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O emprego da jurisprudência no direito estadounidense

10/05/2019 às 15:56
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Nos países em que vige o common law, as decisões judiciais dos tribunais podem estabelecer precedentes que determinam novo princípio ou conceito legal, ou que afetem a interpretação da lei existente.

A concepção jurídica do Common Law, no qual as fontes principais do Direito são os costumes e a jurisprudência, surgiu na Inglaterra, na Idade Média, configurando, juntamente com o Civil Law, os dois grandes subsistemas em que geralmente os doutrinadores e estudiosos da Ciência Jurídica concebem o sistema ocidental de Direito. Neste último, também chamado de romanístico (em decorrência do Direito Romano, amplamente codificado e base legislativa para muitas das populações nos territórios outrora parte do Império Romano), as fontes principais do Direito são as leis, ou seja, as normas jurídicas escritas e, em alguma medida, consolidadas e codificadas, sendo utilizado majoritariamente nos países germânicos e latinos, dentre estes o Brasil.

Nos países integrantes do Common Law, as decisões judiciais dos tribunais podem estabelecer precedentes que determinam um novo princípio ou conceito legal significativo ou, ainda, afetar substancialmente a interpretação da lei existente, exatamente por esta razão a afirmação segundo a qual a jurisprudência constitui-se em uma das fontes principais do Direito. Estas decisões são denominadas "Leading Cases" no Reino Unido e em outras jurisdições da Commonwealth e "Landmark Cases" nos Estados Unidos.

Nos Estados da Commonwealth, uma decisão relatada é considerada um Leading Case quando "estabelece a lei" (no sentido estrito de regra normativa) para a questão discutida em juízo. Foi o que aconteceu em 1914, quando o jurista canadense Augustus Henry Frazer Lefroy definiu muito bem o conceito de Leading Case ao afirmar simplesmente que "um Leading Case é aquele que estabelece a lei sobre algum ponto importante" (cf. Augustus Henry Frazer LEFROY. Leading Cases in Canadian Constitutional Law. Toronto, Carswell, 1914, p. v.).

Nos Estados Unidos, os Landmark Cases provém mais frequentemente da Suprema Corte americana, mas também podem ocorrer nas esferas judiciais estaduais. A título ilustrativo, faremos um breve resumo de três dos casos mais significativos na história do país:


1) O Caso Marbury v. Madison:

A importância desse caso, julgado em 1803 e considerado um marco do constitucionalismo mundial, decorre do fato de ter fixado as bases para a chamada Judicial Review, isto é, a possibilidade de o Judiciário poder rever as leis ou os atos da administração pública.

"No final do governo do federalista John Adams (1791-1801), o Congresso promulgou a Lei Orgânica do Distrito Federal (District of Columbia Organic Act), atribuindo ao presidente da República (Adams) o provimento, com a aprovação do Senado, de 42 cargos de justice of the peace. Alguns nomeados receberam imediatamente seus títulos de nomeação. Dezesseis outros, porém, ficaram para trás, uma vez que o secretary of State (John Marshall) não teve tempo – ainda que tenha varado boa parte da noite – de colocar o 'Great Seal of the United States' (equivalente à nossa 'Armas da República') em todos os documentos ou mesmo de entregar os títulos de nomeação já prontos. No dia seguinte, muda o governo, que passa a ser (pela primeira vez) republicano. Jefferson assumiu a presidência da República, nomeando Madison secretary of State. John Marshall, por sua vez, por designação do governo anterior (Adams), passou a ocupar a presidência da Suprema Corte. Alguns justices of the peace nomeados e não titulados (entre eles William Marbury, um próspero comerciante de Georgetown) ajuizaram, por meio do advogado Charles Lee (1758-1815), um writ of mandamus na Suprema Corte no mês de dezembro de 1801 com o escopo de forçar o novo secretary of State (Madison) a lhes entregar os títulos de nomeação. Com o governo republicano e as duas Casas do Congresso, ambas dispondo de maioria republicana, os juízes da Suprema Corte, de linha federalista, corriam o risco de impeachment.

A impetração de Marbury se fez com base na seção 13 da Lei Orgânica da Magistratura, o Judiciary Act de 24 de setembro de 1789. A redação do dispositivo legal não era das mais claras: dava competência, entre outras, à Suprema Corte para julgar 'writs of mandamus, in cases warranted by the principle and usages of law...' (COMMAGER, 1958, p. 153 et seq.). Muito embora não se pudesse extrair do dispositivo em questão, de modo inquestionável, a competência originária da Corte para julgamento do writ aforado por Marbury e outros, Marshall, de modo subreptício e altamente engenhoso, disse que a seção 13 da Lei Orgânica atribuía inconstitucionalmente competência à Suprema Corte para julgar o writ. A competência, todavia, estava reservada à Constituição, e não à lei infraconstitucional. Lendo-se hoje a decisão, depreende-se com clareza que ficou dito que acima do Congresso (que havia editado a Lei Orgânica) estava a Constituição e, mais, que cabia ao Judiciário fazer o confronto entre a lei ordinária, ainda que elaborada pelo Congresso, com a Constituição. Em decorrência, a ação judicial de Marbury e outros não tinha como tramitar na Suprema Corte.

A vitória (na aparência) do Governo (Jefferson) estava assegurada. Aparentemente estaria afastada a quase certa tentativa de impeachment dos juízes federalistas da Suprema Corte. Todavia, antes de chegar ao resultado (inconstitucionalidade da seção 13), Marshall, manhosamente, antecipou obiter dictum o mérito da questão, afirmando que William Marbury e seus companheiros tinham, sim, direito de receber os títulos de nomeação. A nomeação dos justices of the peace havia sido válida, já que precedida do assentimento do Senado." (Adhemar Ferreira MACIEL. O Acaso, John Marshall e o controle de constitucionalidade.)


2) O Caso Miranda v. Arizona:

Esse caso teve início em 1963, com a detenção de Ernesto Miranda, um residente do Estado do Arizona (Phoenix) acusado de estupro, sequestro e roubo. MIRANDA não foi devidamente informado de seus direitos antes de seu interrogatório policial, no qual supostamente ele teria confessado os crimes. No julgamento, a acusação da Promotoria baseou-se apenas nesta confissão, sendo o réu condenado a uma pena de 20 a 30 anos de prisão. Irresignado, MIRANDA interpôs recurso de apelação na Suprema Corte do Estado do Arizona, alegando, como principal razão recursal, que a polícia havia obtido sua confissão de maneira inconstitucional. Tendo seu recurso desprovido, MIRANDA decidiu, então, apelar à Suprema Corte dos Estados Unidos em 1966.

Em uma decisão de 5 (cinco) votos contra 4 (quatro), redigida pelo então Chefe de Justiça, EARL WARREN, entendeu-se que a promotoria não poderia ter utilizado a confissão de MIRANDA como prova em um julgamento penal, posto que a polícia não o havia informado anteriormente sobre seu direito a um advogado e contra sua auto-incriminação. Cabe registrar que o dever policial de informar sobre estes direitos é decorrente do disposto na 5ª Emenda da Constituição estadunidense, que confere a um suspeito criminal o direito de recusar "a ser testemunha contra ele próprio", bem como do disposto na 6ª Emenda, que garante aos acusados o direito a um advogado (cf. ALEX MCBRIDE. Miranda v. Arizona (1966). Disponível em: <https://www.pbs.org/wnet/supremecourt/rights/landmark_miranda.html>. Acesso: 13 jul. 2017).

Na ocasião, a Suprema Corte recordou que o direito de um acusado contra a autoincriminação já fazia parte há muito tempo do Direito Anglo-Americano como uma forma de equalizar a inerente vulnerabilidade da situação de detido. Tal posição, se não respeitada, pode conduzir a abusos autoritários por parte do governo.

Desta feita, para proteger esses direitos básicos do cidadão, a Suprema Corte elaborou a declaração que as forças policiais devem fazer a um acusado que esteja sendo detido ou interrogado, os chamados "Miranda Rights":

"1. You have the right to remain silent.

2. Anything you say can and will be used against you in a court of law.

3. You have the right to an attorney.

4. If you cannot afford an attorney, one will be appointed for you." (texto original em inglês)

"1. Você tem o direito de permanecer calado.

2. Tudo o que você disser pode e deve ser usado contra você em uma corte.

3. Você tem o direito a um advogado.

4. Se você não puder pagar por um advogado, um será designado para você." (tradução livre do autor)

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3) O Caso Abington School District v. Schempp:

No caso em epígrafe, julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, em 17 de junho de 1963, decidiu-se por 8 (oito) votos a 1 (um) que a determinação legal ou oficial de leitura da Bíblia ou oração em escolas públicas é inconstitucional. Segundo a decisão (redigida pelo juiz TOM C. CLARK), referidas práticas violam disposição contida na 1ª Emenda da Constituição estadunidense, segundo a qual é vedada a edição de legislação que objetive consagrar uma religião como a oficial.

O caso começou em 1958, quando EDWARD LEWIS SCHEMPP, sua esposa e dois de seus filhos, que frequentavam escolas públicas no Estado da Pensilvânia, ajuizaram uma ação na Corte Distrital da Filadélfia alegando que seus direitos religiosos haviam sido violados por uma lei estadual que requeria que as escolas públicas começassem cada dia de aula com uma leitura de pelo menos 10 passagens da Bíblia.

Em argumento muito bem elaborado e elucidativo para resolver a questão, a Corte negou que sua decisão seria o estabelecimento da "religião do secularismo" ou que estivesse interferindo no livre exercício de práticas religiosas pelos estudantes e seus pais. "Enquanto que a Cláusula de Livre Exercício claramente proíbe o uso de ação estatal para negar os direitos ao livre exercício religioso a qualquer cidadão", continua a Corte, "nunca foi a intenção que a maioria pudesse se utilizar do maquinário estatal para pôr em prática suas próprias crenças" (cf. Stephen R. MCCULLOUGH. School District of Abington Township v. Schempp. Disponível em: <https://www.britannica.com/topic/School-District-of-Abington-Township-v-Schempp>. Acesso: 13 jul. 2017).


Bibliografia:

- LEFROY, Augustus Henry Frazer. Leading Cases in Canadian Constitutional Law. Toronto, Carswell, 1914, p. v.

- MACIEL, Adhemar Ferreira. O Acaso, John Marshall e o Controle de constitucionalidade. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/93276/Maciel%20Adhemar.pdf?sequence=1>. Acesso: 28 jun. 2017.

- MCBRIDE, Alex. Miranda v. Arizona (1966). Disponível em: <https://www.pbs.org/wnet/supremecourt/rights/landmark_miranda.html>. Acesso: 13 jul. 2017.

- MCCULLOUGH, Stephen R.. School District of Abington Township v. Schempp. Disponível em: <https://www.britannica.com/topic/School-District-of-Abington-Township-v-Schempp>. Acesso: 13 jul. 2017.

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Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduação em Engenharia pela Universidade Santa Úrsula (1991), graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), graduação em Administração - Faculdades Integradas Cândido Mendes - Ipanema (1991), graduação em Direito pela Faculdade de Direito Cândido Mendes - Ipanema (1982), graduação em Arquitetura pela Universidade Santa Úrsula (1982), mestrado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (1989) e doutorado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991). Atualmente é professor permanente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local - MDL do Centro Universitário Augusto Motta - UNISUAM, professor conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, professor emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Diretor do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF). Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região -, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, soberania, defesa, CT&I, processo e meio ambiente.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. O emprego da jurisprudência no direito estadounidense. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5791, 10 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73768. Acesso em: 21 dez. 2024.

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