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Patrimônio de afetação na recuperação judicial e na falência

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18/06/2019 às 19:15
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4. O PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

Se o cenário do patrimônio de afetação na falência parece bastante claro, o mesmo não se pode dizer na recuperação judicial.

Pelo contrário. Podemos começar afirmando que há uma lacuna legislativa neste tocante. É que patrimônio de afetação é tratado na Lei 11.101 de 2005 pelo art. 119, IX (transcrito acima), que está inserto no Capítulo V da Lei, Capítulo este que trata exclusivamente “DA FALÊNCIA”.

Não há uma palavra sequer sobre patrimônio de afetação em disposições atinentes à recuperação da empresa (extra e judicial).

Assim sendo, muitas dúvidas surgem diante da evidente omissão legislativa. A questão essencial que se coloca é se os credores do patrimônio afetado estão sujeitos aos efeitos da recuperação, bem como se a recuperanda poderá negociar esta parte de seu patrimônio na seara recuperacional.

Como já tivemos a oportunidade de analisar, uma das principais características do patrimônio de afetação é ser incomunicável. Na letra da Lei, “O patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva”[21].

Trazer os credores do patrimônio afetado para o universo da recuperação significa, necessariamente, desconsiderar a regra da incomunicabilidade.

Por outro lado, é apenas no capítulo da falência que a Lei 11.101 dispõe que patrimônio de afetação continua a ser tratado por lei especial. Poder-se-ia sustentar, então, que a lei especial não incide na parte da recuperação. Além disso, sabemos que as hipóteses de não-sujeição são taxativas e, de fato, elas não contemplam os credores de patrimônio afetado.

Contudo, vale lembrar que a ratio da criação do patrimônio de afetação é trazer segurança aos adquirentes e ao mercado, limitando o risco àquela unidade produtiva. Que garantia será essa se, em uma das hipóteses clássicas de insolvência – a RJ – ela não subsiste?

A questão foi enfrentada recentemente na recuperação judicial do Grupo Viver[22]. Na hipótese, Sheila Neder Cerezetti deu parecer no sentido de que o patrimônio afetado e seus credores se sujeitam, sim, aos efeitos da recuperação. No parecer, ao responder ao quesito “A existência de patrimônios de afetação impede a consolidação substancial da Recuperação Judicial do Grupo Viver?”, a Professora opinou em sentido negativo, frisando:

Tanto a disciplina do patrimônio de afetação quanto a lei concursal preocuparam-se em abordar os direitos das partes no cenário de falência ou insolvência civil da incorporadora, nada dispondo sobre os seus efeitos na recuperação judicial. Esta lacuna não deve ser preenchida mediante a aplicação analógica das regras falimentares, pois não se pode admitir que o intérprete empregue um regime estruturado sobre regras de liquidação patrimonial em ambiente com propósitos nitidamente distintos. Se, na falência, é a sua lógica liquidatória a justificar a previsão de uma execução independente do patrimônio de afetação quando da insolvência da incorporadora (art.  31-F da Lei 4.591/1964), o objetivo de manter a atividade produtiva, que marca a recuperação judicial, impede que a mesma norma seja a ela aplicada. Na recuperação, sacrifício aceito pelas partes interessadas justifica-se em vista do objetivo de reestruturação e continuação da atividade.[23]

Não foi esse, todavia, o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Com efeito, deferido o processamento com a consolidação substancial, a questão foi devolvida ao Tribunal por meio dos autos do agravo nº 2236772-85.2016.8.26.0000, relatoria do Des. Fábio Tabosa. E ali restou decidido que o patrimônio de afetação não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial. In verbis:

Incompatibilidade que se acentua na hipótese de existência de patrimônio de afetação, como no caso examinado. Patrimônio segregado por lei mesmo na hipótese de falência e que exclui por igual a possibilidade de recuperação judicial, enquanto não encerrado. Proteção que se volta não apenas aos adquirentes, mas também, por expressa disposição legal, ao financiador da obra, como forma de favorecer e estimular o crédito. Impedimento que persiste, assim, mesmo se eventualmente concluída a obra, mas não liquidadas as obrigações para com o financiador. Inteligência dos arts. 119, IX, da LRF, 31- A, 31-E, 31-F e 43, VII, da Lei nº 4.591/64. Recurso provido também nessa parte, para exclusão do processo recuperacional de todas as SPEs nessa condição, referidas na decisão agravada.

Neste momento do acórdão, o relator menciona parecer de Francisco Satiro dado em outro caso envolvendo empresa também do ramo de incorporações e extrai do mencionado parecer o quanto segue:

É nesse exato sentido que há incompatibilidade lógica entre as normas da Lei 4.591/64 e a Lei 11.101/2005. Pela Lei 11.101/2005, a recuperação judicial deve possibilitar a recuperação da empresa em crise porém viável, para o que coloca devedor e credores “em lados opostos da mesa” para negociar o melhor destino da empresa e de seu patrimônio. E dá aos credores, organizados em Assembleia e decidindo por maioria, o poder de aceitar ou não a proposta de solução feita pelo devedor através do plano. No caso do empreendimento realizado por SPE em regime de patrimônio de afetação, a lei confere não aos credores, mas aos adquirentes também em assembleia e em regime de maioria a prerrogativa de destinação dos bens que estão segregados como meio de garantia do imóvel adquirido. Eles podem escolher, inclusive, por terminar o empreendimento substituindo o incorporador.

Em seguida, o acórdão cita artigo de Marcelo Sacramone[24]no qual este defende que indene de dúvida que o patrimônio de afetação na incorporação imobiliária é incompatível com o regime da recuperação judicial e a ela não se sujeita, indo além, dizendo que mesmo nos casos de segregação patrimonial via SPE’s essa incompatibilidade verificar-se-ia, ante a função econômica-social, para a economia popular, das incorporações imobiliárias.

Conforme tivemos a oportunidade de apreciar anteriormente, a sociedade de propósito específico é pessoa jurídica autônoma. Assim, conforme se extrai do voto do Relator e da doutrina especializada nele mencionada, faz-se indispensável a análise caso a caso para saber se aquela sociedade deve ou não integrar o polo ativo da recuperação judicial. Não faz sentido que, estando saudável e não preenchendo os requisitos legais, apenas por fazer parte de grupo econômico, torne-se recuperanda.

Além disso, como vimos acima, também no caso das SPEs existe um forte argumento de economia popular que talvez, mesmo não estando o patrimônio afetado, impeça-as de entrarem em recuperação.

O acórdão prossegue enfrentando a controvérsia principal, em outras palavras, se o fato de o tratamento ao patrimônio de afetação na Lei 11.101/05 ter sido dado em capítulo exclusivo da falência faz com que referido artigo não se aplique às recuperações judiciais. Conclui o acórdão:

Mas, pensando na possibilidade em si do pleito recuperacional, do ponto de vista sistemático não se justifica que, se no caso de falência, que é o mais, não apenas o patrimônio seja preservado como também preservadas em sua essência as relações obrigacionais envolvendo o incorporador, como se quebra não existisse, venham em contrapartida na recuperação judicial, que é o menos, a se sujeitar os credores relativos a patrimônios de afetação à modificação de seus direitos, com alteração de sua substância ou da forma de satisfação.

Além disso, operada no âmbito da recuperação eventual novação dos créditos, caso decretada a quebra após o biênio não haveria a reversão às condições originais de que cuida o art. 61, § 2º, da Lei nº 11.101/2005 (cf. art. 62 da mesma lei).

Assim, ainda que sob o ponto de vista da estrita compatibilidade entre a recuperação e as regras do patrimônio de afetação, pode-se responder pela negativa. Mas de todo modo, quando se retorna à perspectiva das prerrogativas em especial conferidas aos adquirentes, sobretudo pela previsão do art. 43, VII, da Lei nº 4.591/64, a conclusão fica definitivamente assentada.

E para sustentar sua posição, o acórdão cita a doutrina de Alexandre Guerra, Melhim Namem Chalhub e Marcelo Barbosa Sacramone.

Interessante notar que na análise comparativa entre processos que envolvem a insolvência (recuperação judicial e falência), o Tribunal se utiliza do princípio argumentativo a maiori, ad minus, ou seja, se o patrimônio de afetação não pode sofrer os efeitos da falência tampouco poderia sofrer os efeitos da recuperação judicial cujo escopo não é de liquidação.

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Outro caso importante para o tema patrimônio de afetação é o do Grupo PDG[25]. Com efeito, a PDG era uma das maiores construtoras e incorporadoras do País. Sobrevindo a crise, apresentou pedido de recuperação judicial com todas as SPEs e patrimônios afetados.

Sob a condução do Dr. João Oliveira Rodrigues Filho e com a contribuição dos demais players, especialmente os bancos, já no primeiro grau de jurisdição o que era patrimônio de afetação da PDG foi excluído da RJ. As SPEs, no entanto, continuaram sujeitas[26].

Mais um precedente interessante do TJSP sobre o tema é de relatoria do Des. Hamid Bdine no caso JNK EMPREENDIMENTOS ADMINISTRAÇÃO E PARTICIPAÇÕES LTDA[27]. Confira-se a ementa:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. INCORPORADORA IMOBILIÁRIA. PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO. PRELIMINAR. INTEMPESTIVIDADE. Rejeição. Agravo interposto contra a decisão no prazo legal. MÉRITO. Decisão agravada que determina que o banco se abstenha de interferir nas contas vinculadas a patrimônio separado. Alegação do agravante de que seu crédito decorre da celebração do contrato de empréstimo destinado a viabilizar a incorporação imobiliária de determinados empreendimentos e que por isso pode utilizar os recebíveis para pagar o saldo devedor envolvendo o mútuo. Patrimônio separado. Incomunicabilidade com os demais direitos e obrigações de titularidade da recuperanda. Recuperação judicial que não interfere no patrimônio vinculado ao empreendimento imobiliário. Empresa incorporadora que é responsável pela gestão dos recursos e pela aplicação para se atingir o fim específico de sua criação. Crédito do agravante que se vincula ao patrimônio afetado. Pagamento realizado a partir dos recebíveis que deve observar a correlação entre o empréstimo concedido à recuperanda e o valor pago pelos adquirentes pela unidade imobiliária com o objetivo de saldar a dívida da construtora. Reconhecimento de que o emprego desses recursos pelo banco sem nenhuma correspondência com o empreendimento que deu origem à conta é ilícito pode submeter-se a controle oportuno. Para se preservar a edificação dos imóveis e atender à finalidade do patrimônio de afetação, a amortização deve ser de dívidas vencidas. Negada a amortização de dívida vencida antecipadamente pela apresentação de pedido de recuperação. Recurso provido em parte.

E, ainda, neste mesmo sentido:

Agravo de instrumento. Recuperação judicial. Decisão que deferiu o processamento conjunto da recuperação das agravadas e determinou a apresentação de plano individualizado pelas sociedades de propósito específico com patrimônio de afetação. Recurso conhecido, a despeito do equívoco na identificação dos patronos das agravadas, não havido efetivo prejuízo à sua defesa. Fixado o entendimento, nesta 2ª Câmara, de que incompatível o instituto da recuperação judicial com o patrimônio de afetação. Extinção da afetação, ademais, que não se dá tão somente pelo término e averbação da obra, instituído o condomínio, senão também pela satisfação das obrigações garantidas, incluído o crédito do financiador, e cancelamento do registro respectivo. Artigo 31-E, inciso I, da Lei 4.591/64, com redação dada pela Lei 10.931/04. Decisão revista. Recurso provido” (AI 2052507-11.2017.8.26.0000, rel. Des. Claudio Godoy, íntegra no site.

Nesta linha de raciocínio e mantendo a coerência de uma jurisprudência una, o Tribunal Bandeirante já decidiu, inclusive, que se aquela dívida específica disser respeito ao patrimônio de afetação, ela pode ser executada a despeito do processamento da recuperação judicial da incorporadora. In verbis:

Agravo de instrumento. Indenização por danos materiais e morais. Compra e venda de unidade imobiliária. Cumprimento de sentença. Penhora de imóvel da incorporadora. Pedido de suspensão da execução pela executada, em razão da decretação de sua recuperação judicial. Decisão que deferiu o pedido. Recurso dos exequentes. Alegação de que o imóvel integra patrimônio de afetação, o qual não estaria sujeito aos efeitos da recuperação judicial. Cabimento. Os efeitos da decretação de falência ou da insolvência civil da incorporadora não atingem o patrimônio de afetação constituído, não integrando a massa concursal Inteligência do art. 31-F da Lei n.º 4.591/64, com a redação que lhe deu a Lei n.º 10.931/2004. Execução que deve continuar. Decisão reformada. AGRAVO PROVIDO”. (AI 2053576-78.2017.8.26.0000, rel. Des. Miguel Brandi, íntegra no site)

Assim sendo, fortalecendo a natureza dos institutos de Direito aqui abordados, doutrina e jurisprudência[28] vão firmando posição no sentido de que o patrimônio de afetação não está sujeito aos efeitos da recuperação judicial, assim como não está aos da falência.

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Sobre o autor
Ruy de Mello Junqueira Neto

Advogado graduado pelo Mackenzie (2005). Foi sócio de renomadas bancas de advocacia antes de fundar seu escritório. Foi diretor da Deloitte Touche Tohmatsu no Brasil. Mestrando em Direito Comercial pela PUC-SP. Palestrante e autor de diversos artigos acadêmicos. Co-autor do Livro “Direito Societário Aplicado”, publicado pela Saraiva em 2014.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JUNQUEIRA NETO, Ruy Mello. Patrimônio de afetação na recuperação judicial e na falência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5830, 18 jun. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74588. Acesso em: 23 abr. 2024.

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