O dever do Estado em promover a ocupação urbana e a garantia à moradia no Estatuto da Cidade

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A dignidade da pessoa humana associada ao direito à moradia são pilares necessários para a garantia do mínimo existencial, e condicionante para obtenção de uma vida digna

RESUMO

A dignidade da pessoa humana associada ao direito à moradia são pilares necessários para a garantia do mínimo existencial, e condicionante para obtenção de uma vida digna. O Estado é o responsável por essa garantia, partindo do fundamento axiológico dos direitos da personalidade, impondo o encargo de atuar no sentido de garantir os direitos inerentes à personalidade e suas adequações à função social nos espaços urbanos. Para a implementação de políticas públicas capazes de democratizar o acesso a moradia, a Lei 10.257/2001, conhecida como estatuto da cidade, ao dotar a estrutura estatal de instrumentos de efetividade e coercitividade, apresenta-se como marco normativo apto a indicar direcionamentos capazes de dotar a administração pública competente de fundamento para o planejamento urbano adequado e socialmente justo.

Palavras Chaves: Direito à moradia. Dignidade da pessoa humana. Função social. Estatuto da Cidade.

ABSTRACT

The dignity of the human person associated with the right to housing are necessary pillars for the guarantee of the existential minimum, and condition for obtaining a dignified life. The State is responsible for this guarantee, starting from the axiological foundation of the rights of the personality, imposing the burden of acting in order to guarantee the rights inherent to the personality and its adequations to the social function in the urban spaces. For the implementation of public policies capable of democratizing access to housing, Law 10.257 / 2001, known as the city statute, provides the state structure with instruments of effectiveness and coercivity, and presents itself as a normative framework capable of indicating directions capable of to provide the competent public administration with a basis for adequate and socially just urban planning.

KEYWORDS: Right to housing. Dignity of the human person. Social function. City Statute.

INTRODUÇÃO

O processo de urbanização se acelerou no Brasil principalmente no século XX, conforme afirma Bonizzato (2007, p. 11), “historicamente, a ocupação do espaço urbano em nosso país vem sendo feita de maneira irregular e iníqua, marcada pelas consequências das mais nefastas para a qualidade de vida nas cidades”.

O processo de expansão foi consequência do surgimento das indústrias que, consequentemente, acarretou um grande deslocamento da população situada na área rural que, em busca de empregos, migrou para a área urbana.

Salienta-se que com essa migração surge um ponto sensível, que é a falta de infraestrutura, eclodindo uma nova demanda social: a carência do acesso à moradia digna. No entanto, para falar sobre o direito à moradia é necessário compreender o seu conceito amplo, afastando da restrita noção de residência, ou local para dormir, mas relacionando a isso, além do sistema de infraestrutura (iluminação pública, asfaltamento, escolas, posto de saúde) e além os bens imateriais (relações de vizinhança, família e o tempo de ocupação).

O legislador constitucional de 1988, mesmo não tendo sido por meio do poder constituinte originário, incluiu o direito à moradia no rol dos direitos sociais especificados no art. 6º da carta magna. Ocorre que tal conduta não tem se mostrado suficiente à sua implementação, como tem evidenciado os critérios adotados pela administração pública no planejamento e execução das políticas públicas municipais.

Nessa etapa do processo, é imprescindível um estudo para averiguar a compatibilização desses pontos de incongruências e a sensibilidade do Estado, quanto às prerrogativas que legitimam o princípio da dignidade da pessoa humana conexo com o direito à moradia.

1 O DIREITO À MORADIA COMO INSTRUMENTO DE DIGNIDADE HUMANA

O direito à moradia é objeto de estudo das mais variadas ramificações das ciências, portanto não se limita apenas às análises das ciências jurídicas e sociais, tendo assim um aspecto de pluralidade essencial à vida humana. Dessa forma, tem-se um direito indispensável a condição de uma vida digna e ainda um direito social de acesso.

No entanto, para falar sobre o direito à moradia é necessário compreender o seu conceito amplo. Pois bem, a relação vai além do local de dormir, mas abrange todo sistema estrutural.

Portanto, como entende Santos (1986, p.02) é certa que a perspectiva das pessoas com a nova vida, e em busca de uma fonte de renda melhor e condições de vida:

A sociedade brasileira em peso embriagou-se desde os tempos da abolição e da república velha, com as idealizações sobre o progresso e modernização. A salvação parecia estar nas cidades, onde o futuro já havia chegado. Então era só vir para elas e desfrutar de fantasias como emprego pleno, assistência social providenciada pelo Estado, lazer, novas oportunidades para os filhos.... Não aconteceu nada disso, é claro, e, aos poucos, os sonhos viraram pesadelos.

Surge de forma desordenada a ocupação dos espaços urbanos nas cidades de modo que as pessoas foram se reunindo em diferentes pontos que não apresentavam condições para a habitação.

Essa instabilidade da infraestrutura das moradias, verifica-se nas palavras de Rios (2012, p.104):

O problema da falta de moradia tornou-se agudo com a urbanização, vindo a população ocupar tanto terras privada quanto públicas, para morar, trabalhar, e, é claro, sobreviver com qualidade de vida. Entretanto, as camadas sociais de baixa renda, muitas vezes sem condições financeiras para adquirir um terreno, incluindo a construção adequada, passaram a ocupar espaços, na maioria dos casos, desocupados e sem saneamento básico.

Para Silva (2002), o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana só pode se concretizar se for garantido o patrimônio mínimo.

A dignidade humana não se efetiva sem este mínimo. A pessoa humana é titular de um direito subjetivo a um patrimônio mínimo que lhe promova a inserção social. Esta tese não desconhece o impacto da afirmação, nomeadamente no que se refere à capacidade do Estado em garantir este mínimo patrimonial. Ocorre que sem este mínimo descarta-se a eficácia social a norma constitucional que preconiza a dignidade humana como o centro da sociedade e do Estado.

Nesse sentido, segue os ensinamentos de Sarlet (2015, p.20), que escreveu uma sugestão de conceito jurídico para determinar a definição de dignidade da pessoa humana:

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa  corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.

No entanto, a doutrina já abordava o direito à moradia como direito fundamental para o indivíduo, antes mesmo das alterações incluídas pelo poder constituinte. Dessa forma, Lira através do estudo apresentado em Macerata, na Itália, sobre o direito à habitação e o direito de propriedade, descreve:

O direito de habitação, o direito à moradia, o direito ao mínimo de abrigo, o ‘shelter’ (como dizem os anglo-saxônicos) é um direito individual assegurado na Constituição da nossa República, por isso que é instrumento indispensável à formação elementar da consciência de cidadania, instrumento indescartável na realização dos fundamentos da República, pois só com essa salvaguarda mínima se pode preservar a dignidade da pessoa humana (Art. 1º, inciso III, da Constituição da República de 1988), se pode erradicar a pobreza e a marginalização, bem como reduzir as desigualdades sociais (Art. 3º, inciso III, da Constituição da República). Se todos são iguais perante a lei (Art. 5º, caput, da Constituição, se a casa é asilo inviolável do indivíduo (Art. 5º., inciso XI, da Constituição), é evidente que todos têm direito a esse asilo e a essa inviolabilidade (LIRA,1991, p.81).

No decorrer dos anos foram visíveis as transformações que moldaram o conceito de dignidade humana. Porém, no século XVIII que se originou o movimento constitucionalista moderno, escreve Bonavides (2011, p.18):

A dignidade da pessoa humana, desde muito, deixou de ser exclusiva manifestação conceitual daquele direito natural meta positivo, cuja essência se buscava ora na razão divina, ora na razão humana, consoante professavam em suas lições de teologia e filosofia os pensadores dos períodos clássicos e medievais, para se converter, de último, numa proposição autônoma do mais subido teor axiológico, irremissivelmente presa à concretização constitucional dos direitos fundamentais.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 delimita a atuação e a competência dos entes públicos referente ao direito à moradia, dessa forma traz o Art. 21: “Compete à União; [...] XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos” (BRASIL, 1988). No entanto, é permitido aos municípios instituírem normas no âmbito dessas mesmas diretrizes e que sejam de interesse local, como garante tem a carta magna por meio do Art. 30: “Compete aos Municípios; [...] VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”.

Seguindo ainda a fundamentação Constitucional, onde se estabelece a necessária regulamentação dos direitos previstos nos artigos 182 e 183, e que se implementou por meio da Lei n°. 10.257/01, também conhecida como Estatuto da Cidade. Nesta oportunidade, infraconstitucionalmente foram apresentadas as diretrizes gerais das políticas de desenvolvimento urbano, norma base da gestão pública municipal para a criação, implementação e manutenção dos programas sociais, responsáveis por garantir o bem-estar dos habitantes.

Conforme leciona Barbosa (2006, p. 71), onde ela verifica a distinção das leis que tratam da política urbana das cidades:

A lei nº. 10.257, de 10 de julho de 2001, conhecida como Estatuto da Cidade, conforme já ponderado anteriormente, regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, e estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências de forma muito semelhante ao Código Civil. Importante observar que, no Capítulo II, dos instrumentos da política urbana, mais especificamente na seção VII, em seus artigos 21 a 24 regulamenta e positiva o direito de superfície urbana.

Para quem planeja e executa políticas urbanas, o direito à moradia representa no cenário jurídico atual um importante e difícil desafio, pois a demanda por moradia cresce exponencialmente, ocorrendo de forma paralela ao crescimento do desemprego. Tal fato gera para a administração pública a sensação de nunca poder alcançar o que a legislação constitucional pretende.

2 A ATUAÇÃO ESTATAL VOLTADA AO CUMPRIMENTO DO DIREITO À MORADIA

O legislador constitucional exige do Estado a efetivação do acesso à moradia digna, com a implementação de políticas públicas capazes de remediar essa demanda. Ocorre que sua capacidade de ofertar mecanismos para suprir essa carência é inversamente proporcional à demanda que lhe apresenta.

Contudo, verifica-se que o Estado tem o dever e não a faculdade de zelar pela ocupação das áreas urbanas de forma regular, atendendo à legislação, e possui a incumbência de cumprir a lei. Além disso, é dever do Estado zelar pela dignidade da pessoa humana com a intenção de preservar o vínculo cultural, o apego das pessoas ao lugar onde mora, o direito a morar em um local digno e preservar os vínculos pessoais e afetivos que a pessoa possui naquele local durante anos com a tolerância do Estado.

Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu artigo XXV diz que “ toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis” (Assembleia Geral da ONU, 1948).

De acordo com Gómez (2004, p.01) a base da política urbana encontra-se na Constituição, como pode se observar adiante:

a) a subordinação da propriedade urbana ao cumprimento de sua Função Social, impondo inclusive o parcelamento e a edificação compulsória dos terrenos urbanos não edificados;
b) a definição e concretização legal pela União das diretrizes gerais da política urbana;
c) a previsão de utilização geral da desapropriação com fins urbanísticos;
d) a atribuição ao Poder Público municipal a competência básica para definir a política de desenvolvimento urbano de cada cidade, com a finalidade de alcançar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes;
e) a utilização do planejamento urbanístico, particularmente do plano diretor, como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana; e,
f) a instituição da usucapião especial no solo urbano para fins de moradia.

A ocupação desordenada dos espaços urbanos desencadeia outros graves problemas sociais, como a violência, o consumo de drogas ilícitas, a proliferação de doenças, a ausência do acesso à direitos básicos como saúde, educação, transporte, lazer, saneamento, ou seja, compromete-se o mínimo existencial. Neste sentido, defende Roguet e Chohfi (2013, p. 310):

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[...] não basta que o Estado propicie o simples habitar ao cidadão, devendo estruturar uma moradia que possibilite o desenvolvimento dos atos básicos de higiene pessoal, acesso às redes de esgoto e saneamento, área não isoladas e acessíveis com transporte público, contando com escolas e postos de saúde, como forma de garantir o mínimo existencial.

O processo urbano brasileiro é fruto das políticas urbanas voltadas à exclusão social, comandada por interesses pessoais e econômicos, conforme descreve Santos (2005, p. 123):

O próprio poder público torna-se criador privilegiado de escassez; estimula, assim, a especulação e fomenta a produção de espaços vazios dentro das cidades, incapaz de resolver o problema da habitação, empurra a maioria da população para as periferias; e empobrece ainda mais os pobres, forçados a pagar caro pelos precários transportes coletivos e a comprar caro bens de um consumo indispensável e serviços essenciais que o poder público não é capaz de oferecer.

À moradia é apresentada como um direito social resguardado na CRFB/88, representando um dos direitos e garantias fundamentais. No entanto, para ser concretizado, é indispensável que o Estado atue de forma positiva através de programas e políticas públicas de forma a favorecer o cidadão com menor poder aquisitivo. Desta forma, no ano de 2001, surge o Estatuto da Cidade para regulamentar o texto constitucional, o que aumentou o alcance prático da norma, conferindo assim maior segurança na busca por moradia digna.

3 O ESPAÇO URBANO E O USO ADEQUADO À FUNÇÃO SOCIAL

A função social passou a ser entendida como integrante de importantes institutos jurídicos, sobretudo a propriedade, através do Estatuto da Terra, onde os institutos econômicos e jurídicos passam a regrar as leis naturais da economia, que determinam o alcance da plenitude e integralidade da função social, apenas mediante ao atendimento dos requisitos básicos do artigo 2º. do Estatuto da Terra e recepcionado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 em seu artigo 186, vejamos:

A função social é cumprida quando a propriedade atende, simultaneamente, segundo critério e graus de exigência estabelecido em lei, aos seguintes requisitos:
I - Aproveitamento racional adequado;
II - Utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - Observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV- Exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (BRASIL, 1988).

Não houve a imposição de limite ao direito de propriedade, mas uma redefinição. “Impõe ao proprietário o dever de exercê-la em benefício de outrem e não apenas, de não exercer em prejuízo de outrem” (GRAU, 2012, p. 250).

Para Figueiredo (2014, p.167), o Estado pode intervir na propriedade privada legitimamente quando não observado a função social.

Assim, a função social da propriedade cuida da socialização desses direitos individuais, de cunho privatista, no qual o uso e a fruição da propriedade privada passam a ser condicionadas ao atendimento de um objetivo maior, previamente estipulado por lei, cuja inobservância legítima a interferência do Estado sob a esfera de domínio privado do proprietário, podendo, inclusive, acarretar a expropriação do bem.

No mesmo sentido descreve Gondinho (2000, p.429):

(...) não podemos concordar com a restrição imposta à incidência do princípio da função social da propriedade dos bens de consumo. O fato de um bem ser utilizado para a subsistência individual não lhe exclui do campo de incidência do princípio da função social. Isso porque a função social da propriedade não se justifica apenas pela destinação econômica de determinado bem. Assim, se determinado bem, dada a sua natureza, se destina apenas a utilização individual ou familiar, mas é efetivamente assim utilizado, este bem não representa um desperdício de potencialidade para a sociedade. Desta forma, esse bem cumpre a sua função social pois torna a sociedade mais rica, apesar de, quantitativamente, a sua contribuição para a riqueza nacional ser pequena ou mesmo insignificante.

Para Osório (2003, p.174), o instituto (direito de superfície) acrescido ao código civil, no livro de direito das coisas, tem como finalidade precípua um melhor aproveitamento do solo urbano dando lhe uma função social:

[...] este instrumento é também um aliado aos esforços para efetivar o cumprimento da função social da propriedade, já que, da ótica dos que atuam no mercado imobiliário, o proprietário manterá a reserva do aumento do valor do solo para si após a transferência do direito de superfície para terceiro. O poder público, por sua vez, poderá, por meio de regras disciplinadoras do uso e da ocupação do território das cidades, definir as áreas consideradas subutilizadas ou não utilizadas, que deverão atender às exigências do desenvolvimento urbano, sob pena de ficarem sujeitas à aplicação de sanções para que a propriedade urbana cumpra uma função social. No caso de a função social do imóvel ser a edificação, os respectivos proprietários privados poderão alienar o direito de superfície de seus terrenos para que outra pessoa ou empresa construa, contribuindo, inclusive, para a diminuição dos custos da produção das unidades habitacionais ou comerciais.

Neste sentido, segue a orientação adotada no Enunciado n°. 93 da I Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal:

Enunciado nº.93
Art. 1.369: As normas previstas no Código Civil sobre direito de superfície não revogam as relativas a direito de superfície constantes do Estatuto da Cidade (Lei n°. 10.257/2001) por ser instrumento de política de desenvolvimento urbano. (JUSTIÇA FEDERAL)

A defesa do direito à moradia para alguns doutrinadores é entendida como exercício de dever do Estado em proteger e efetivar, como entende Souza (2013, p. 2013):

O direito à moradia torna-se um exercício que deve ser naturalmente protegido e efetivado pelo Estado, independentemente de norma infraconstitucional ou constitucional, já que decorre de um estado de necessidade do indivíduo e, em contrapartida, de um dever legal assumido pelo Estado Brasil, inclusive perante organizações internacionais.

A Agenda Habitat foi o mais recente documento de relevância internacional adotado pela Conferência das Nações Unidas, que trata do direito à moradia nos Assentamentos Humanos, Habitat II, em Istambul em junho de 1996. Agenda essa que foi responsável pela criação de princípios, metas e compromissos em um plano global que visa orientar as ações, nas décadas seguintes do século XXI, através do conjunto de esforços nacionais e internacionais com o intuito de promover melhorias nos assentamentos urbanos.

4 O ESTATUTO DA CIDADE COMO INSTRUMENTO SOCIAL

O direito urbano sempre foi considerado subdivisão do direito administrativo ou até mesmo do direito ambiental, porém com o nascimento do Estatuto da Cidade houve grandes inovações e também passou a ter regulamento próprio, conforme expressa Fernandes (2001, p. 61):

(...) O Direito Urbanístico brasileiro tem seu próprio conjunto de leis próprias e específicas, além das disposições do capítulo constitucional sobre política urbana e o Estatuto da Cidade, a importante Lei federal de Parcelamento do Solo e diversas outras leis federais ambientais e sobre o patrimônio-cultural; centenas de leis estaduais e milhares de leis municipais.

Segundo esclarece Saule Júnior (2007, p.64), nos últimos anos vem ganhando força a ideia do direito urbano como enfoque principal do direito da cidade:

(...) o direito urbanístico tem o papel de regular e disciplinar as normas de ordem pública referentes à proteção e promoção do direito à cidade, estabelecendo as legislações, os instrumentos jurídicos, os organismos públicos, as obrigações e responsabilidade dos agentes públicos para assegurar que os componentes do direito à cidade sustentável das atuais e futuras gerações sejam plenamente respeitados.

O Estatuto da Cidade é o dispositivo que regulamenta todas as políticas públicas, distribuídos em cinco capítulos, assim relacionados: diretrizes gerais; instrumentos de Política Urbana; plano diretor; e gestão democrática da cidade.

Como diretrizes gerais da política urbana tem-se o desenvolvimento das funções sociais das cidades e da propriedade urbana, nos termos do Art. 182 da CRFB/88.

Na mesma ordem, o Estatuto da Cidade no art. 2º, incisos de I ao V, expressam algumas diretrizes gerais criadoras de normas consistentes à ocupação urbana:

Art. 2º [...]
I - Garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
II - Gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;
III- Cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social;
IV - Planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;
V - Oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais (BRASIL, 2001).

Expressas as diretrizes gerais, cabe ao plano diretor, como esclarece o art. 40 do Estatuto da Cidade, a incumbência de implementação da política de desenvolvimento urbano, e o cumprimento das diretrizes já especificadas: “Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana ” (BRASIL, 2001).

Considera-se, desta forma, o plano diretor como ferramenta imprescindível da política de desenvolvimento e expansão urbana, além de responsável por apresentar as exigências fundamentais para a gestão urbana e promoção da qualidade de vida, justiça social e desenvolvimento das atividades econômicas, permitindo que a cidade cumpra sua função social.

Como instituto jurídico, o direito à moradia possui diferenciada abordagem quando se coloca como instrumento de análise perante diretrizes do direito privado e do direito público.

Como descreve Perlingieri (1999, p.198), direito à moradia é da pessoa e da família:

O direito à moradia como direito ao acesso à propriedade da moradia é um dos instrumentos, mas não o único, para realizar o gozo e a utilização da casa. Como direito existencial pode-se satisfazer também prescindindo da propriedade da moradia; por isso incide, em maneira decisiva, sobre as relações de uso, de moradia e de aluguel.

Conforme Tepedino (2004, p. 318), em uma análise da propriedade “no aspecto interno, quanto aos direitos de usar, fruir e dispor; quanto ao aspecto externo, aos direitos do proprietário de garantir seu exercício através da oponibilidade, serventia e direito de sequela”.

Desse modo, o citado autor atribui à função social, um fator de proteção e justiça social, que inclui:

A propriedade com a sua função social, as limitações do solo urbano e as restrições ao domínio, dão um novo conteúdo ao proprietário, limitando internamente o conteúdo do direito de propriedade. Não se trata, à evidência, de deslocamento para o direito público de certos tipos de propriedade, como se ao direito civil coubesse a disciplina de uma propriedade sem limites, no espaço que lhe restou, onde fosse possível expandir o mesmo individualismo pré-constitucional, podendo, então, finalmente, o titular, exercer o seu direito livremente, sem intervenção estatal. Ao contrário, todo o conteúdo do direito subjetivo de propriedade encontra-se redesenhado (2001, p.20).

A partir do ano de 2001 e com o implemento do Estatuto da Cidade, que mesmo sendo lei especial não revogou os artigos do Código Civil em que trata do direito de superfície, porém esta regra especial só deverá ser aplicada quando o Estado, em suas esferas federais, estaduais ou municipais, ocuparem um dos polos da relação jurídica.

Quando a ação for composta por particulares, deve-se aplicar a regra do Código Civil, que de acordo com o artigo nº. 1.377 estabelece quando o direito de superfície for constituído por pessoa jurídica de direito público, surgindo alguma divergência legal adotará sempre o Estatuto da Cidade, por ser norma especial. Segundo as lições de Pereira (2005, p.243), que assim descreveu:

O direito de superfície é um desses institutos que os sistemas jurídicos modernos retiram das cinzas do passado, quando não encontram fórmulas novas para disciplinar relações jurídicas impostas pelas necessidades econômicas ou sociais. [...] O direito de superfície caracteriza-se como um instrumento real sobre coisa alheia, e se apresenta como um desdobramento da propriedade.

O Estatuto da Cidade possui vários instrumentos necessários ao controle do uso do solo urbano, promovendo assim a função social da cidade e da propriedade urbana, em especial na esfera municipal. Tais diretrizes são classificadas de acordo com sua natureza, em tributários, financeiros ou econômicos; jurídicos; administrativos e são de fundamental importância para o planejamento de uma boa gestão de uma cidade.

5 A COERCITIVIDADE DOS INSTRUMENTOS CONSTITUCIONAIS E INFRACONSTITUCIONAIS EM FAVOR DA MORADIA

Após a criação da Carta de Declaração Universal dos Direitos Humanos 1948, o sistema internacional de direitos humanos passou a proteger o direito à moradia como o direito inerente ao indivíduo e reconhecido nesse documento, que também resguarda o direito a dignidade da pessoa humana como indispensável a uma vida digna e a proteção, que pode ser verificado no artigo nº. 23, item 3, e artigo nº. 25, item 1, consecutivamente:
Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.
(...)
Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle (Assembleia Geral da ONU, 1948).

Desse modo, apresenta-se alguns tratados e convenções internacionais, os quais ratificaram o teor dessa carta, onde o direito à moradia é reconhecido como um direito humano, passa apresentar alguns deles:

O Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966, artigo nº. 11, parágrafo 1º. diz:

Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.

A Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial de 1969, artigo nº. 5, “e”, III, relata:

De conformidade com as obrigações fundamentais enunciadas no artigo 2, Os Estados Partes comprometem-se a proibir e a eliminar a discriminação racial em todas suas formas e a garantir o direito de cada uma à igualdade perante a lei sem distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica, principalmente no gozo dos seguintes direitos: e) direitos econômicos, sociais culturais, principalmente: III - direito à habitação; (BRASIL, 1969).

A Convenção sobre os Direitos da Criança de 1990, artigo nº.  27, item 3, aduz:

Os Estados Partes, de acordo com as condições nacionais e dentro de suas possibilidades, adotarão medidas apropriadas a fim de ajudar os pais e outras pessoas responsáveis pela criança a tornar efetivo esse direito e, caso necessário, proporcionarão assistência material e programas de apoio, especialmente no que diz respeito à nutrição, ao vestuário e à habitação (BRASIL, 1990).

O Estatuto da Cidade possui normas gerais, e se baseiam na adequação das mesmas aos princípios da CRFB/88. Neste sentido, estas normas são destinadas aos Municípios, que passam a induzir a aplicação dos instrumentos constitucionais relativos à política urbana e ao bem-estar social, como por exemplo, o plano diretor sul que é de responsabilidade do município a efetivação desse instrumento entre outros instrumentos previsto no Estatuto da Cidade.

Dessa forma, a redação do artigo nº. 43, inciso I, do Estatuto da Cidade prevê que os órgãos colegiados de política urbana do executivo (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) são utilizados para garantir uma gestão mais democrática da cidade. Já o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano que é o órgão criado pela Medida Provisória nº. 2.220/2001, e que ficou definido como órgão consultivo e deliberativo, que integra a estrutura da Presidência da República, também é responsável pelas diretrizes gerais do desenvolvimento urbano e pela organização da Conferência Nacional das Cidades.

A Medida Provisória nº. 2.220/2001, também regulamenta o instrumento de Concessão de Uso Especial para fins de Moradia, e garante a sua aplicação vinculada pela administração, no entanto, é facultado ao interessado a via judicial, nessa situação, a sentença funciona como título para posterior registro em cartório de imóveis.

No ano de 2007, mais especificamente no mês de maio, entrou em vigor a Lei nº. 11.481 desse modo veio acrescentar à Lei nº. 9.636/1998, que passou a dispor sobre a regularização, administração, aforamento e alienação de bens imóveis de domínio da União, em seu artigo nº. 22-A, descreve as regras a respeito da Concessão de Uso Especial para fins de moradia.

Art. 22-A. A concessão de uso especial para fins de moradia aplica-se às áreas de propriedade da União, inclusive aos terrenos de marinha e acrescidos, e será conferida aos possuidores ou ocupantes que preencham os requisitos legais estabelecidos na Medida Provisória nº 2.220, de 4 de setembro de 2001.
§ 1º- O direito de que trata o caput deste artigo não se aplica a imóveis funcionais.
§ 2º- Os imóveis sob administração do Ministério da Defesa ou dos Comandos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica são considerados de interesse da defesa nacional para efeito do disposto no inciso III do caput do art. 5º da Medida Provisória nº 2.220, de 4 de setembro de 2001, sem prejuízo do estabelecido no § 1º deste artigo. (BRASIL, 2007)

Finalmente, com a criação das políticas públicas voltadas à atender a população com baixo poder aquisitivo, o Governo editou a Medida Provisória nº 459/2009, que logo depois foi convertida na Lei nº.11.977/09, e passou a ser popularmente conhecida como o programa “Minha Casa, Minha Vida”, gerenciado pelo Ministério das Cidades, mas as operações e instrumentalizações ficaram a cargo da Caixa Econômica Federal e a propriedade dos imóveis desse programa é de responsabilidade do Fundo de Arrendamento Residencial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para um melhor entendimento sobre o direito à moradia, é de fundamental importância analisá-lo sob a óptica da inviabilidade da dignidade sem que haja a possibilidade de garantir o mínimo existencial. Por isso, foi importante a sua inclusão no ordenamento jurídico brasileiro, e o reconhecimento nos organismos internacionais. De maneira que as políticas públicas habitacionais, desde que foram implantadas, tiveram como objetivo principal o desenvolvimento econômico, voltados para determinados setores financeiramente privilegiados, visando uma demanda proveniente do poderio aquisitivo exigido pelo mercado imobiliário.

Além da fundamentação principiológica e normativa constitucional, os institutos do direito privado também de são de importância prática para as demandas urbanas. A administração pública deve planejar e executar políticas habitacionais utilizando-se de institutos jurídicos que se encontram à sua disposição. Por esta razão, foram destacados aqueles estabelecidos pelo Estatuto da Cidade e do próprio código civil.

Para efetivação, há o necessário alinhamento entre a forma de se aplicar os institutos e as garantias constitucionais. Desta forma, viabiliza-se a inclusão social, não só a ampliação de atendimento à demanda por casa.

A regularização de ocupações precárias que acometem as periferias das grandes cidades, requer a intervenção do Estado com a implementação do instituo jurídico cabível a cada situação de fato, de forma a regulamentar a posse a cada um dos ocupantes e implementar políticas públicas de construção de moradia.

Constata-se que compreensão equivocada por parte do Estado, como planejador e executor da política urbana, do conceito de moradia implica em pífios resultados na área, de forma a se constatar que a demanda dificilmente será suficientemente atendida.

A vigência da Lei federal de nº. 10.257/2001, regulamentando os 182 e 183 da CFRB/88, e a complementação das regras e dos institutos locais com os respectivos planos diretores, tendo ainda como opção, o rol de direitos reais especificados no código civil, oferece esperança de que se possa atingir algo diverso do que se observa nas grandes e médias cidades brasileiras. Mas sem instrumento de efetivação, ficando apenas à cargo da discricionariedade administrativa, a evolução se torna pouco provável.

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Sobre os autores
Fábio Barbosa Chaves

Doutor em Direito pela PUC Minas, Mestre em Direito pela PUC Goiás, Professor da Faculdade Católica do Tocantins,

Raydine da Silva Costa

Bacharelanda em Direito pela Faculdade Católica do Tocantins. Especialista em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera. Bacharel em Ciências Contábeis pela FACIMP. Contadora do Instituto Federal do Tocantins.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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