Uma análise sobre o Estatuto do Desarmamento e o quadro da violência no Brasil.
Em 2003, 39.325 pessoas morreram vítimas de armas de fogo, o que representa 108 pessoas mortas por dia ou ainda 9 vítimas a cada duas horas.
Fonte: Ministério da Saúde
Segundo a ONU, na década de 90, 3 milhões de pessoas no mundo foram mortas por armas de fogo. Apesar do Brasil representar apenas por 2,8% da população mundial, ele já responde por cerca de 11% dos homicídios praticados com armas de fogo em todo mundo.
Fonte: ONU (UNESCO)
"É necessário tornar rígida a fabricação, o comércio, a aquisição, a posse e o porte de armas de fogo, finalidade da Lei n° 10.826/2003. O simples desarmamento popular, porém, sem uma Polícia preventiva efetiva, é inócuo e pouco contribui para a redução da criminalidade. Se o legislador pretende que ninguém possua armas de fogo, a não ser os titulares de determinadas funções públicas e atividades privadas, é necessário que garanta a segurança pública. É preciso desarmar a população ordeira e, ao mesmo tempo, dotar os órgãos de prevenção de instrumentos hábeis para a proteção dos cidadãos. Desarme-se o povo, mas arme-se a Polícia de meios suficientes para a concretização de sua missão constitucional. Só desarmar a população, sem garantir a sua segurança, é armar o lobo e desarmar o cordeiro".
Damásio de Jesus, professor de Direito Penal.
INTRODUÇÃO
A Lei n° 10.826, aprovada em 22 de dezembro de 2003, pelo Congresso Nacional, surgiu após um longo período de discussões e debates na sociedade, em que foi ficando cada vez mais evidente a insatisfação popular quanto aos rumos da violência no país. O Congresso Nacional, como verdadeira caixa de ressonância do povo brasileiro, onde ecoam seus pleitos e reclamos, não poderia ficar inerte a essa questão.
Era preciso atender à altura aos clamores da população, a grande vítima da violência praticada por armas de fogo no país. Dessa forma, nasceu o Estatuto do Desarmamento, uma lei cujo nome consagra o movimento cívico em direção à construção de uma sociedade mais segura e mais justa, em que os valores da vida e da paz prevaleçam sobre o individualismo e a banalização da violência.
O Estatuto do Desarmamento, hoje regulamentado pelo Decreto n° 5.123/2004 consiste num diploma legal extremamente bem elaborado do ponto de vista técnico, além de possuir uma sistematização bastante racional. Ele propõe um aperfeiçoamento do modelo legal de regulação de armas e munições até então vigente, estabelecendo, progressivamente, três frentes de atuação para o enfrentamento do problema.
Em primeiro lugar, reformulou a estrutura de funcionamento do Sistema Nacional de Armas – SINARM, ampliando suas atribuições, o que representou um importante avanço no sentido de se estabelecer um controle efetivo sobre as armas de fogo fabricadas no país. Com isso, atende ao principal propósito desta lei, qual seja, fiscalizar e rastrear as armas em circulação no país, organizando e disciplinando o comércio armamentista nacional, por meio do cadastro e do registro das armas. Em seguida, o Estatuto se empenha para que a população se envolva e participe do desarmamento, estimulando o exercício da cidadania por meio da campanha do desarmamento, pela qual as pessoas entregam voluntariamente suas armas às autoridades, revelando o espírito democrático da lei. A campanha pelo desarmamento, iniciada em julho de 2004, havia recolhido até o final de setembro de 2005, 466.857 armas (dados da Polícia Federal), superando as previsões iniciais do Ministério da Justiça. Até o prazo final da campanha (23 de outubro), estima-se que será atingido um total de 500.000 armas.
Por fim, o Estatuto do Desarmamento, numa seqüência de fatos que vêm trazendo resultados práticos positivos, haja vista a redução do número de homicídios praticados por armas de fogo desde que se iniciou a campanha do desarmamento, prevê a realização de um referendo popular, dando ao cidadão brasileiro o direito de se manifestar, em caráter definitivo, a respeito desse tema. Afinal, todo o poder emana do povo, como dizia Rousseau, princípio consagrado na Carta Magna de 1988 (art. 1°, parágrafo único).
A consulta popular do dia 23 de outubro de 2005 traz como tema central a necessidade de se proibir ou não o comércio de armas de fogo e munição em todo Brasil. Enquanto soberano, o povo não apenas é o destinatário da norma jurídica em vigor, como também a autoridade máxima para encaminhar essa questão de modo responsável e legítimo, decidindo qual o futuro pretende deixar para as próximas gerações.
O Estatuto do Desarmamento produziu avanços significativos em relação à legislação anterior referente ao assunto, trazendo inovações em relação ao modo de aquisição, ao porte e ao comércio de armas e munições, ao criar inúmeros embaraços e dificuldades ao seu acesso pelos cidadãos comuns. No entanto, os dados da violência no Brasil são tão alarmantes, que o legislador resolveu ousar um pouco mais, propondo a realização de um referendo, o que poderá levar ao desarmamento total da população civil.
Obviamente, o desarmamento civil, por si só, não é suficiente para estancar o grave quadro da violência. Mas há de se constituir numa medida conseqüente de Segurança Pública, se acompanhada de uma série de outras políticas governamentais, igualmente voltadas para combater a dura realidade social na qual o Brasil está imerso.
1. O RETRATO DA VIOLÊNCIA NO BRASIL: DADOS E ESTATÍSTICAS JUSTIFICAM A IMPORTÂNCIA DO DESARMAMENTO
O Brasil pode se tornar, em caso da aprovação do referendo popular do dia 23 de outubro, o primeiro país da América Latina a proibir o comércio legal de armas de fogo. Segundo Jorge Werthein, representante da UNESCO no Brasil, a proibição até agora só foi adotada em países pertencentes ao bloco do primeiro mundo. Ele segue afirmando que a proibição poderá ser extremamente positiva para o Brasil, desde que paralelamente, sejam adotadas políticas de inclusão social, dirigidas especialmente à população mais vulnerável, a que mais morre, que são os jovens da periferia, principalmente pobres e negros na faixa etária dos 15 aos 24 anos de idade.
De fato, o Brasil enquanto um país com uma estrutura social extremamente injusta e concentradora de renda espanta pelos altos índices de criminalidade que ostenta. Entre 1979 e 2003, mais de 550 mil pessoas morreram em decorrência de disparos de arma de fogo. Nesses 24 anos, o número de vítimas cresceu 461,8%, enquanto a população do país, aumentou apenas em 51,8% (dados da UNESCO, Ministério da Justiça e Ministério da Saúde). Apesar de não ter passado por nenhum conflito armado ou mesmo guerra civil nesse intervalo, o Brasil apresenta números e médias de mortes anuais mais elevados que os verificados em conflitos, como Guerra do Iraque (em 2003, constatou-se uma média de 108 óbitos por dia no Brasil, enquanto no Iraque, em pouco mais de dois anos de conflito, a média é de cerca de 35 mortes ao dia) ou a disputa envolvendo judeus e palestinos.
O impacto das estatísticas é ainda maior quando se verifica que a vítima preferencial da violência são os jovens, na faixa dos 15 aos 25 anos de idade. Para o ativista dos direitos humanos, Marcos Rolim, "a violência causada por armas de fogo só não é considerada um escândalo no país porque a maioria das vítimas são jovens, pobres e negros". Para se ter uma idéia, dos cerca dos 550 mil mortos por armas de fogo no período supra citado, 205.722 foram jovens entre 15 e 24 anos, o que significa 44,1% do total.
Considerando que a população jovem responde por 20% do conjunto da sociedade brasileira, conclui-se que, proporcionalmente, morrem a cada ano, mais do dobro de jovens vítimas de armas de fogo que nas demais faixas etárias. Se para o conjunto da população brasileira, as principais causas de morte são provocadas por doenças do coração e cerebrovasculares, entre os jovens, as armas de fogo são a causa primeira de mortalidade, numa proporção muito superior que a segunda maior causa de mortalidade juvenil, representada pelas mortes por acidente de trânsito. Dos cerca de 80.000 jovens entre 10 e 29 anos mortos em 2003, cerca de 30% foram alvejados por disparos de armas de fogo, enquanto pouco mais de 16% sofreram acidentes fatais no trânsito (ver Tabela completa em anexo).
Vive-se, atualmente, num mundo dominado pelo sistema e modo de produção capitalista. A cultura da violência está difundida por toda parte, na produção de filmes e jogos eletrônicos que estimulam o individualismo e a violência como meios de saída para a felicidade e bem-estar pessoal. Os Estados Unidos, como grande pólo difusor da cultura de massa em escala global, contribui decisivamente para a moldagem dessa cultura do medo e da insegurança. Filmes como "Tiros em Columbine" dirigido pelo cineasta Michael Moore mostram com verossimilhança a exata dimensão do problema da violência juvenil praticada na sociedade norte-americana. Um estímulo que vem do próprio modelo político adotado internamente naquele país, que conta com uma legislação sobre armas extremamente permissiva, e onde o governo oficial investe, anualmente, fortunas de dólares na indústria bélica, ávida por provocar conflitos armados ao redor do mundo que justifiquem seus gastos.
Um levantamento feito pela UNESCO, entre 2001 e 2003, em 57 países revelou que o Brasil ocupa a segunda colocação entre aqueles onde mais se mata por arma de fogo: são 19,54 mortos por grupo de 100 mil habitantes. O resultado só é melhor que o apresentado na Venezuela, líder, com taxa de 21,72 óbitos por cada 100.000 habitantes. A vizinha Argentina apresenta uma taxa de óbitos bem mais modesta, de apenas 4,34 mortos por 100 mil habitantes.
Por seu turno, os EUA aparecem na oitava posição do ranking dos mais violentos do mundo, segundo dados da mesma pesquisa. Com uma legislação de controle de armas bastante liberal, os EUA são hoje a nação mais violenta do chamado mundo desenvolvido. Entre os 36 países com o maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) no mundo, ostenta a liderança das maiores taxas de mortalidade por arma de fogo. Existem 192 milhões de armas em circulação no país, o que corresponde a uma arma para cada adulto.
O comércio mundial de armas representa um mercado fabuloso e altamente lucrativo. A indústria do armamento é responsável por negócios que movimentam trilhões de dólares por ano, em todo o mundo. Em seu recém lançado livro "Desarmamento – evidências científicas", Marcos Rolim se fixou em dados dos mais respeitáveis institutos de pesquisa do Brasil e do mundo para apontar que existem atualmente, ao redor do planeta, cerca de 639 milhões de armas de pequeno porte, produzidas por mais de 1.200 empresas credenciadas de pelo menos 98 nacionalidades diferentes. A produção média é de oito milhões de armas fabricadas ao ano, a grande parte destinada às exportações. Obviamente nem toda a produção é vendida, parte fica estocada nas empresas. Mas uma estatística impressiona: quase 60% das armas de pequeno porte estão nas mãos de civis.
No Brasil, segundo o ISER (Instituto Superior dos Estudos da Religião) há cerca de 17,5 milhões de armas de pequeno porte em circulação (ISER – Small Arms Survey, 2005), das quais cerca de 15 milhões (quase 90%) estão nas mãos de civis, na esmagadora maioria dos casos, despreparados para o seu correto manuseio. Somente 10% desse arsenal pertence ao Estado (Forças Armadas e órgãos de repressão policial).
Não há dúvidas de que o lobby das armas de fogo irá se opor ao projeto de desarmamento. A perda de parcela significativa de compradores de armas, que aumentava a cada ano antes da entrada em vigência do Estatuto do Desarmamento, irá levar a uma diminuição dos lucros das empresas fabricantes de armamentos, prejudicando seus negócios. Em contrapartida, o arsenal bélico do crime organizado tenderá a reduzir, visto que se alimenta potencialmente das armas fabricadas legalmente por empresas autorizadas.
De modo que a campanha do desarmamento, iniciada em 2004 e que é fruto de um esforço coletivo para estabelecer um controle rigoroso sobre armas no Brasil, vêm apresentando resultados positivos, que se fazem sentidos em todo o país. Não apenas reduziu o número de pessoas que adquiriram armas nesse período, devido aos constrangimentos legais estipulados no Estatuto, como, pela primeira vez, nos últimos 12 anos, confirmou-se uma redução do número de vítimas por armas de fogo.
Em 2003, foram 39.325 pessoas mortas por armas, uma média de 108 mortes por dia, ou ainda, 9 pessoas a cada duas horas. Já em 2004, após o início da campanha de entrega das armas, esse índice caiu para 36.091 mortes, uma variação negativa de 3.234 mortes. Desde 1992 que a curva de óbitos se apresentava ascendente (ver Figura em anexo) e, caso não houvesse a campanha de desarmamento, esse números teria ultrapassado as 40.000 mortes em 2004, donde se conclui que mais de 5.000 vidas foram poupadas naquele ano. Uma constatação empírica de que o Estatuto do Desarmamento está no rumo certo.
1.1. Os custos da violência no Brasil (o preço do medo)
Um estudo feito pelo economista Ib Teixeira, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV), revela a impressionante soma de gastos na área de segurança, tanto por parte do Estado quanto por parte de grupos privados. Por exemplo, os gastos com segurança somaram, em 2002, 56 vezes o que o governo gastou naquele ano no programa de combate à fome. São 5 vezes o orçamento do Ministério da Educação e 4 vezes o que todas as famílias brasileiras investem anualmente em planos de saúde, ou ainda 46 vezes o que os brasileiros gastam com livros. Ou, para espanto geral, uma soma igual ao patrimônio líquido de todos os Bancos do país!
Em 2002, os governos federal e estadual, juntos, investiram R$ 47 bilhões em programas de Segurança Pública. Enquanto isso, empresas de segurança privada e cidadãos comuns desembolsaram, nesse período, o equivalente a R$ 55 bilhões, na contratação de guardas particulares e na compra de armas e equipamentos, que variam desde câmeras de vigilância até carros blindados. A soma desses dois valores – fartos R$ 102 bilhões – foi igual ao patrimônio líquido de todos os bancos que operavam no país em 2002, uma cifra correspondente a 10% do PIB (Produto Interno Bruto) nacional.
Em 1997, os custos com a segurança eram bem inferiores, não somente em termos absolutos, mas em proporção – cerca de 5% do PIB. A explosão foi financiada principalmente pela classe média, cada dia mais assustada com assaltos e seqüestros. No intervalo de cinco anos, a soma dos gastos de pessoas físicas e empresas cresceu 130%.
Os gastos particulares com segurança cresceram num ritmo bem maior que os recursos destinados pelos Orçamentos da União e dos Estados à área de Segurança Pública. Em 1997, os gastos privados foram da ordem de R$ 24 bilhões, enquanto os públicos atingiram R$ 30 bilhões. Cinco anos após, em 2002, os gastos privados superaram os públicos em R$ 8 bilhões (55 x 47). Isso retrata o Brasil como uma sociedade dominada pelo medo, onde a ineficiência dos órgãos de Segurança Pública e o descaso das autoridades levam as pessoas cada vez mais a tentarem suprir a ausência do Estado com recursos próprios.
Ocorre que o enfrentamento de uma questão dessa magnitude passa necessariamente por decisões de cunho político. É ilusório o pensamento daqueles que acham que a arma pode se constituir num instrumento eficiente para lutar contra o bandido. Não é. Antes, a população civil armada representa muito mais um risco que uma proteção contra a violência alheia. Esquecem os defensores do armamento que a grande arma a favor do bandido é o fator surpresa, em situações nas quais ele nada tem a perder, enquanto que o cidadão mesmo armado, porém, quase sempre despreparado, acaba ficando sem reação ou quando reage, mais tem chances de morrer que desarmar o bandido. Pesquisas realizadas pelo ISER (1998) e pelo FBI (2001), a polícia federal norte-americana, apontam que, num assalto ou tentativa de roubo armado, uma pessoa que possui arma de fogo e reage tem 185 vezes mais chances de morrer que uma pessoa desarmada, que na mesma circunstância não reagiria. Já a chance de ferimentos é 57 vezes maior na mesma situação.
Num país onde grande parcela da população percebe baixíssimos salários, o mercado de segurança privada só funciona para atender às necessidades dos ricos e parte da classe média. Ainda assim, não é capaz de alterar o quadro estrutural em que se situa a violência social. As empresas de segurança privada ocupam um ramo de atividade altamente lucrativo no mercado atual, e se valem exatamente da precária situação da Segurança Pública para expandirem seus negócios e aumentarem a clientela.
Veja alguns exemplos:
- O presidente de uma empresa estrangeira especializada em negociação de seqüestros calcula, que, para ficar seguro em São Paulo é preciso gastar US$ 1 milhão de dólares em equipamentos de segurança;
- Existem, hoje, no Brasil, 60 empresas operando no mercado de blindagem de carros, fortificando em torno de 4.000 automóveis por ano, colocando o país na liderança mundial nesse setor. A frota nacional de carros blindados ultrapassa os 20 mil veículos. Um modelo que, em 1996, custaria 45 mil dólares, hoje (entre 2002 e 2004) sai por 25 mil dólares;
- As vendas de colete à prova de bala discretos cresceram 500% entre 1997 e 2003, mesmo com a exigência de autorização pela Polícia Federal;
- Uma pesquisa feita pela Associação Brasileira dos Shoppings Centers mostrou que as despesas com segurança gira em torno de 30% do gasto fixo dos lojistas.
Diferentemente da economia real, sempre sujeita às instabilidades que afetam o mercado financeiro global, a economia do medo parece estar imune à crise; cresceu 55% em dois anos (entre 2000 e 2002).
No entanto, engana-se quem pensa que esses números possam indicar uma melhoria da segurança da população. Primeiro porque se trata de uma modalidade de segurança que pode ser arcada apenas pelas mais altas camadas sociais. Em segundo lugar, ao concorrer com o Estado, titular e grande responsável pela implementação de políticas de Segurança Pública, isso leva a um distanciamento da principal causa geradora da violência no Brasil, qual seja, a criminosa concentração de renda. Assim, os cidadãos são induzidos a adotarem uma opção individualista, comprando armas que supõe irão preservá-los da bandidagem. Ledo engano; as fábricas de armas de fogo agradecem, enquanto a população paranóica com a onda da violência que consome o país fica a ver navios.
2. O ESTATUTO DO DESARMAMENTO EM ANÁLISE
A nova legislação sobre armas de fogo e munições - a Lei n° 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento), teve seu nascedouro no Ministério da Justiça, tendo depois tramitado por uma Comissão Especial Mista do Congresso Nacional, sempre sob a égide do consenso. A proposta inicial encaminhada pelo Executivo surgiu a partir da elaboração de um Plano Nacional de Segurança Pública, que entre outros aspectos abordava a necessidade de se estabelecer um controle de armas mais eficaz no país.
O princípio-mor ou diretriz originária do projeto pode ser detectado nas palavras do próprio Presidente da República, que assim se reportou na solenidade oficial que marcou a entrada em vigor da nova lei:
"A paz é o ponto de partida e de chegada. É a linha demarcatória de qualquer sociedade. É preciso dar à paz o seu verdadeiro nome: justiça social".
As palavras de Lula, ao reafirmar a paz como prerrogativa social indicam o verdadeiro sentido do Estatuto do Desarmamento. Clara também ficou a mens legislatoris (o espírito do legislador), quanto ao desejo da pacificação social.
Mas, importante perceber é que a Lei n° 10.826/03 não foi fruto de um casuísmo ou de uma crise de momento inspirada por ares demagógicos de meia dúzia de parlamentares. Inversamente, resultou dos reclamos das últimas décadas, em paralelo à ascensão da violência e do crime organizado.
Ela trouxe importantes inovações em relação à Lei n° 9.437/97, por ela revogada, conforme expresso pelo art. 36 do novo regulamento. Entre outras alterações, a nova legislação ampliou as atribuições do Sistema Nacional de Armas – SINARM, reforçando o controle sobre armas e munições em todo o país. Além disso, aumentou consideravelmente os constrangimentos legais e burocráticos para a aquisição e o porte de armas de fogo, definiu novos crimes e, por fim, estabeleceu uma regulação mais rigorosa para o comércio legal de armas, por meio da proposta do referendo.
2.1. O Sistema Nacional de Armas – SINARM
O SINARM foi instituído pela Lei n° 9.437/97, a qual se encontra, hoje, revogada pelo Estatuto do Desarmamento. Trata-se de um órgão vinculado ao Ministério da Justiça, com atuação no âmbito da Polícia Federal e que possui circunscrição em todo o território nacional. No entanto, foi com a chegada da nova legislação, em 2003, que ele adquiriu o status de instrumento efetivo de controle e disciplina de armas e munições comercializadas, vez que agora a sua atuação incide diretamente sobre o direito subjetivo do cidadão, de decidir se deseja ou não adquirir uma arma de fogo.
A atribuição principal do SINARM é expedir autorização para a compra da arma de fogo. Esse tipo de controle se tornou mais denso após a entrada em vigor da Lei n° 10.826/03. Enquanto a legislação anterior era omissa quanto os requisitos que o cidadão deveria preencher para comprar uma arma, o novo Estatuto prevê, em seu art. 4° (no mesmo sentido, o art. 12 do Decreto n° 5.123/04 que regulamentou a Lei n° 10.826/03), uma série de exigências a serem preenchidas pelos cidadãos se quiser adquirir armas e munições.
Antes era fácil obter registro de arma de fogo. Bastava uma autorização do SINARM, que não exigia critérios rigorosos para a sua concessão. A Lei n° 9.437/97 era bastante facilitadora nesse aspecto, sendo permissiva com os compradores de armas. Com a entrada em vigor do Estatuto do Desarmamento, foram estabelecidas duas formas de controle: uma a priori, prévia à autorização para compra de arma, e outra a posteriori, como forma de assegurar que o possuidor da arma mantém plenas condições de continuar fazendo uso dela de modo responsável e seguro.
O registro de armas de fogo também se tornou obrigatório em todo o país. É o que determina o art. 3° da Lei. Esse registro ficará a cargo da Polícia Federal, quando se tratar de armas de uso permitido, e do Comando do Exército para as armas de uso proibido ou restrito (parágrafo único do art. 3°). A expedição do certificado de registro de arma de fogo, entretanto, será precedida de autorização do SINARM (art. 5, § 2°).
Esta autorização depende do atendimento de uma série de exigências legais e burocráticas. Para uma arma de uso permitido, que é aquela ao alcance do cidadão comum, deverá a pessoa declarar e comprovar ao órgão responsável, a efetiva necessidade de ter uma arma. Mas não basta só isso: deverá comprovar idoneidade, através de certidões de antecedentes criminais, a serem fornecidas pelas Justiças Federal, Estadual, Militar e Eleitoral. Também não poderá estar respondendo a inquérito policial, nem a processo criminal.
Ademais, o interessado em adquirir arma terá que juntar ao requerimento de pedido de compra de arma, cópia autenticada do documento de identidade (RG), além de ter idade mínima de 25 anos. Pela antiga lei, o mínimo legal permitido para comprar uma arma era 21 anos. Esse aumento se justifica em face das estatísticas divulgadas pelo Ministério da Saúde, mostrando serem os jovens entre 15 e 24 anos as maiores vítimas das balas fatais. Exige-se também documento comprobatório de ocupação lícita e de residência certa. Tudo isso para se certificar que o comprador está em dia com o Fisco, com suas obrigações legais e, portanto, não mantém nenhum vínculo com a criminalidade.
Por fim, para adquirir uma arma é preciso a comprovação da capacidade técnica e da aptidão psicológica para o seu correto manuseio. O primeiro requisito deve ser atestado por empresa de instrução de tiro registrada no Comando do Exército, por meio de instrutor de armamento e tiro das Forças Armadas ou do quadro da Polícia Federal, nos termos do inc. VI, art. 12 do Decreto n° 5.123/04. Por sua vez, o inc. VII do mesmo dispositivo legal afirma que a aptidão psicológica deve ser atestada em laudo conclusivo, fornecido por psicólogo do quadro da Polícia Federal, ou por esta credenciado.
Reza o § 6° do art. 4° do Estatuto do Desarmamento que o SINARM deverá, dentro do prazo de 30 dias, a contar da data do requerimento do interessado, analisar toda a documentação e decidir o processo de autorização, concedendo-a ou recusando-a, sempre de modo fundamentado. A autorização é personalíssima, sendo concedida em nome pessoal do requerente e para a arma indicada, sendo, portanto, intransferível. De igual modo, só poderá ser comprada munição específica e compatível com o tipo de calibre da arma e em quantidade previamente estabelecida pelo regulamento da Lei.
Somente após a autorização do SINARM é que a Polícia Federal, encarregada do registro, poderá expedir o Certificado de Registro de Arma de Fogo, documento obrigatório para todos que vierem a possuir uma arma, visto que com o advento da lei o registro se tornou impositivo.
O registro não se confunde com o porte, que será analisado mais adiante. Ele tem validade em todo território nacional, porém, apenas autoriza o proprietário a manter a arma de fogo exclusivamente no interior de sua residência ou domicílio, ou ainda, dentro do seu local de trabalho, desde que o mesmo seja o titular ou o responsável legal pelo estabelecimento ou empresa (Vide art. 5° caput).
A nova legislação também estabeleceu uma forma de controle a posteriori sobre os possuidores de armas e munições. Exige-se que, periodicamente, por prazo não inferior a 3 (três) anos, os donos de armamentos comprovem novamente os requisitos que os autorizaram a comprarem armas e obterem o registro das mesmas. Assim, o legislador atuou no sentido de dificultar ao máximo a permanência de armas nas mãos da população civil. Inclusive instituindo mecanismos burocráticos, a exemplo da cobrança de taxas para a renovação do registro (R$ 300,00 – vide Anexo da Lei) da arma de fogo, o que pela legislação anterior era gratuito.
O art. 2° da nova lei expõe a competência do SINARM. Por meio de um sistema de cadastro de armas e munições bastante detalhado, torna-se possível rastrear a trajetória de determinada arma de fogo, desde a sua origem, onde ela foi comprada, até em casos em que ela foi roubada ou apreendida pela polícia.
Nesse aspecto, a Lei n° 10.826/03 inovou em relação à anterior, acrescentando cinco novos incisos ao art. 2°. Entre as mudanças, estão a que determina o cadastramento de todas as autorizações de porte de arma de fogo e das renovações expedidas pela Polícia Federal, além da obrigatoriedade de informar às Secretarias de Segurança Pública dos Estados e do Distrito Federal os registros e as autorizações de porte de armas de fogo nos respectivos territórios, bem como manter o cadastro sempre atualizado para consulta.
Ao lado do SIGMA (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas) – responsável pelo cadastro das armas de uso restrito, utilizadas pelas Forças Armadas – o SINARM irá estabelecer uma integração dos cadastros de ambas unidades, criando assim, uma rede de base de dados, que representa um aperfeiçoamento na forma de controlar a vida da arma de fogo: desde o momento em que é produzida ou importada, se foi destinada às forças de segurança ou se foi posta à venda no varejo, para quem foi vendida e se o comprador dela mantém seu registro atualizado.
Portanto, toda vez que uma arma ilegal for apreendida, o SINARM e a Polícia Federal serão capazes de rastrear o momento em que esta arma saiu da legalidade e, a partir daí, iniciar as investigações para apurar eventuais responsabilidades pelo desvio.
2.2. O porte de arma de fogo
O porte constitui, ao lado da proposta de proibição do comércio de armas de fogo e munições, a mais expressiva contribuição trazida pela Lei n° 10.826/03, que lhe faz merecer a adjetivação "Desarmamento". O porte consiste num documento, expedido pela Polícia Federal, de uso obrigatório por todos aqueles que estão autorizados a terem armas e que pretendem conduzi-la para locais externos à sua residência ou local de trabalho.
Com o advento do Estatuto, o porte se tornou, em regra, proibido em todo o território nacional, conforme dispõe o art. 6°. Somente para os casos expressamente previstos está autorizada a expedição do porte. Trata-se de limitar ao máximo o universo de pessoas e / ou entidades com legitimidade para portar uma arma.
Assim, somente as entidades responsáveis pela Defesa Nacional e pela promoção da Segurança Pública poderão, em regra, receber o porte de arma. Isto compreende: os membros efetivos das Forças Armadas, integrantes dos órgãos de repressão policial (Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícia Civil dos Estados, Polícias Militares e Corpo de Bombeiros Militares), integrantes das Guardas Municipais, agentes operacionais da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), agentes responsáveis pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, polícia dos órgãos legislativos e agentes e guardas prisionais, além das guardas portuárias.
Além destes, os empregados de vigilância contratados por empresas de segurança privada e de transporte de valores legalmente constituídas, poderão portar armas de fogo quando estiverem em serviço. Segundo dispõe o art. 7° caput do Estatuto, as armas utilizadas por esses agentes de vigilância serão de propriedade e guarda das empresas privadas, que responderão integralmente por qualquer ato praticado, em serviço, pelos seus empregados.
Por fim, terão direito ao porte os praticantes da modalidade esportiva "tiro", que tenham vinculação com entidades do respectivo desporto legalmente constituídas, devendo para tanto, observarem, no que couber, a legislação ambiental. Já os residentes em áreas rurais, que comprovadamente demonstrarem depender de arma de fogo para prover a sua subsistência alimentar, bem como a de sua família, serão autorizados a terem o porte, recebendo-o na categoria "caçador" – vide § 5°, art. 6°.
Mas, não só na rigorosa proibição do porte inovou a lei. Além de ter que demonstrar real e efetiva necessidade de andar armado, em razão do exercício da atividade profissional de risco ou de ameaça à integridade física, o cidadão terá que comprovadamente preencher todos os requisitos do art. 4°, que são os mesmos que são precisos para comprar uma arma e também deverá apresentar documentação de propriedade de arma de fogo em seu nome pessoal, bem como o seu registro no órgão competente.
O porte passou a ser intransferível e revogável a qualquer tempo, inclusive podendo ser cassado caso o portador da arma seja detido ou abordado em estado de embriaguez ou sob efeito de substâncias químicas ou alucinógenas, também ocorrendo nessas hipóteses, a apreensão da arma. Foi instituído também o porte por prazo pré-estabelecido, com eficácia temporária e territorial limitada, nos termos de atos regulamentares, conforme preceitua os artigos 10, § 1° da Lei n° 10.826/03 e 23, do Decreto n° 5.123/04.
Com isso, a lei ampliou os constrangimentos legais e burocráticos para as pessoas que um dia pretenderam ou ainda pretendem adquirir armas. Com o porte limitado no tempo e no espaço, muitos possuidores de armas serão desestimulados a requererem a renovação ou a expedição da segunda via do porte. Sobre elas passou a incidir uma taxa de R$ 1.000,00 a partir da aprovação do Estatuto, valor superior ao cobrado pela legislação revogada, que era de R$ 650,00 (vide Anexos das duas leis).
Cumpre destacar também o endurecimento da nova lei quanto ao porte ilegal de armas de fogo. Antes de 1997, o porte ilegal era classificado como mera contravenção, passando a partir da Lei n° 9.437/97 a constituir crime de menor potencial ofensivo, apenado com detenção de 1 a 2 anos e multa (V. art. 10 da Lei revogada). Com a entrada em vigor do Estatuto do Desarmamento, a partir de dezembro de 2003, ele foi elevado à categoria de crime inafiançável, salvo para os possuidores de armas de uso permitido, cujo registro constar em seu nome. A pena no caso será de reclusão de 2 a 4 anos, além de multa, nos termos do art. 14 e parágrafo único.
Já para os casos de porte ilegal de armas de uso restrito, o crime, além de inafiançável será insusceptível de concessão de liberdade provisória ao réu (V. art 16 c/c art. 21). A pena para esse e outros delitos listados no art. 16 será de 3 a 6 anos de reclusão, mais multa.
2.3. Dos crimes e das penas
O Estatuto do Desarmamento representou significativo avanço em matéria criminal, ao estabelecer novos crimes e ampliar o rigor da punição para alguns delitos previstos anteriormente. Ao todo, estão previstos sete tipos penais, organizados de modo sistemático ao longo dos arts. 12 a 21. Preocupou-se em combater a ilegalidade que gira em torno das três principais questões envolvendo a arma de fogo: a posse (aquisição), o porte e a comercialização.
Possuir arma de fogo de uso permitido de forma irregular, ou seja, sem registro implica em detenção de 1 a 3 anos, afora multa. Portanto, constitui crime ter em casa ou no local de trabalho (desde que seja o titular ou responsável legal pelo estabelecimento ou empresa) uma arma sem registro; o novo controle de armas tornou-o obrigatório. Nos termos do art. 13, incide no crime de omissão de cautela quem deixar de observar os cuidados necessários para impedir que um menor de 18 anos ou um portador de deficiência mental se apodere de arma de fogo da sua posse ou propriedade.
O porte ilegal de armas, sejam estas de uso permitido ou proibido, passou à condição de crime inafiançável (exceção do parágrafo único do art. 14), conforme já exposto anteriormente. No caso das armas de uso restrito, o porte e a posse ilegais ainda serão insusceptíveis de liberdade provisória, não podendo o acusado responder o processo em liberdade.
O crime de disparo de arma de fogo foi alçado à condição de tipo penal autônomo, nos termos do art. 15 do Estatuto. Quem disparar arma de fogo ou munição em lugar habitado ou em suas adjacências, independentemente de ter ou não a intenção de ferir ou matar alguém responderá a processo criminal, podendo pegar de 2 a 4 anos de reclusão, além de multa. Assim como o porte ilegal trata-se de um crime inafiançável.
Atendendo aos rigores de uma lei que tem como foco central promover o desarmamento social, o legislador resolveu endurecer no cerco contra o comércio ilegal e o tráfico internacional de armas. Antes enquadradas de forma genérica, respectivamente como contrabando e descaminho, essas condutas mereceram do legislador um tratamento mais específico, o que poderá ajudar a reduzir a impunidade nesse negócio hiper dinâmico representado pelo comércio clandestino de compra e venda de armas.
Tanto a venda, a compra, o aluguel, enfim qualquer exercício de atividade comercial ou industrial relacionada a armas, munições e acessórios, bem como a sua importação ou exportação dependerão de autorização por parte das autoridades competentes. A fiscalização será da iniciativa do Executivo, por meio da atuação do Ministério da Justiça, com as colaborações e auxílios do Exército e da Polícia Federal. A pena para quem traficar armas ou praticar o comércio ilegal será de 4 a 8 anos de reclusão, além de multa, podendo, entretanto, a pena ser aumentada da metade caso a arma ou munição envolvida for de uso proibido ou restrito, nos termos do art. 19. Também serão inafiançáveis e insusceptíveis de liberdade provisória.
Por fim, se o crime for cometido pelos responsáveis legais por garantir a paz e a segurança pública, a exemplo dos integrantes dos órgãos militares e policiais, bem como por profissionais de empresas de segurança privada e praticantes desportivos profissionais, a pena será aumentada da metade, exceto para os crimes de posse irregular de arma de uso permitido (art. 12) e de omissão de cautela (art. 13).
2.4. A proibição do comércio de armas de fogo
Reza o art. 35 da Lei n° 10.826/03, bem assim como seu § 1°, in verbis:
Art. 35 É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6° desta Lei.
§ 1° Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005.
Antes de qualquer coisa, cumpre fazer um esclarecimento a respeito da medida proposta no artigo supra transcrito e que tem gerado muita polêmica entre as pessoas. Há muitas informações e reportagens distorcidas veiculadas pelos meios de comunicação que tem levado à confusão parcela significativa da opinião pública nacional. É preciso alertar aos que não conhecem a Lei que o que se pretende decidir por meio do referendo é a proibição do comércio legal interno de armas de fogo e munições. O foco do Estatuto do Desarmamento é exatamente desarmar a população civil brasileira, ou seja, os cidadãos comuns, que não integram os quadros dos órgãos e entidades enunciadas no art. 6°.
Mas não está correto afirmar que o comércio de armas irá acabar e que as indústrias armamentistas que operam no país irão fechar suas portas ou ter que se instalar em outros países. Elas apenas terão uma atuação mais restrita no mercado nacional de armas, haja vista que só poderão comercializar com as pessoas e entidades previstas no art. 6° da Lei, que são os mesmos com autorização para o porte de arma, além dos poucos civis que poderão ter o porte aprovado pela Polícia Federal, caso comprovem a efetiva necessidade do seu uso para afastar risco de vida em razão da profissão que exercem.
Quanto às demais pessoas, que não se enquadrarem em nenhuma das hipóteses acima descritas, estas não mais poderão obter autorização para adquirirem armas de fogo ou munições. Aqueles que já possuíam armas em casa antes da vigência da lei poderão seguir dois caminhos. Podem voluntariamente entregar suas armas à Polícia Federal e se a arma estiver registrada e for apresentado nota fiscal ou recibo de compra terão direito a uma indenização (art. 31). Os que possuem arma sem registro também poderão perceber indenização, desde que comprovem terem-na recebido de boa fé (art. 32). A outra opção que essas pessoas têm é ficarem com a arma, sem, entretanto, terem direito ao porte. Os que acaso o possuíam, terá ele automaticamente extinto. Terão direito apenas à posse da arma, devendo mantê-la única e exclusivamente no interior de suas casas e domicílios, ou locais de trabalho, quando titulares do estabelecimento ou empresa. Para tanto, deverão efetuar o registro da arma, sob pena de apreensão das mesmas.
Portanto, o fim da comercialização de armas de fogo e munições significará um desarmamento total do cidadão comum. Ele poderá, contudo, ter acesso a outros produtos que são fabricados pelas empresas do setor armamentista, dentre os quais, coletes à prova de balas, ferramentas de mão, facas e outros equipamentos que não envolvam pólvora ou munição.
Independente de qual venha a ser o resultado final do referendo do dia 23 de outubro, uma coisa é certa. A população brasileira está em grande parte empenhada em aderir ao desarmamento sugerido pelo Estado. Desde o início da campanha de entrega voluntária de armas, em julho de 2004, quase 500.000 armas já foram devolvidas, o que denota o interesse da coletividade em colaborar com a lei. O governo poderia ter simplesmente exigido a devolução imediata, coagindo a população a devolvê-las, sob pena de sofrer sanções. Mas preferiu apostar na via democrática e acreditar na cidadania para fazer valerem os direitos da população. Ao conhecer a lei, ela vai decidir de modo consciente se quer ou não que a sociedade permaneça no direito de se armar.
Até o presente momento, continua valendo o direito do cidadão comum adquirir armas de fogo, se atendidos todos os requisitos constantes do Estatuto do Desarmamento. O Decreto regulamentador da Lei, entretanto, introduziu algumas restrições importantes, disciplinando esse comércio. Por exemplo, determinou a proibição total de vendas de armas, munições e produtos controlados, de uso restrito, no comércio comum. Já quanto às armas de uso permitido, obrigou todos os estabelecimentos a comunicarem ao SINARM, mensalmente, as vendas efetuadas e a quantidade de armas em estoque, devendo responder legalmente por estas últimas mercadorias, que ficarão registradas como de sua propriedade, de forma precária, enquanto não forem vendidas.
Opositores do desarmamento alegam que o fim do comércio irá provocar conseqüências negativas para a economia nacional. Dizem que a proibição levará ao fechamento de muitas empresas e fabricantes e, com isso, haverá uma desaceleração do crescimento econômico, acarretando a extinção de muitos postos de trabalho e uma redução maciça dos investimentos estrangeiros no país.
Essa crítica, entretanto, não pode ser tomada como verdadeira. Em primeiro lugar porque as fabricantes de armas não estão entre os setores da indústria que mais empregam trabalhadores com carteira assinada. Apesar de ser um mercado altamente lucrativo, não gastam muitos recursos na contratação de mão de obra, em comparação com outros segmentos. Em segundo lugar e, principalmente, porque a maior parte do lucro das empresas de armas é oriunda das exportações do produto, que constituem o grande filão desse tipo de comércio. De modo que, o mercado interno não sofrerá grandes prejuízos como muitos vêm alardeando. As constatações foram feitas pelo Sistema de Controle Fabril do Comando do Exército.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o valor das vendas de arma de fogo no país, em 2003, alcançou a cifra de R$ 344 milhões. Esse foi o movimento financeiro no mercado interno. Apesar de alto, os principais lucros alcançados pelas fabricantes advém das exportações. Relatório anual sobre transferência de armas divulgado em agosto de 2005 pelo Departamento de Pesquisa do Congresso norte-americano revelou que os dez maiores exportadores de armas do mundo venderam o correspondente a US$ 22 bilhões, em 2004. Esse mercado é dominado pelos EUA e pela Rússia, mas, surpreendentemente, o Brasil já ocupa o nono lugar em exportações de armas, a maioria das quais têm como destino preferencial países em desenvolvimento, como é o caso da Índia. Só em 2004, o Brasil lucrou mais de US$ 300 milhões em venda de armamentos, um lucro bem superior ao obtido no mercado interno.
Segundo o Controle Fabril do Comando do Exército, há, atualmente, no país cinco fábricas de armas e munições – Forjas Taurus, Rossi, Imbel, Boito e a Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC). Todas são unânimes em garantir que a grande parte dos faturamentos anuais obtidos com a comercialização de armas são oriundos do mercado de exportações. A Taurus, por exemplo, considerada a maior do segmento bélico no país, revelou ter tido um faturamento líquido de aproximadamente R$ 165 milhões no ano passado, 70% fruto das exportações. Já a CBC informou que, atualmente, exporta equipamentos para 57 países. A sua receita bruta, em 2004, foi da ordem de R$ 223 milhões, 50% advindos das exportações, 35% de aquisições de armas por instituições policiais e militares brasileiras (que continuarão tendo o direito de comprar, mesmo após o fim da comercialização) e apenas 15% destinaram-se ao mercado civil.
Outro argumento que transita em favor dos que defendem o fim do comércio de armas de fogo e munição está intimamente relacionado ao narcotráfico e ao crime organizado. Estudos indicam que o mercado legal de armas abastece o ilegal. No Rio de Janeiro, observou-se que 80% das armas apreendidas pela Polícia Civil, entre 1993 e 2003, eram de curto calibre – armas adquiridas na maioria por civis, em lojas autorizadas pelo governo. Destas, 30% tinham o registro legal. Já em São Paulo, uma pesquisa encomendada pela Secretaria de Segurança Pública do estado confirmou que armas adquiridas licitamente pela população civil correm sérios riscos de cair nas mãos da marginalidade. Constatou-se que, de 1993 a 2000, 100.146 armas apreendidas do crime haviam sido roubadas, furtadas ou teriam sido perdidas (média de 14.306 por ano). A conclusão é simples: bandido não compra arma em loja, mas é a arma comprada em loja que vai parar nas mãos dos criminosos.
Uma outra pesquisa ainda mais recente foi realizada pelo Programa Delegacia Legal, que, desde 1999, reúne um banco de dados que concentra informações de 85 delegacias legais existentes no estado do Rio de Janeiro. Foi feito um raio X das armas apreendidas e usadas em homicídios e latrocínios. Com relação aos primeiros revelou que 39% das armas eram registradas, 42% provenientes do contrabando e 19% não possuíam registro algum; já em relação aos latrocínios, verificou-se que 50% foram cometidos com armas registradas, outros 35% com armamento contrabandeado e apenas 15% por meio de armas sem registro.
Portanto, as mortes por armas de fogo não têm como causa apenas os homicídios cometidos pelos bandidos ou associados ao tráfico. Mas o crime se alimenta justamente da arma comprada pelo "cidadão de bem" - que supostamente a compra para sua proteção pessoal - para ampliar seu arsenal bélico e assim perpetuar suas ações, causando medo e descontrole na sociedade e no aparelho de segurança estatal.