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Do adiantamento dos honorários periciais nas demandas sobre relação de consumo

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A inversão do ônus da prova prevista pelo Código de Defesa do Consumidor não tem o condão de impor ao prestador de serviços o adiantamento dos honorários periciais nas situações em que o consumidor solicitante da prova é beneficiário da justiça gratuita.

INTRODUÇÃO

Nas relações de consumo, na seara processual, o Código de Defesa do Consumidor garante a inversão do ônus da prova, por determinação do juízo, a fim de que se imponha ao prestador de serviços o encargo probatório, por ser ele a parte detentora dos meios de produção, sendo, portanto, mais capaz de produzir a prova.

Ao inverter o ônus probatório o magistrado imporia ao prestador de serviço o encargo de trazer ao processo as provas acerca de determinado fato, sob pena de, contra si, pesar as consequências da não produção daquelas provas. Entretanto, a inversão do ônus da prova não retira totalmente do consumidor o ônus de produzir algumas provas, das quais tem plenas condições de ter acesso.

Dentre os meios legais de prova, chama atenção a prova pericial, eis que, em regra, o adiantamento pelos custos da perícia cabe à parte que a solicita. Há, entretanto, alguns julgados que impõem ao prestador de serviço o dever de adiantar as custas processuais, sob o argumento de que, nas relações de consumo, há inversão do ônus da prova e que os honorários periciais deveriam, deste modo, recair sobre a parte mais forte da relação.

Nesse sentido, o presente projeto tem por objetivo estudar, considerando os institutos trazidos pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), bem como a legislação processual civil vigente, Lei 13.105/15, se a inversão do ônus da prova nas demandas que versam sobre relação de consumo tem o condão de impor ao prestador de serviços o encargo pelo pagamento dos honorários do perito, nas situações em que o consumidor é o único solicitante da produção deste meio de prova.


DA PROVA E DO CONVENCIMENTO DO JUIZ

O juiz, ao decidir determinada demanda submetida a sua apreciação, deve manifestar-se de acordo com o seu convencimento, fundado naquilo que comprovou ao longo da instrução processual, por isso, provas são os elementos carreados ao processo que contribuem para a formação do convencimento acerca das alegações deduzidas pelas partes sobre fatos relevantes e controvertidos.

Alexandre Freitas Câmara nos ensina que o termo prova tem dois diferentes sentidos, subjetivo e objetivo, sendo que o primeiro deles tem relação com o convencimento do magistrado, enquanto o segundo diz ser prova qualquer elemento trazido ao processo que tenha por escopo a demonstração de veracidade de uma alegação.

É interessante notar que o termo prova pode ser empregado em dois diferentes sentidos, um subjetivo e outro objetivo. Do ponto de vista subjetivo, a prova é o convencimento de alguém a respeito da veracidade de uma alegação. É neste sentido que se pode, então, dizer que em um determinado processo existe prova de que o pagamento aconteceu. Quem diz isso está, na verdade, a afirmar que se convenceu de que o pagamento foi feito. Trata-se, pois, de uma percepção subjetiva da prova.

De outro lado, em seu sentido objetivo, prova é qualquer elemento trazido ao processo para tentar demonstrar que uma afirmação é verdadeira. Assim, por exemplo, quando uma das partes diz que com o documento trazido aos autos faz prova do alegado, pretende-se afirmar que tal documento é trazido ao processo para demonstrar a veracidade da alegação. Aqui, a prova é percebida como um dado objetivo. (O novo processo civil brasileiro, 3ª edição)

As provas têm por destinatários todos os sujeitos processuais, nos termos do Enunciado 50 do Fórum Permanente de Processualistas Civis [1], porém, é preciso compreender que o magistrado é o destinatário direto da prova, já que é ele o sujeito processual que dirá o direito, conforme a formação de seu convencimento, baseado nos elementos probatórios trazidos aos autos.

No Código Civil de 1973, vigia o princípio do livre convencimento motivado[2], segundo o qual o magistrado podia, de forma discricionária, valorar as provas apresentadas pelas partes, o que, nas palavras de Humberto Theodoro Júnior, gerava certa insegurança, já que “a liberdade na apreciação dos elementos relativos à demonstração das alegações fáticas poderia ensejar a inconveniente possibilidade de o juiz isolar certa prova, para dar-lhe força suficiente para formar seu convencimento, com total ou parcial eliminação do exame e avaliação dos demais elementos probatórios produzidos no processo. É claro que uma visão sectária na operação interpretativa dos fatos acabaria por gerar uma aplicação também sectária e inadequada do direito na resolução da causa”[3].

Levando-se em consideração que o Direito no Estado democrático de Direito é incompatível como uma atividade jurisdicional discricionária, o livre convencimento motivado fora superado quando do advento do Código de Civil de 2015, que entrou em vigor no dia 18 de março de 2016, no qual fora excluída a palavra livremente.

Art. 371.  O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.

Segundo a atual legislação processual civil, portanto, cabe ao juiz a apreciação de todo o conjunto de provas a ele apresentado, não sendo-lhe possível apreciar apenas as provas que livremente escolher.


DO ÔNUS DA PROVA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 E DA TEORIA DA DISTRIBUIÇÃO DINÂMICA DO ÔNUS DA PROVA

No direito processual civil tem-se por ônus uma conduta exigida a uma das partes, para que desempenhe um interesse que lhe é próprio, ou seja, não se considera, em processo civil, ônus como sendo uma obrigação da parte, mas uma conduta positiva com escopo de impedir que recaia sobre ela qualquer prejuízo de natureza processual, portanto, não há que se falar em dever de produzir provas.

Não há um dever de provar, nem à parte contrária assiste o direito de exigir a prova do adversário. Há um simples ônus, de modo que o litigante assume o risco de perder a causa se não provar os fatos alegados dos quais depende a existência do direito subjetivo que pretende resguardar por meio da tutela jurisdicional. Isso porque, segundo máxima antiga, fato alegado e não provado é o mesmo que fato inexistente. (THEODORO, Humberto Júnior, Curso de Direito Processual Civil, Volume I, 59ª edição)

O Código de Processo Civil distribui o ônus da prova, ou seja, estabelece os critérios a serem aplicados para definir sobre qual das partes recai o interesse acerca da produção de determinada prova.

Em regra, no processo civil, cabe ao autor produzir provas acerca dos fatos constitutivos do direito que alega, enquanto cabe ao réu apresentar conjunto probatório que demonstre haver fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito deduzido pela parte ex adversa.

Art. 373.  O ônus da prova incumbe:

I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;

II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

Contudo, a regra geral é mitigada em face da paridade de armas, garantida pelo princípio da isonomia, que pressupõe equilíbrio entre as partes na relação processual, o que impede que uma parte, hiperssuficiente, se beneficie de sua força em detrimento da outra. Desta forma, quando uma parte dispõe de mais recursos que a outra, é preciso que se equilibre esta relação, criando dispositivos que tornem as forças equivalentes.

Fundado neste raciocínio, o legislador implementou, dentre outros dispositivos que equilibram as forças na relação processual, a Teoria da Distribuição Dinâmica do Ônus da Prova, segundo a qual o encargo probatório recai sobre a parte que melhores condições tem de produzi-la.

O processo civil “social” sugeriu outro critério mais abrangente: a atribuição do ônus da prova ope judicis, conforme o caso, independentemente da posição processual ocupada pela parte, e visando à facilitação da prova. Para essa finalidade, atribuiu-se o ônus casuisticamente à parte que (aparentemente) dispõe de maiores recursos, informações e proximidade com a fonte da prova. (ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro. Volume II. 2015)

No Código de Processo Civil, a distribuição dinâmica do ônus da prova fora consagrada no §1° do artigo 373, segundo o qual, “nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído”.

Porém, há que destacar que tal instituto não é novidade no ordenamento pátrio, isto por que algumas legislações já dispunham sobre a possibilidade de uma distribuição diferenciada do ônus da prova, conforme a necessidade de cada caso, a exemplo da Lei 8.078/90, que garante ao consumidor a facilitação da defesa de seus direitos, o que, por vezes, pode repercutir na necessidade de inversão do ônus da prova.

Entretanto, a legislação vigente veda a inversão do ônus probatório na situação em que a desincumbência do encargo se torna excessivamente difícil ou impossível (art. 373, §2°)[4]. Caso contrário, a inversão do ônus da prova não atenderia ao escopo de trazer equilíbrio à relação contratual, apenas inverteria a parte sobre quem recairia o peso de impossibilidade de se comprovar determinado fato.


DO ÔNUS DA PROVA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO

Conforme já mencionado no tópico anterior, a distribuição dinâmica do ônus da prova inserta no Código de Processo Civil de 2015 não é novidade no ordenamento jurídico brasileiro, o Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, prevê a inversão do ônus da prova quando da defesa dos direitos do consumidor, considerada parte hipossuficiente da relação.

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

A Lei 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor, estabelece dois critérios para que seja invertido o ônus da prova, que serão aplicados a critério do juízo. São eles: verossimilhança das alegações e/ou hipossuficiência do consumidor. Os critérios podem ser aplicados isoladamente ou cumulativamente, conforme se fizer necessário em cada caso.

Verifica-se, portanto, que a inversão do ônus da prova, nas demandas que versam sobre relações de consumo, não deve ocorrer automaticamente, devendo ser feita mediante decisão judicial, devidamente fundamentada, nos casos em que as alegações apresentadas tiverem mínima aparência de verdadeiras ou quando o consumidor não dispuser, face à sua incapacidade técnica, de meios de produzir a prova necessária à defesa de seus interesses.

Trata-se da denominada inversão ope judicis, pois o ônus probante será invertido a critério do juiz segundo suas regras ordinárias de experiência. A inversão neste caso não é automática, por não ser obrigatória. (BOLZAN, Fabricio. Direito do Consumidor Esquematizado. 2ª edição)

Dito isto, tem-se que a legislação consumerista vigente prevê dispositivos hábeis a inverter o encargo comprobatório, visando garantir maior facilidade, por parte do consumidor, da defesa de seus direitos, entretanto, cabe ao juiz apreciar, caso a caso, a necessidade de inversão do ônus da prova, de acordo com as necessidades de cada demanda.


DA HIPOSSUFICIÊNCIA DO CONSUMIDOR

Fabricio Bolzan esclarece que “com a constatação de que a relação de consumo é extremamente desigual, imprescindível foi buscar instrumentos jurídicos para tentar reequilibrar os negócios firmados entre consumidor e fornecedor, sendo o reconhecimento da presunção de vulnerabilidade do consumidor o princípio norteador da igualdade material entre os sujeitos do mercado de consumo”[5].

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O princípio da vulnerabilidade encontra-se insculpido no artigo 4°, I do Código de Processo Civil e impõe uma presunção absoluta da condição de vulnerável do consumidor, ou seja, não cabe, contra ela, prova em contrário.

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)

I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

A vulnerabilidade não se confunde, entretanto, com a hipossuficiência, eis que, enquanto a primeira se trata de norma de direito material sobre a qual recai presunção absoluta, a segunda é norma processual, de presunção relativa. Deve-se, portanto, demonstrar, caso a caso, a hipossuficiência do consumidor.

Ao contrário do que ocorre com a vulnerabilidade, a hipossuficiência é um conceito fático e não jurídico, fundado em uma disparidade ou discrepância notada no caso concreto. Assim sendo, todo consumidor é vulnerável, mas nem todo consumidor é hipossuficiente. (TARTUCE, Flávio. AMORIM, Daniel. Manual de Direito do Consumidor - Volume único. 3ª edição)

Verifica-se, portanto, que ambas estão relacionadas com a patente fragilidade do consumidor perante o prestador de serviços, porém, interessa-nos, para o escopo do presente projeto, apenas o instituto de natureza processual.

A palavra hipossuficiência traz consigo o significado de escassez de recursos econômicos, entretanto, no direito do consumidor, o significado deste vocábulo vai muito além da fragilidade financeira, devendo ser interpretada, ainda, como uma debilidade técnica ou científica do consumidor perante o prestador de serviços.

[...] o conceito de hipossuficiência vai além do sentido literal das expressões pobre ou sem recursos, aplicáveis nos casos de concessão dos benefícios da justiça gratuita, no campo processual. O conceito de hipossuficiência consumerista é mais amplo, devendo ser apreciado pelo aplicador do direito caso a caso, no sentido de reconhecer a disparidade técnica ou informacional, diante de uma situação de desconhecimento, conforme reconhece a melhor doutrina e jurisprudência. (TARTUCE, Flávio. AMORIM, Daniel. Manual de Direito do Consumidor - Volume único. 3ª edição)

A hipossuficiência geralmente está relacionada com a fraqueza econômica do consumidor, mas nada impede que no caso concreto seja constatada pelo juiz sua fragilidade em qualquer outro aspecto fático ou mesmo técnico. De fato, não possuindo o consumidor condições econômicas, fáticas, técnicas ou de informação para comprovar o seu direito, poderá o juiz inverter o ônus probante e exigir do fornecedor a demonstração de que não foi o responsável pelos danos alegados pelo autor. (BOLZAN, Fabrício. Direito do Consumidor Esquematizado. 2ª edição)

O Código de Defesa do Consumidor, portanto, prevê uma garantia bastante abrangente da defesa dos direitos do consumidor, sobretudo, in casu, quanto à interpretação da palavra hipossuficiência, pois, ao considerá-la como significação de fragilidade, não apenas no sentido financeiro, mas também nos aspectos técnico e científico, impõe ao prestador de serviços, a parte detentora dos meios de produção, o encargo de trazer ao processo as provas necessárias à elucidação dos fatos.

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Sobre o autor
João Victor Teixeira Camargos Diniz

Investigador da Polícia Civil de Minas Gerais. Formação Técnico-Profissional, Carreira Investigador de Polícia. Bacharel em Direito pela PUC Minas. Pós-graduado em Advocacia Cível pela Escola Superior de Advocacia da OAB/MG e Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Verbo Jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DINIZ, João Victor Teixeira Camargos. Do adiantamento dos honorários periciais nas demandas sobre relação de consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5815, 3 jun. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74172. Acesso em: 20 abr. 2024.

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