Capa da publicação Modelo jurídico da seguridade social: proposições legislativas e desconstitucionalização
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O modelo jurídico da seguridade social:

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Diante da realidade social e econômica brasileiro, a previdência se tornou um problema moral, político, social e econômico, pois há mais despesas do que recursos, com gastos maiores para um grupo de pessoas em injustificável desfavor de outros grupos menos favorecidos e até mais necessitados.

“No texto constitucional, muito do que é novo não é factível; e muito do que é factível não é novo”. “Da ordem social – exibem-se duas características fundamentais do socialismo: despotismo e utopia”. “Exemplos de despotismos são os dispositivos relativos à educação e à previdência social. Quanto à educação, diz-se que ela é dever do Estado, com a colaboração da sociedade. É o contrário. Ela é dever da família, com a colaboração do Estado”. “Outro exemplo de despotismo é a previdência estatal compulsória. Todos devem ser obrigados a filiar-se a algum sistema previdenciário, para não se tornarem intencionalmente gigolôs do Estado” (Roberto Campos)

“A Constituição necessita de uma lipoaspiração” (Nelson Jobim)

"Precisamos adequar a nossa Previdência, adequar o nosso sistema tributário e precisamos de menos texto na Constituição" (Dias Toffoli)


1 A fraqueza normativa da Constituição: reformar é necessário

A Constituição da República Federativa do Brasil[1], promulgada em 1988, é, lamentavelmente, um texto repleto de promessas normativas irresponsáveis e inconsequentes.  Os legisladores constituintes originários estavam imbuídos de boas intenções, mas se deixaram contaminar pela crença infantil no poder mágico das “Leis”, como se o “verbo” pudesse se transformar em “carne” ou a “palavra” fosse suficiente para criar ou transformar o “mundo” e as “coisas” de acordo com a sua vontade. Esse poder de criar ou de modificar a matéria ou a realidade somente pela força das palavras é privativo de Deus, segundo as Sagradas Escrituras.

Os constituintes, ingenuamente, confundiram “força normativa” com “utopia fantasiosa”. Com efeito, um texto constitucional repleto de desejos, com desprezo à realidade ou às condições naturais ou geográficas, econômicas, sociais, culturais, científicas e tecnológicas de determinada sociedade em determinado espaço geográfico e período temporal, conduz à erosão de respeitabilidade e à perda de sua normatividade (vinculatividade), como bem explicou Konrad Hesse[2]. A Constituição divorciada da realidade e das contingências da vida e das possibilidades fáticas não passa de uma simples “folha de papel”, de sorte que a “Constituição jurídica” nada pode em face da “Constituição real” e dos “fatores reais de poder”, como denunciou Ferdinand Lassalle[3].

Nessa perspectiva, não há espaço para o “legislador Pinóquio” (aquele que mente para o povo mediante a criação de direitos sem lastro na realidade circundante) nem para “o jurista Peter Pan” (aquele que acredita no ordenamento jurídico, a despeito da realidade fática, como se o Direito fosse uma “Neverland”). Tanto o legislador como o jurista devem amadurecer e devem enfrentar a realidade nua, dura e crua, sem fantasias infantis ou crenças mágicas.

O primeiro passo consiste em deixar de adorar o Estado. É bem verdade que no texto constitucional brasileiro há vários preceitos da “Estatolatria”, como se vê, por exemplo, no comando normativo disposto no art. 3º, inciso I, que enuncia ser objetivo fundamental da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária.  Ora, não é a República (o Estado) que constrói a sociedade, mas esta (a sociedade) que constrói aquela (a República ou o Estado).

Ou seja, a sociedade é anterior e superior ao Estado. Este nasce daquela, é construído pela sociedade, ao invés de esta (a sociedade) ser construída por aquele (o Estado). A sociedade é formada pelo conjunto organizado e estabilizado de indivíduos. Estes (os indivíduos) são seres concretos, realidade palpável, e não mera abstração teórica. Portanto, a sociedade abstrata é formada por indivíduos concretos. Logo, o Estado deve ser subsidiário em relação aos indivíduos. Daí que, em nossa avaliação, deveria haver uma mudança no texto constitucional, modificando-se o aludido art. 3º, que passaria a ter a seguinte redação:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da sociedade brasileira, formada por homens e mulheres livres, justos e solidários:

I - construir um Estado democrático, republicano e federativo.

Essa simples mudança textual enviaria uma forte mensagem simbólica: o Estado deixaria de ser um “deus artificial” (ídolo adorado) e se tornaria um valioso instrumento da sociedade em favor da dignidade de cada indivíduo. Ao invés de ser servido pelos indivíduos, o Estado (que também é composto de indivíduos concretos) serviria à sociedade, ou seja, um Estado a serviço da sociedade ao invés de um Estado que da sociedade se serve. Mas, além de ser uma modificação textual, essa alteração haveria de simbolizar uma mudança de mentalidade cultural: a crença que muitos de nós compartilhamos nos superpoderes do Estado e do Direito. Essa crença é muito forte entre muitos de nós brasileiros que atribuímos ao Estado a capacidade de resolver todos os problemas da vida e de satisfazer todos os desejos e/ou necessidades que possuímos.

Com efeito, uma Constituição que promete, via enunciação de direitos normativos, a satisfação de nossas necessidades e a realização de nossos desejos, corre o risco de sobrecarregar o Estado, as empresas e a própria sociedade. Cuide-se que Estado, empresas e sociedade são abstrações ou criações mentais. Quem efetivamente vai se sobrecarregar são os indivíduos (pessoas reais). E, além de se sobrecarregarem de responsabilidades sobrehumanas, esses indivíduos terão profundas decepções, haja vista o quanto há de prometido no texto normativo e o quanto há de realidade concreta, como sucede, por exemplo, com a promessa contida no art. 7º, inciso IV, que dispõe ser direito do trabalhador o salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada a sua vinculação para qualquer fim.

Pois bem, nos termos do Decreto n. 9.661, de 1º de janeiro de 2019, que regulamenta a Lei n. 13.152, de 29 de julho de 2015, o salário mínimo vigente no Brasil é no valor de R$998,00 (novecentos e noventa e oito reais).  Não são poucas as entidades que julgam que esse valor nominal não atende as promessas constitucionais. Tome-se, à guisa de exemplo, as pesquisas realizadas pelo Dieese[4] que indicam que para satisfazer às necessidades do trabalhador e de sua família o salário mínimo material deveria ser de R$4.385,75 (quatro mil trezentos e oitenta e cinco reais e setenta e cinco centavos). Eis o dilema: ou se cumpre efetivamente a Constituição ou se inviabiliza a economia e as finanças públicas? As promessas normativas constitucionais não cabem no PIB brasileiro[5].

Dentre outras promessas normativas da Constituição, que também causam dilemas normativos e existenciais, e que também não são suportadas pelo PIB, há as relativas à seguridade social, que nos termos do art. 194 compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.  

Pois bem, tramitam no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição n. 6, de 2019 (PEC 6/2019)[6], a Proposta de Emenda à Constituição n. 287, de 2016 (PEC 287/2016)[7] e o Projeto de Lei n. 1.645, de 2019 (PL 1.645/2019)[8], que visam modificar vários preceitos normativos constitucionais e infraconstitucionais relativos à seguridade social e à administração pública, mormente, direitos dos trabalhadores, dos servidores públicos, e dos militares estaduais e das Forças Armadas.  Por que essas proposições legislativas estão tramitando?  Há motivos para inovar o ordenamento jurídico com essas modificações?  O atual modelo de seguridade social está adequado e atende às necessidades dos brasileiros? É moralmente aceitável, politicamente conveniente, socialmente adequada e economicamente viável, o modelo atual de seguridade, especialmente em relação à previdência? Seria juridicamente justificável que todas as aposentadorias, pensões e benefícios, bancadas pela seguridade social, fossem no valor de um salário mínimo? 

Procuraremos responder a essas questões lastreado no realismo e no pragmatismo constitucional. Com efeito, ser realista e pragmático, em sede de direito constitucional, significa ler a Constituição não como um documento onírico ou poético, mas como um texto vocacionado ao equilíbrio social. O realista e pragmático está consciente de que para todo bônus há um ônus correspondente, ou seja, para todo direito há um dever. E, também há um custo a ser suportado ou pelo pagamento de tributos ou pelo pagamento de preços, posto que todos os direitos implicam custos, seja para efetivá-los, seja para protegê-los ou para sancionar e punir quem lhes viola.

Nessa perspectiva, ser realista e pragmático significa entender que somente devem ser positivados em textos normativos, sobretudo no texto da Constituição, aquilo que pode ser reivindicado perante as competentes instituições e que eventual descumprimento ou desobediência aos comandos constitucionais enseja uma pronta e imediata sanção (consequência negativa) aos responsáveis. Se a promessa normativa for de difícil concretização, deixa de ser um direito para se tornar um desejo ou um sonho (ou pesadelo?). Se for de razoável concretização, aí pode ser direito. Para um realista pragmático, em um texto normativo deve haver menos sonhos, menos desejos, menos quimeras e deve haver mais possibilidades, factibilidades e viabilidades.

A rigor, o realista pragmático não ilude o cidadão pagador de tributos e de contas com promessas irresponsáveis e inconsequentes. Não promete o “Paraíso” para justamente não lhe presentear com o “Inferno”. Já o onirismo jurídico-constitucional, com as suas promessas de um mundo perfeito, com a sua engenharia social e moral paradisíaca, com a sua arquitetura de bondade e bom-mocismo, normalmente provoca decepção e frustração, pois há um profundo e intransponível fosso entre o texto normativo e a realidade concreta. O direito há de ser um dever-ser possível e factível.

É fora de toda a dúvida que já passou da hora de o legislador e o jurista brasileiros abandonarem a magia e a fantasia, pois os indivíduos concretos (as pessoas humanas) necessitam de um Estado que seja capaz de lhes viabilizar, sem intervencionismo desarrazoado e desproporcional, o indispensável equilíbrio social para que todos possam viver as suas respectivas vidas com paz, prosperidade e justiça, e que cada indivíduo possa realizar todos os seus projetos existenciais dignos, em harmonia com os projetos existenciais dignos alheios.

Alcançar essa harmonia não tendo sido uma tarefa fácil, afinal os indivíduos são seres concretos e imperfeitos, com características e circunstâncias que lhos diferenciam de outros indivíduos. Há gente de todos os tipos, pois a fauna humana é demasiadamente rica e complexa.

Com efeito, os indivíduos (espécies) são homens e mulheres, de carne e osso, com almas e emoções, com vícios e virtudes, com necessidade e desejos, com recordações de passado, com perspectivas de presente e expectativas de futuro, que vivem e sonham, com alegrias e frustrações, com felicidades e tristezas, ou seja, somos todos demasiadamente humanos. E cada indivíduo, pessoa humana, é um universo de possibilidades existenciais, e cada um consiste em uma experiência existencial única e irrepetível no tempo e no espaço, e todos são moralmente iguais.

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Daí que os parâmetros de harmonização ou de solução dos conflitos devem privilegiar o que não seja juridicamente proibido, moralmente inaceitável, socialmente inadequado, politicamente inconveniente, economicamente ineficiente, tecnologicamente ineficaz e cientificamente inviável. É preciso respeitar e considerar a realidade e o contexto, inclusive para modificar essa realidade e esse contexto.

Recorde-se que em 1988 o Brasil tinha uma população em redor de 142 milhões de habitantes, em 2019 gira em redor de 210 milhões. Em 1988, havia em torno de 59 milhões de brasileiros entre 0 e 17 anos, atualmente em torno de 52 milhões. Em 1988 em torno de 73 milhões de brasileiros entre 18 e 59 anos, em 2019 quase 125 milhões. E, em 1988, havia pouco mais de 10 milhões de brasileiros com mais de 60 anos, atualmente quase 33 milhões de brasileiros tem mais de 60 anos.  Esses são os quadros comparativos. A geografia humana brasileira mudou. É necessário adaptar-se.

Nessa linha, temos professado o credo segundo o qual, em nossa avaliação, um bom texto jurídico, seja de caráter acadêmico (teses, dissertações, artigos etc.) ou de caráter processual (decisões, votos, petições, memoriais, pareceres etc.), deve ser convincente, coerente, consistente, correto e conciso. Ou seja, com essas cinco características o texto jurídico (acadêmico ou processual) merece sincera consideração e respeito. Daí que se acaso o texto (ou o argumento jurídico) não possuir essas características, entendemos ser um texto (ou argumento) falho e inadequado para influenciar (persuadir), se for acadêmico, ou para vincular (obrigar), se for uma decisão, ou convencer (também persuadir) os seus destinatários.

A finalidade deste texto é persuadir o leitor de que, diante de nossa realidade e contexto, as reformas constitucionais, especificamente da previdência, são o primeiro passo para que o Brasil possa retomar o caminho do crescimento econômico com a melhoria das condições sociais, sobretudo para os mais necessitados. Se acaso o leitor já estiver convencido de que as reformas constitucionais não são relevantes nem necessárias, convém sequer continuar a leitura deste texto. Mas se quiser se convencer ou robustecer suas convicções acerca da imperiosa necessidade delas, o texto pode lhe subsidiar e lhe ser útil.

E se a Constituição não for reformada, e se ela vier a perder a sua normatividade e vinculatividade, e se as suas promessas não forem levadas a sério, qual a necessidade, portanto, de reformas? Para que reformar o que não tem valor? Por que se preocupar com aquilo que não tem poder real na vida das pessoas? Na verdade, sem as reformas a Constituição continuará a ser um texto normativo seletivo, em vez de um texto integral. Ou seja, ela somente será aplicada naquilo que os “fatores reais de poder” julgarem interessante e ao invés de ser um texto indutor do equilíbrio, continuará como texto incentivador de desequilíbrios sociais, apesar de suas boas intenções.

Em suma, a sociedade, por meio de seu poder constituinte, criou um Estado que, por meio da Política e do Direito, instituiu (e tem instituído) um conjunto de “bônus” e de “ônus” a ser usufruído e suportado por essa mesma sociedade. Sucede, todavia, que tanto o usufruto quanto o sacrifício tem sido desequilibrado. Esse desequilíbrio tem prejudicado a convivência social harmônica e pacífica. As reformas constitucionais são, reitera-se, os primeiros passos para se equilibrar os “bônus” e “ônus” na sociedade brasileira. Há uma sociedade com muitos indivíduos pobres e miseráveis, sem acesso a serviços básicos e bens essenciais (exemplo: água potável e saneamento básico), e somente com a retomada do crescimento econômico o País irá superar esse grave problema político, econômico, social e (por que não?) moral.

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O modelo jurídico da seguridade social: : Uma breve análise acerca das proposições legislativas e a necessária desconstitucionalização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5820, 8 jun. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74473. Acesso em: 16 abr. 2024.

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