Informação de origem genética de espécies vegetais, microbianas ou espécies de outra natureza, incluindo substâncias oriundas do metabolismo destes seres vivos”.
Conforme Silva (2003), compete ao Poder Público instituir espaços territoriais protegidos em função de seus atributos ambientais relevantes, devendo assegurar sua relativa imodificabilidade e sua utilização sustentável.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a análise acerca da relevância jurídica dos fósseis na lógica de patrimônio cultural percebe-se que a legislação brasileira deve fortalecer suas normas a fim de preservar esse importante patrimônio ora relatado. A constituição Federal de 1988 apresenta inúmeros dispositivos ressaltando os fósseis como imprescindíveis para a manutenção da identidade cultural do Brasil, devendo ser protegidos pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios concorrentemente.
A preservação dos fósseis encaixa-se na lógica de desenvolvimento sustentável consagrada no caput do art. 225 da Constituição Federal, pois o pleno desenvolvimento socioeconômico volta-se para a preocupação das presentes e futuras gerações. É inconcebível compreender a negligência do Poder Público em combater prática de pirataria internacional, violando o ordenamento jurídico no aspecto da soberania nacional.
Os fósseis são declarados como propriedade da nação conforme previsão do Decreto lei 4146/42, devendo qualquer forma de exploração ilegal ser combatido pelo poder público. Contudo, a realidade mostra que há descaso do Estado em criar mecanismo a fim de punir os traficantes dos fósseis.
Apesar de alguns fósseis não integrarem o patrimônio cultural brasileiro, é importante que haja investimento científico para catalogá-lo, contribuindo para criar esse acervo patrimonial e ampliar o debate em torno de legislações específicas para proteger os fósseis. Outro detalhe importante é omissão das esferas administrativas em fortalecer o intercâmbio de comunicação para prevenir o tráfico internacional de fósseis de valor cultural.
O Brasil, em relação à proteção de seu patrimônio, está na contramão de países como Espanha e Portugal, em seus ordenamentos jurídicos frente a esses delitos.
A carência de regência legislativa especial fortalece o crime organizado, ciente de que passará incólume pelas malhas punitivas.
O fortalecimento fiscalizatório em nossas fronteiras, bem como em portos, aeroportos e rodoviárias deve ter em vistas, também, a contenção do tráfico de fósseis, não menos importante que o de espécies nativas de nossa fauna e flora.
A busca de cooperação internacional na inibição do transporte ilegal de nossos minerais e fósseis daqui para além de nossa terra deve ser constante e incansável.
Enfim, a sensibilização de nosso Poder Judiciário à causa, buscando meios jurídicos válidos e consistentes de aplicação de penas punitivas severas e de resgate do material furtado através da repatriação, tornará a atividade desinteressante e economicamente inviável, o qual deve ser o objetivo perseguido.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABAIDE, Jalusa Prestes. Fósseis: Riqueza do Subsolo ou Bem Ambiental? . Curitiba: Juruá, 2010.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 12 de out.2017. ENCICLOPÉDIA BARSA.São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações, 2000. v. 6.
IMPEY, O, R; MacGregor, O.R. The origins of museums: The cabinet of curiosities in sexteenth as seventeenth-century Europe. (Oxford University Press, Oxford, 1985).
KELLNER, A.W.A. Membro Romualdo da Formação Santana, Chapada do Araripe, CE – Um dos mais importantes depósitos fossilíferos do Cretáceo Brasileiro. In Schobbenhaus, C.; Campos, D. A.; Queiroz, E. T.; Winge, M.; Berbert – Born, M. L. C. (Edits) Sítios Geológicos e Paleontológicos do Brasil. 1. ed. Brasília: DNPM/CPRM – Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleontológicos (SIGEP), 2002. V. 01: 121-130.
MAISEY J. G. (ed.) 1991. Santana fossils: an illustrated atlas. Neptune: T. F. H.
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003.
THOMÉ, Romeu. Manual do Direito Ambiental. Salvador: JusPodium, 2017. UZUNIAN, Armênio; BIRNER, Ernesto. Biologia: Volume único. São Paulo: Harbra, 2001
Notas
2 Antônio Álamo Feitosa Santana: Paleontólogo, natural do Crato, no Cariri Cearense. É professor da URCA, do Departamento de Ciências Biológicas e um dos idealizadores do Geopark Araripe.
3 CURIOSAMENTE – Diário De Pernambuco: Fosseis do Sertão do Araripe e Cariri encontrados em Prédios do Recife. Disponível em: <http://curiosamente.diariodepernambuco.com.br/project/fosseis-do-sertao-do-araripe-e-cariri-encontrados-em-predios-do-recife/>. Acesso em 21 de setembro de 2017.
4 COLECIONADORES DE OSSOS: Comercio de Fosseis. Disponível em: http://scienceblogs.com.br/colecionadores/category/comercio-de-fosseis/. Acesso em 22 de setembro de 2017.
5 Tesouros do Araripe: Os Fósseis e a Comunidade. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=hFqaSgCnUEg&list=UUjcEWCkuafL02yvkujCwL4w&index=57>. Acesso em 10 de outubro de 2017.
6 SIMÕES, Tiago R.; CALDWELL, Michael W. Fosseis e legislação: Breve comparação entre Brasil e Canadá. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252015000400016&script=sci_arttext>, acesso em: 10 de outubro de 2017.
7 Viagem na Chapada: Roteiro pelo território do Geopark Araripe-Ceará. Disponível em: <https://viajenachapada.wordpress.com/geopark-araripe/ Acesso em: 28 de outubro de 2017>.