Quem julga casos de estupro?

Análise sobre a Teoria da Relatividade, Platão e o caso Neymar Jr.

06/06/2019 às 20:02
Leia nesta página:

Reflexões sobre a pressão midiática nos casos de estupro, tendo como base a Teoria da Relatividade, os pensamentos filosóficos de Platão e a acusação de estupro no caso Neymar Jr. Ainda estamos presos à Teoria de Newton esperando por um Einstein abrir nossos olhos?

Aquele que pensa, opõe resistência; é mais cômodo seguir a correnteza, ainda que declarando estar contra a correnteza. (ADORNO, Notas marginais sobre teoria e práxis, 1995, p. 208)

Introdução

Abordar-se-á a respeito da imagem refletida pelos meios de comunicação e a forma como a sociedade passa a criar suas próprias ovelhas e lobos através da informação que lhe é passada, provocando sentimentos imparciais ao tender para um dos lados da balança, normalmente o lado da “vítima”, a agredida.

O artigo terá como base a Teoria da Relatividade, reflexões do pensamento de Platão e a acusação no caso Neymar Jr. Salienta-se que não terá cunho acusatório ou absolutório sobre o caso, mas opiniões em ambos os sentidos podem ser dadas, visando ao pensamento reflexivo, tendo em vista a existência de uma pré-concepção a respeito de um transgressor que não é sempre real.

Posto isso, acusações de estupro são polêmicas e frequentemente dividem opiniões. Quando a delatio criminis ou denúncia é feita, e ainda não há indícios de autoria, o investigado muitas vezes já é condenado pela própria família, além da condenação feita pela população através da notícia passada pela mídia.

O estupro, por violar a intimidade, é um assunto delicado, razão pela qual o crime é considerado como ação penal pública incondicionada (art. 5º, I e II, §§ 1º, 2º e 3º do CPP), onde não se pode desistir ou voltar atrás na denúncia, visando principalmente mulheres vítimas de violência doméstica, que se sentem inibidas a continuar a investigação.

Nestes casos, parece-nos que a mídia é quem verdadeiramente julga. Ela constrói a personalidade do investigado e acaba por moldar nossos pensamentos. Como exemplo do poder desta, acreditamos existir certo incentivo a determinadas pessoas quando se publicam abertamente entrevistas com investigados e a forma inovadora ou criativa que ocorreu a infração legal.

Nessa perspectiva, os meios de comunicação se tornam responsáveis também pela popularização de termos com aplicação equivocada, induzindo as pessoas a os utilizar. Temos como exemplo a expressão “crime duplamente qualificado”, considerada uma estrutura juridicamente incorreta em Direito Penal, uma vez que, na dosimetria da pena, há circunstâncias atenuantes e agravantes e não duas agravantes.

Não obstante, não só de críticas faz-se neste artigo; há, claramente, pressão positiva vinda dos meios de comunicação. Como a massiva responsabilidade pelo incentivo à continuação da investigação e prisões na Operação Lava Jato. Ressalta-se, portanto, o efetivo apoio benéfico midiático para este caso.

Da Teoria da Relatividade

Publicada por Albert Einstein em 1905, a Teoria da Relatividade levou ao mundo conceitos importantíssimos e novos sobre a Física, complementando a Teoria da Gravitação Universal de Isaac Newton do século XVII que havia sido bem-sucedida e aceita pela comunidade intelectual e, até então, era tida como completa e absoluta.

Anteriormente, acreditava-se que a massa dos corpos atraía os demais corpos de massas menores, sendo a razão para estarmos “presos” a Terra e ela “presa” ao Sol. Anos depois, a comunidade científica conheceu a Teoria da Relatividade, passou-se a entender que não é exatamente a massa de um corpo que atrai o outro.

Os estudos de Einstein trouxeram o conceito de espaço-tempo (figura 1) como uma entidade geométrica unificada, estando entrelaçados. O espaço-tempo corresponde às três dimensões do espaço (altura, profundidade e largura) e a dimensão do tempo juntas, formando uma espécie de tecido ou malha plana que nos rodeia, sendo deformado pelo peso dos corpos.

Figura 1: exemplificação visual do espaço-tempo. Fonte: NASA

Como o peso do Sol é o maior, a malha é mais fundada, ou melhor, deformada onde o Sol está localizado, fazendo com que o tecido, antes esticado, se curve. Essa curvatura é o que se chamava de “força da gravidade”. Essa é a maior curva no tecido do espaço-tempo em nossa galáxia, consequentemente resulta em planetas e demais estrelas em volta do Sol sendo puxados para o centro, onde está o Sol, por serem menores.

Assim, conclui-se que quando Newton compartilhou seus estudos, todos foram levados a acreditar que aquela era a verdade, até que em determinado momento não foi possível sustentar tal teoria. Destaca-se, a certeza sobre o certo pode ser modificada, como quando se acreditava na teoria de Newton.

Sabemos que a verdade extraída em um processo judicial muitas vezes é a verdade momentânea, isto é, passível de recurso e novas provas serem peticionadas até a ação revisional. Nesse sentido, apenas as partes do litígio são quem sabem a real razão dos fatos, pois presenciaram o momento, mesmo estando presas as suas próprias limitações físicas.

Posto isto, passemos a analisar a Relatividade Restrita, parte da Teoria da Relatividade, que está voltada, basicamente, às diferenças que existem entre as medidas físicas realizadas em dois referenciais em movimento relativo. Dessa maneira, as horas passam mais rápido ou mais devagar a depender do referencial.

A Relatividade Restrita de Einstein pode ser trazida ao mundo jurídico da seguinte forma: ninguém é bom ou ruim, herói ou vilão, anjo ou demônio; são apenas parâmetros de um observador que tenta ser imparcial, já estando incluído na perspectiva e, consequentemente, dentro do espaço-tempo junto com os observados.

Em outras palavras, não existe uma referência que seja absoluta, depende do ponto de vista do observador ou de outro objeto. Nos casos de estupro, uma pessoa que julga, condenando ou não, é um humano, logo, julgando outro humano, com semelhantes comportamentos e instintos, portanto, é um julgamento parcial.

Não se fala aqui em conceitos morais ou religiosos: fala-se sobre quem é o julgador e quem é o julgado. A mídia expõe a informação de forma tendenciosa e provoca nas pessoas sentimentos que as tornam capazes de julgar seus semelhantes, afinal, o ser humano julgado hoje é, no dia anterior, o mesmo que julgava.

Por mais que existam diferentes formas de noticiar fatos, a pressão midiática acaba nos deixando parciais, principalmente em casos como o em estudo, não se fala em indiciado ou investigado, a notícia é passada em termos como “agressor” e “estuprador”, parece-nos que falta o tão conhecido princípio da presunção de inocência.

Frequentemente nesses casos, por violar um direito tão íntimo, que é própria intimidade, a mídia tende a criminalizar e sentenciar o investigado antes mesmo do devido processo penal. Por essa razão, acusar ou não acusar é papel unicamente do Judiciário, entendemos que opiniões pessoais não devem ser incluídas e sim a verdade dos fatos. O estupro ocorreu ou não? O réu culpado ou não? Há atenuantes?

De Platão

O filósofo grego Platão conceitua a justiça na seguinte expressão “cada um recebe o que lhe for devido”, no sentido de fazer corresponder a função de cada pessoa, como suas virtudes.

O conceito de Platão pode ser dividido em um determinado segmento: seria justo retribuir mal com o mal, numa espécie de vingança (vendetta). Pode-se até interpretar um viés religioso, onde o próprio universo se encarrega de retribuir as ações pessoais, numa espécie de karma.

O item aqui trabalhado está ligado a discriminação que a sociedade pratica com o investigado, aparentemente por “ter praticado mal” (o estupro), é justo que sofra retaliações. Não nos parece adequado que se tente fazer justiça com as próprias mãos no estilo “olho por olho, dente por dente” da Lei de Talião, mais uma vez volta-se a ideia de que quem declara culpado ou inocente é o Poder Judiciário e que a própria denúncia pode ser arquivada por falta de indícios de autoria ou materialidade do crime.

Não atribuir pré-julgamentos nos parece uma boa forma de sermos justos e seguir o dito por Platão, corroborando com a imagem da deusa da justiça, Themis, que está vendada. Deve-se prezar pela decisão de um órgão criado e especificado unicamente para julgar ações ou omissões humanas ou de responsabilidade humana, pois fatos da natureza não interessam ao Direito.

Por último, ressalta-se que o cidadão que se encontra preso por ter cometido estupro tende a se tornar vítima de crime idêntico no seu encarceramento, sendo um exemplo da Lei de Talião.

Da acusação no caso Neymar Jr.

O famoso jogador de futebol Neymar Júnior foi acusado de estuprar uma mulher em Paris, local onde joga no time francês Paris Saint-Germain. O caso ganhou repercussão entre os dias 01 e 02 de junho deste ano.

O Boletim de Ocorrência registrou o suposto crime no dia 15 de maio de 2019. Segundo a  jovem, Neymar a convidou para encontrá-lo em Paris e seu assessor "Gallo" entrou em contato com ela para fornecer as passagens e hospedagem no Hotel Sofitel Paris Arc Du Triomphe.

Diferentemente do que normalmente ocorre em casos de estupro, onde o réu já é antecipadamente condenado pela mídia, no caso de Neymar parece que esta não está acreditando no relato da jovem. Há um viés a ser explorado: a graciosidade do “menino Ney”, o carinho dos fãs, a resposta do jogador nas redes sociais, todos são elementos que pesam no contexto.

Divergindo de casos semelhantes ocorridos no futebol, como o de Cristiano Ronaldo, em 2009, possivelmente resultado em acordo para “abafar” o caso, a imagem de Neymar continua a mesma, quase ilibada, a saber, a mídia não o vê como ‘transgressor” da lei.

É possível que a visão do caso tenha sido diferente pela defesa prévia apresentada pelo jogador nas redes sociais e inconsistências nas alegações da jovem, que, aparentemente, mudou o foco de agressão para estupro. Sobre isto, vejamos o documento divulgado por José Edgar Bueno, ex-advogado da jovem, que afirma que ela não manteve no boletim de ocorrência a versão dita aos advogados sobre o ocorrido:

[A] alegação [de estupro] é totalmente dissociada dos fatos descritos por você aos nossos sócios, já que sempre afirmou que a relação mantida com Neymar Jr. foi consensual, mas que, durante o ato, ele havia se tornado uma pessoa violenta, agredindo-a, sendo esse o fato típico central (agressão) pelo qual ele deveria ser responsabilizado cível e criminalmente.

Assim, poderia-se facilmente chegar à conclusão de uma tentativa de extorsão, comum em casos similares, mostrando a razão do receio e recuo midiático ao não condenar o jogador, uma vez que ele é um brilhante produto da mídia, e tentar quebrar ou abalar uma imagem fortemente criada é perigoso. Não obstante, como entendemos a presunção de inocência, teremos cautela ao condenar antecipadamente, antes de transitar em julgado uma possível futura ação.

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Este é um caso considerado diferenciado. Caso Neymar não tivesse se pronunciado publicamente, poderíamos entender como se já estivesse escolhendo um dos lados, uma vez que o silêncio também é uma forma de manifestação. Quando não se comenta sobre um caso próprio, ao não emitir uma opinião pública, estar-se-ía deixando um dos lados mais fortes. No caso em análise, a acusação de estupro, há uma linha tênue ao tentar se defender e ser alvo de infindáveis críticas.

Posto isso, muitos jogadores e demais famosos preferem não alimentar as criações espetaculares dos meios de comunicação ao não responderem publicamente sobre seus casos, muitas matérias fantásticas com suas respostas às acusações deixam de ser produzidas e isso gera um sentimento de frustração jornalística, uma perdida tentativa de se promover pela matéria. Por conseguinte, há efeito rebote, os conteúdos publicados são altamente partidários e, frequentemente, com linguagem pejorativa.

No final, a poderosa imagem ou o peso de um importante cargo acaba ganhando mais importância que a acusação ou até mesmo eventual condenação ao crime em diversos casos. As vítimas, em sua maioria, mulheres, acabam perdendo credibilidade ao fazerem uma denúncia de estupro, além da dificuldade de acusar alguém famoso e diversas vezes ocorre a falta de tratamento correto com a vítima.

Destacamos que a sociedade também é vítima tanto quanto o condenado por estupro não famoso (desconhecido) que sofre violência dentro da prisão. Ele é uma vítima do próprio sistema, não apenas o sistema carcerário brasileiro, mas em sentido amplo.

Conclusão

Como visto, a pressão midiática tem seus lados positivos e relevantes, mas quando feita de forma tendenciosa e pouco permissiva para debates, pode resultar em pessoas alienadas e moldadas por ideias partidárias, sendo, portanto, necessário que se faça uma diferenciação entre emitir notícia e emitir convicção pessoal.

Já expressamente debatido, cabe ao órgão competente e independente julgar, condenando ou absolvendo. Por mais que opiniões pessoais sejam inevitáveis, continuam a ser pessoais, devido à ideia de serem pensamentos parciais e julgamentos da própria espécie.

Sobre o caso Neymar Jr., uma vez comprovada sua total inocência, seu nome ainda estará vinculado à acusação de estupro em 2019, caso pessoas pesquisem sua história, e ainda haverá quem acredite que ele comprou o silêncio da acusadora, lembrando-nos do direito ao esquecimento e suas proporções. É uma situação comum com famosos, a perda de patrocínio, convites e fãs.

No mais, não podemos deixar que as vítimas de fato sintam desprestígio ao efetuar a delatio criminis desde a recepção da vítima na delegacia até a investigação ser obstinada, uma vez que o crime de estupro não pode ficar impune. Consideramos válida a desglamourização do investigado ou réu, para que o devido processo legal não seja abalado por características pessoais do agente e que não se permitam pensamentos como “onde já se viu famoso cumprir pena por estupro?”.

Mesmo que a jovem acusadora no caso Neymar Jr. venha a ser até acusada de calúnia, não se pode cogitar a possibilidade de sucesso na investigação deste caso apenas por ser tratar de uma pessoa famosa e receber a pressão e curiosidade midiática, afinal, quem julga casos de estupro? Enquanto um caso de estupro vem à mídia, outros tantos passam despercebidos. Ainda estamos presos a Teoria de Newton esperando por um Einstein abrir nossos olhos?

Referências

CAPEZ, Fernando Curso de processo penal. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016

MAGRI, Diogo. Caso Neymar: o que se sabe até agora sobre a acusação de estupro. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/06/04/deportes/1559680414_906378.htm>l. Acessado em: 05/06/2019.

MARQUES, Archimedes. A lei de talião ainda sobrevive para o autor do crime de estupro. Disponível em: <http://www.soleis.com.br/artigos_taliao.pdf>, acessado em 04/06/2019.

MARTINS, Roberto de Andrade. O surgimento da teoria da relatividade restrita. Disponível em: <http://www.ghtc.usp.br/server/pdf/RAM-Relatividade-livro.pdf>, acessado em 03/06/2019.

THE GUARDIAN. Cristiano Ronaldo rape allegation: lawsuit moved to federal court, says lawyer. Disponível em: <https://www.theguardian.com/football/2019/jun/05/cristiano-ronaldo-rape-allegation-state-lawsuit-dropped>. Acessado em: 05/06/2019.

RIBEIRO, Aline. Família de jovem que acusou Neymar de estupro se diz surpresa com caso e denúncia. Disponível em: https://oglobo.globo.com/esportes/familia-de-jovem-que-acusou-neymar-de-estupro-se-diz-surpresa-com-caso-denuncia-23712740 . Acessado em 03/06/2019.

WADE, Elton. De Newton a Einstein: as origens da relatividade geral. Disponível em: <https://medium.com/@eltonwade/de-newton-a-einstein-as-origens-da-relatividade-geral-16baee36b2af>, acessado em 04/06/2019.

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Sobre a autora
Mirela Reis Caldas

Bacharel em Direito pela FICR/Pernambuco, pós-graduada em Direito Tributário Municipal pelo IAJUF. Advogada.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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