4. A INTERPRETAÇÃO FRENTE AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES
A Constituição Federal de 1988, por inspiração em Montesquieu, estabelece no Artigo 1º a divisão do poder em funções: legislativo, executivo e judiciário. Essa cláusula foi estabelecida como princípio constitucional da separação dos poderes.
Montesquieu em sua obra o Espírito das leis, inovou ao dizer que as funções estatais estariam conectadas à três órgãos distintos, autônomos e independentes entre si. Essa teoria se contrapôs ao absolutismo e serve de base estrutural de formas de governo em quase todas democracias no mundo atualmente.
O princípio da separação dos poderes tem como finalidade preservar a liberdade individual, combatendo a concentração de poder, ou seja, a tendência absolutista de concentração do poder político pela mesma pessoa.A distribuição de poder entre órgãos estatais dotados de independência é tida como garantia ao equilíbrio político, evitando assim os riscos de abuso de poder.77
Segundo Montesquieu a separação dos poderes estabelece um sistema de freios e contrapesos, ou seja, um mecanismo de fiscalização e responsabilização recíproca dos poderes estatais.
Nesse sentido, a jurisprudência do STF estabelece que:78
O sistema constitucional brasileiro, ao consagrar o princípio da limitação dos poderes, teve por objetivo instituir dêstinado a impedir a formação de instâncias hegemônicas de poder no âmbito do Estado, em ordem a neutralizar, no plano político-jurídico, a possibilidade de dominação institucional de qualquer dos Poderes da República sobre os demais órgãos da soberania nacional
Em consonância com essa forma de organização de poder, compete ao Poder Judiciário, a função de pacificação social através do julgamento das lides, dessa maneira o juiz deve empregar a norma elaborada pelo legislador e interpretar a norma jurídica, sem avançar na atividade do legislador.
O modelo tradicional de interpretação, não se mostra mais suficiente para dirimir as situações submetidas ao Poder Judiciário, dessa forma surgem novas técnicas conforme já aferido no presente trabalho, como a interpretação conforme à Constituição.
Sendo assim, a grande questão e que vem sendo citada corriqueiramente é como harmonizar os métodos inovadores de hermenêutica com o princípio da separação dos poderes, sendo que em algumas hipóteses o magistrado ao realizar uma interpretação extensiva pode acabar avançando nas funções do legislativo.
É importante destacar a reflexão de Virgílio Afonso da Silva:79
(...) a discussão mais urgente acerca da interpretação constitucional - que não guarda qualquer relação com uma discussão acerca de meros métodos- diz respeito ao papel do STF na interpretação constitucional. Cabe a esse Tribunal fazer valer determinados valores constitucionais? Se sim, como decidir quais prevaleçam em cada caso concreto? Ou ao STF cabe apenas zelar pelo bom funcionamento procedimental do regime democrático, deixando para o legislador a tarefa de decidir sobre os valores constitucionais a serem concretizados?.
É notório que o Poder Legislativo que tem a competência da representação popular, e não ao judiciário, que a Constituição conferiu a função de reger as relações sociais, dessa forma só por exceção os juízes e tribunais poderão sobrepor sua interpretação às decisões dos legisladores, sob pena de ferir o princípio constitucional da separação dos poderes
Nesse sentido o Supremo Tribunal Federal consignou no julgamento da Representação de Inconstitucionalidade n. 1.417-7-DF que:
A aplicação desse princípio sofre, porém restrições, uma vez que (...)o STF (...) não tem o poder de agir como legislador positivo, para criar norma jurídica diversa da instituída pelo Poder Legislativo. Por isso, se a única interpretação possível para compatibilizar a norma com a Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme à Constituição, que implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo.
No caso, não se pode aplicar a interpretação conforme à Constituição, por não se coadunar essa com a finalidade inequivocamente colimada pelo legislador, expressa literalmente no dispositivo em causa, e que dele ressalta pelos elementos da interpretação lógica80.
A idéia de uma participação mais ampla do Poder Judiciário na concretização de valores constitucionais se baseia no ativismo judicial, tema este que apresenta notória divergência na doutrina.
Ocorre que sendo nocivo ou não, o ativismo judicial representa a insuficiência do Estado em atender aos interesses da população. Para Barroso esse fenômeno tem uma feição positiva, ao dizer que o judiciário acaba atendendo as demandas da sociedade que não foram satisfeitas pelo Poder Legislativo, sendo que é imprescindível uma reforma política no país visando reaproximar a classe política da sociedade, devendo as decisões em sede de ativismo judicial serem excepcionais.
Ao declarar uma lei inconstitucional, o Judiciário devolve ao Legislativo a competência para reger a matéria. Mas ao interpretar a lei estendendo-a ou restringindo-a além do razoável, estará interferindo as competências do legislativo.
A melhor técnica sempre é a da ponderação, e o desafio é assegurar ao poder judiciário, o livre exercício de sua atividade típica por todos os métodos interpretativos da lei, sem que essa atividade possa ferir os pilares da tripartição de poderes, tampouco a segurança jurídica.
Partindo desse pressuposto é cabível aferir que as novas formas de hermenêutica constitucional não resultam em ameaça ao princípio tradicional da separação dos poderes, e sim o realiza, visto que a finalidade deste princípio visa permitir que o Estado satisfaça sua função social e humana.
5. A SOCIEDADE ABERTA DOS INTÉRPRETES E A FIGURA DO "AMICUS CURIAE"
No Brasil, assume cada vez mais destaque a noção projetada por Peter Häberle, pelo qual se defende uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, no sentido de que a interpretação constitucional não pode se restringir a uma competência de órgãos jurisdicionais, sendo assim se propõe uma ampliação dos sujeitos da interpretação constitucional, valendo-se de uma interpretação pluralista e democrática.
Häberle anota que:
A interpretação constitucional tem sido, até agora, conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Dela tomam parte apenas os intérpretes jurídicos "vinculados à corporações" e aqueles participantes formais do processo constitucional. A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte da sociedade81
Häberle defende que a interpretação não mais deve ficar confinada dentro de uma sociedade fechada, não devendo ficar restrita aos órgãos estatais, mas que deve ser aberta para todos.
Conforme anotou Gilmar Mendes ao lembrar as licções de Peter Häberle:82
Cidadãos e grupos, órgãos estatais, o sistema público e a opnião pública (...) representam forças produtivas de interpretação (...), eles são intérpretes constitucionais em sentido lato, atuando nitidamente, pelo menos, como pré- intérpretes (...). Subsiste sempre a responsabilidade da jurisdição constitucional, que fornece, em geral, a última palavra sobre a interpretação (...). Se se quiser, tem-se aqui uma democratização da interpretação constitucional.
Nesse sentido, quanto mais pluralista for a sociedade, mais abertos serão os critérios de interpretação.
Häberle observa que:83
Os instrumentos de informações dos juízes constitucionais - não apesar, mas em razão da própria vinculação à lei - devem ser ampliados e aperfeiçoados, especialmente no que se refere às formas gradativas de participação e à própria possibilidade de participação no processo constitucional. Devem ser desenvolvidas novas formas de participação das potências pluralistas enquanto intérpretes em sentido amplo da Constituição. A interpretação constitucional realizada pelos juízes, pode-se tornar, correspondentemente, mais elástica e ampliativa sem que se deva ou possa chegar a uma identidade de posição com a interpretação do legislador
Devemos refletir se a sociedade fechada de intérpretes realmente emana a "vontade da constituição", visto que a Constituição é produto da vontade de um povo, dessa forma, diante do espírito democrático, é cabível perguntar diretamente ao titular do poder constituinte originário qual sua opinião sobre as questões constitucionais. Nesse sentido, A interpretação constitucional é uma atividade que, potencialmente diz respeito à todos, negando o monopólio da interpretação constitucional, mesmo naqueles casos em que se confere a um órgão jurisdicional específico o monopólio84.
É de suma importância destacar a seguinte passagem de Häberle:85
Colocado no tempo, o processo de interpretação constitucional é infinito, o constitucionalista é apenas um mediador. O resultado de sua interpretação está submetido à reserva da consistência, devendo ela, no caso singular, mostrar-se adequada e apta a fornecer justificativas diversas e variadas ou, ainda, submeter-se a mudanças mediante alternativas racionais. O processo de interpretação constitucional eleve ser ampliado para além do processo constitucional concreto. O raio de interpretação normativa amplia-se graças aos "intérpretes da Constituição da sociedade aberta". Eles são os participantes fundamentais no processo de "trial and error", de descoberta e de obtenção do direito. A sociedade torna-se aberta e livre, porque todos estão potencial e atualmente aptos a oferecer alternativas para a interpretação constitucional. A interpretação constitucional jurídica traduz (apenas) a pluralidade da esfera pública e da realidade , as necessidades e as possibilidades da comunidade, que constam do texto, que antecedem os textos constitucionais ou subjazem a eles.A teoria da interpretação tem a tendência de superestimar sempre o significado do texto.
Depreende-se que o reconhecimento da pluralidade da interpretação constitucional acaba concretizando o princípio democrático.
No direito brasileiro, destacamos a figura do "amicus curiae"
O "amicus curiae" corresponde à possibilidade da participação de órgãos e entidades estranhas à causa, considerando a relevância da matéria e a representatividade do postulante (Art. 7º, Parágrafo 2º da Lei 9.868/99)
O "amicus curiae", está previsto na Lei 9.868/99. Na ação direta de inconstitucionalidade, , é vedada expressamente a intervenção de terceiros, entretanto o Art. 7º Parágrafo 2º da mencionada lei admiti a intervenção de outros órgãos ou entidades, desde que se atenda os pressupostos de relevância da matéria e da devida representatividade.
Conforme destaca o Ministro Celso de Mello,
Trata-se de um fator de legitimação social das decisões da Suprema Corte, e tem por finalidade pluralizar o debate constitucional, ao possibilitar a "participação formal de órgão ou entidades que efetivamente representem os interesses gerais da coletividade (...)86
É inegável a importância da intervenção do "amicus curiae" no processo de controle objetivo de constitucionalidade, visto que tem papel de instrumento de aplicação do princípio democrática.
Seu objetivo consiste em trazer novos elementos, informações, esclarecimentos sobre o tema objeto de controle de constitucionalidade, a fim de possibilitar o Supremo Tribunal Federal proferir a decisão mais intrínseca à sociedade. Sua natureza jurídica é de auxiliar a Corte.
É possível a admissão do "amicus curiae", na arguição de descumprimento de preceito fundamental, na representação interventiva, na ação declaratória de constitucionalidade e na ação direta de constitucionalidade por omissão.
O instituto do "amicus curiae" tem a finalidade de auxiliar na instrução do processo, juntando aos autos parecer ou informações com o intuito de trazer informações e considerações importantes sobre matéria de direito a ser analisada pela Corte.
Depreende-se que o objetivo do "amicus curiae" é auxiliar a instrução processual,
É de suma importância apresentar a visão do Ministro Gilmar Mendes a respeito deste instituto:87
(...) evidenciou a relevância do amicus curae como fonte de informação para a Corte, além de cumprir função integradora importante no Estado de Direito, tendo em conta o caráter pluralista e aberto de sua admissão, fundamental para o reconhecimento de direitos e a realização de garantias constitucionais.
Não obstante, insta salientar outra figura que corrobora com a concepção de Peter Häberle, as audiências públicas.
A respeito da primeira audiência pública realizada no Brasil, em processo de controle concentrado de constitucionalidade, temos a ADI 3.510, proposta pelo Procurador Geral da República, contra a utilização de células-tronco de embriões humanos em pesquisas e terapias.
Nesse contexto, pode-se verificar que a doutrina de Peter Häberle vem sendo paulatinamente incorporada pela jurisprudência e pela legislação, tornando uma tendência o intercâmbio de conhecimento entre os diversos órgãos da sociedade. Não obstante acaba se destacando uma efetivação democrática nas questões interpretativas das normas jurídicas, especialmente as constitucionais, visto que na democracia o povo é o intérprete da Constituição.
CONCLUSÃO
Conforme apresentado neste trabalho, pode-se concluir que o Direito Constitucional já não é apenas o que prescreve o texto constitucional. Foi possível observar que a hermenêutica está intrinsecamente ligada ao sistema de controle de constitucionalidade, visto que o juiz age como intérprete da lei e deve, sobretudo, respeitar os parâmetros hermenêuticos. Apesar de Konrad Hesse defender a importância do texto como algo vinculativo, é notório que as mutações constitucionais tem suma importância em nosso ordenamento jurídico. Não obstante, nota-se que o atual panorama da hermenêutica constitucional é indispensável à efetivação dos direitos fundamentais estabelecidos na Carta Magna, partindo desse pressuposto, percebe-se que a jurisdição constitucional além de deter suas competências típicas, é-lhe reservada a atribuição de efetivar direitos fundamentais.
Além do exposto, é digno de registro a concepção de Peter Haberle em favor de uma visão democrática da interpretação constitucional, criticando o modelo de interpretação de uma sociedade fechada, onde se concentra a interpretação nos juízes, ao invés de atribuir a interpretação aos agentes políticos e até mesmo ao cidadão.
Apesar das controvérsias quanto ao protagonismo do Poder Judiciário em nossa sociedade, este fenômeno tem uma face positiva, visto que os magistrados estão atendendo às demandas da sociedade que não puderam ser satisfeitas pelo legislativo. Não obstante o tema demonstra a necessidade de uma reforma-política em nosso país diante da inconsistente democracia representativa em que vivemos.
Destarte, conclui-se que é a partir das novas propostas hermenêuticas que os textos constitucionais sobrevivem a ação do tempo e efetivam direitos fundamentais, nesse sentido percebe-se quão importante se torna a interpretação constitucional na sociedade atual, sendo que as mutações constitucionais provocadas pela interpretação devem ser admitidas e prestigiadas, quando atuando dentro dos limites impostos pela nossa Constituição rígida e pelos métodos hermenêuticos, pelo fato de adaptar o texto constitucional às novas exigências da sociedade em constante evolução, superando-se o distanciamento entre a Lei Maior e a realidade social.